Como começaram os latifúndios

Livro fala sobre o universo rural brasileiro em sua relação com a história da propriedade e dos conflitos de terras no país.

 

Por Adelto Goncalves
Do Diário da Redação

 

Uma das principais dificuldades que o estudante de História encontra é localizar as fontes não só para começar o seu trabalho de pesquisa, mas, antes, para preparar o seu projeto. Nessa tarefa, têm sido imprescindíveis os trabalhos que o professor Caio Boschi, docente do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de Belo Horizonte, e professor titular (aposentado) de História do Brasil da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tem preparado desde 1972, quando, estimulado pelo professor português Jorge Borges de Macedo, iniciou um meticuloso levantamento das fontes relativas à história de Minas Gerais.

Esse estudo exemplar que todo historiador conhece é Fontes primárias para a história de Minas Gerais, de 1979, cuja versão mais recente, ampliada e atualizada integra a Coleção Mineiriana da Fundação João Pinheiro (Belo Horizonte: Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de Minas Gerais – Fapemig, 1998).

Em sua ânsia de disponibilizar acervos documentais aos estudiosos, Boschi ainda preparou Inventário da Coleção Casa dos Contos: livros 1700 -1891 (PUC/MG, Fapemig, 2006), trabalho desenvolvido em colaboração com os pesquisadores Carmen Moreno e Luciano Figueiredo, e Brasil-Colônia nos arquivos históricos de Portugal: roteiro sumário (São Paulo, Editora Alameda, 2011). São livros que, invariavelmente, estão (ou deveriam estar) à disposição do pesquisador nas bibliotecas dos arquivos históricos do Brasil e de Portugal.

Para juntar a esses manuais indispensáveis, a Editora Horizonte, de Vinhedo-SP, em conjunto com a Editora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Editora da Universidade Estadual do Centro Oeste (Unicentro), acaba de lançar Propriedades e disputas: fontes para a história do oitocentos, de Márcia Motta, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora do Departamento de História da UFF, e Elione Silva Guimarães, doutora em História pela UFF e pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora e do Núcleo de Referência Agrária, que organizaram o volume com seus textos e de mais de 20 autores.

II

Trata-se de um guia que, acima de tudo, tem o objetivo de estimular pesquisas sobre o universo rural brasileiro em sua relação com a história da propriedade e dos conflitos de terras no país no século XIX, cujos reflexos ainda estão presentes no Brasil profundo do século XXI. É um trabalho que segue a senda aberta pela professora Maria Yedda Leite Linhares, doutora em História Moderna e Contemporânea pela Universidade do Brasil (1954) e professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), figura emblemática do ensino e da pesquisa da história brasileira, que, nos anos 80, deu início, ao lado de outros grandes historiadores, como Ciro Flamarion Santana Cardoso e Francisco Carlos Teixeira da Silva, a uma série de estudos sobre a questão agrária, denunciando a excessiva concentração da terra em mãos de poucos latifundiários, em prejuízo da grande massa de camponeses.

Como se sabe, a concentração fundiária nunca cedeu – pelo contrário, agravou-se ainda mais, a partir da mecanização da lavoura e da entrada de grandes empresas no campo, que resultaram na dispensa de milhares de trabalhadores que acabaram por engrossar as periferias das grandes cidades, levando a violência social a níveis nunca vistos. Basta ver que a grande massa carcerária de Brasil de hoje é formada por pessoas com menos de 30 anos de idade, analfabetas e sem qualificação profissional, oriundas na maioria de famílias excluídas da terra que foram atiradas às grandes cidades.

Como observa a professora Márcia Motta na apresentação que fez para este livro, a concentração fundiária do País, os movimentos rurais no campo, a manutenção e recriação da classe dominante agrária – que, aliás, continua a exercer um dos mais poderosos lobbies no Congresso Nacional – têm histórias que remontam ao tempo do Brasil colônia, quando os ouvidores e demais altos funcionários régios, na maioria das vezes, nada mais faziam do que defender os interesses daqueles que já estavam estabelecidos, em detrimento dos que nada tinham.

Como observa a autora, as disputas pela posse da terra no Brasil nunca foram uma embate entre iguais – e ainda hoje são assim. “A desigualdade dos campos de força, as chances de defenderem sua versão dos fatos construíram uma sociedade onde alguns puderam consagrar a propriedade e chamá-la de sua, enquanto a maioria foi privada desse direito e identificada como invasores das terras de outrem”, diz, acrescentando que a concentração fundiária é uma marca que parece indelével na história brasileira.

III

Levar o estudante ou mesmo o leitor curioso a conhecer as circunstâncias que contribuíram para a formação da Nação brasileira é a que se propõem estes textos reunidos pelas professoras Márcia Motta e Elione Guimarães. O professor Francinaldo Alves Nunes, do Departamento de História da Universidade Federal do Pará e doutorando em história pela UFF, por exemplo, mostra no capítulo 2 como os autos de medição e demarcação de terra constituem fontes incontornáveis para se estabelecer a história agrária do País, já que eram a documentação pela qual o proprietário ou posseiro deveria provar ser o legítimo dono das terras que ocupava, além de definir os limites de sua propriedade.

Hoje, esses documentos são encontrados nos arquivos públicos e dos institutos de regularização fundiária. Mas, como observa Nunes, é preciso cuidado ao analisá-los porque, em muitas regiões, esses documentos foram alvo de falsificadores e, em outros casos, extraviados de maneira proposital, o que leva as instituições que têm sua guarda a dificultar o acesso, principalmente autorizar a reprodução de cópia dessa documentação.
Já o professor Francisco Eduardo Pinto, doutor em História pela UFF, no capítulo 3, ao tratar das cartas de sesmaria, observa que a legislação acerca da posse da terra pouco evoluiu no Brasil, no hiato de 28 anos entre a abolição das sesmarias, em 1822, e a promulgação da Lei das Terras, em 1850, período em que prevaleceram nas contendas judiciais as Ordenações Filipinas, da época da União Ibérica (1580-1640).

IV

Cláudia dos Santos, doutora em História pela Universidade Sorbonne-Paris IV e professora da Universidade do Rio de Janeiro (UniRio), ao destacar os periódicos do século XIX como fontes da “questão  fundiária”, ressalta que ainda não existem trabalhos que tenham se dedicado a identificar na imprensa desse período discussões políticas sobre a estrutura fundiária. E observa que esse trabalho pode começar a partir do projeto pioneiro de José Bonifácio de Andrada e Silva que previa a formação de pequenas propriedades como forma de operar a modernização do Brasil.

É de lembrar que José Bonifácio via nos grandes proprietários rurais de sua época um grande obstáculo para a modernização do País, mas, ressalte-se, como rebento de uma família poderosa, ele mesmo nunca deixou de se valer da influência política que seu clã exercia.

Eis aqui um tema polêmico à espera de um grande pesquisador.Lembre-se ainda, por exemplo, que seu irmão, o juiz de fora Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, nomeado ouvidor da comarca de São Paulo, em 1811, não pôde assumir o cargo porque foi denunciado como mandante de um crime na vila de Santos.

A devassa não o incriminou, o que levou a viúva, mulher de posses, a considerá-la um jogo de cartas marcadas. O crime nunca foi esclarecido, mas a acusação não o impediu de desempenhar as funções de ouvidor da comarca de Olinda, na capitania de Pernambuco, a partir de 1815, onde no começo de 1817 iria aderir a uma sedição contra o regime de D. João.

Que não tenha sido executado – e sobrevivido às más condições da prisão na Bahia – para, em 1821, sair da cadeia e, logo depois, ser nomeado representante da província de São Paulo nas Cortes em Lisboa é explicação que só pode residir no poder econômico de sua família e na influência política de seu irmão José Bonifácio.

Como se vê, o Brasil sempre foi assim: os que têm poder, influência política e dinheiro sempre ficaram acima da lei e dos demais. São os que mandam – os demais obedecem, quando têm juízo. Quem duvidar que consulte as fontes arroladas neste livro, que incluem ainda contratos de hipoteca, escrituras públicas, inventários e partilhas, testamentos, registros paroquiais de terras, Juízo dos Feitos da Coroa e Fazenda, ação de esbulho, ação ordinária e sumária, libelo cível, documentos fiscais das câmaras municipais e outras.