Agricultores expostos a agrotóxicos não sabem que sofrem risco de morte

Promotor gaúcho aponta desinformação e alto analfabetismo funcional na zona rural do estado – que dificulta a compreensão das informações nos rótulos dos venenos que manipulam – como fatores de risco.

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Por Cida de Oliveira
Da Rede Brasil Atual

Nas planícies do Rio Grande do Sul, onde predominam as monoculturas mecanizadas de soja, milho e trigo, o uso de agrotóxicos é intenso. Ali, centenas de tipos de venenos sistematicamente pulverizados nas plantações circulam livremente pelo ar, sendo carregados para longe pelos ventos, chegando até os quintais das casas localizadas nos perímetros urbanos. A contaminação vai além dos trabalhadores rurais: atinge a população da área rural e também das pequenas cidades, o que praticamente anula os esforços individuais de produtores que optam pela produção livre de intervenções químicas.

“De nada adianta um agricultor ou outro evitar usar agrotóxicos ou usá-los de forma racional; todos estão sob risco intenso de contaminação”, avalia o promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul em Catuípe, Nilton Kasctin dos Santos.

Conferencista na área de meio ambiente e autor de artigos em diversas publicações, entre elas a Revista de Direito Ambiental, o promotor explica que todos esses agrotóxicos interagem entre si, potencializando o risco à saúde e ao meio ambiente.

“O fungicida Authority (fabricado pela FMC Corporation), por exemplo, segundo sua própria bula, tem ‘meia vida de um ano’. Isso quer dizer que após um ano de sua aplicação na lavoura, metade do veneno não se degradou e continua ativa no ambiente. E durante esse ano foram aplicados dezenas de outros venenos, alguns com meia vida muito maior. Imagine esse coquetel de fungicidas, inseticidas e herbicidas interagindo entre si, com o ar, a água e o solo”, diz.

É nesse ambiente, segundo ele, que vivem todos os agricultores do Rio Grande do Sul e da maior parte do Brasil. O mais perverso, conforme diz, é que praticamente 100% dos agricultores que manuseiam os venenos são analfabetos funcionais. Lidam com essas substâncias sem saber sobre sua formulação química.

“Mesmo lendo a bula, o rótulo e a receita agronômica, não conseguem entender o significado do que está escrito ali e dos riscos a que estão expostos, às graves consequências para a própria saúde e do meio ambiente. Na região de Ijuí, é raro ver um agricultor usando equipamento de proteção individual enquanto pulveriza a lavoura”.

Para piorar a situação, os agrônomos, técnicos, comerciantes e fabricantes não chamam agrotóxicos pelo nome, nem os mais perigosos. Referem-se a eles como “agroquímico”, “defensivo agrícola”, “molécula”, “material”, “produto”, “princípio ativo”, “remédio” e até mesmo “tratamento”. “Dessa maneira, os trabalhadores ficam despreocupados, totalmente alheios ao risco a que estão submetidos. O correto seria orientar sobre os riscos e que agrotóxico mata”.

Pela sua experiência de mais de uma década na fiscalização de irregularidades praticadas por aplicadores de agrotóxicos, Santos afirma, categoricamente, que nas regiões de plantações de alimentos não há mais local livre do perigo de contaminação por agrotóxicos. Segundo ele, o herbicida 2.4-D – proibido na maior parte do mundo, mas largamente usado no Brasil –, se propaga pelo ar por centenas de quilômetros.

“Não respeita quebra-vento, morro, floresta, muralhas, casas ou prédios. É um gás realmente incontrolável, um veneno altamente volátil, que fez parte do coquetel mortífero denominado “agente laranja”, usado pelos americanos na guerra do Vietnan para dessecar as florestas”, diz.

“Ficamos estarrecidos com as notícias sobre as consequências trágicas que até hoje esse veneno perigoso provoca na comunidade vietnamita atingida, mas achamos natural que os agricultores utilizem cada vez mais 2.4-D bem do nosso lado. E ainda misturado a outros venenos perigosos, como o Gramoxone e Helmoxone, com princípio ativo Paraquat, até pouco tempo proibido no RS.

“É mesmo de se concluir, sem medo de errar, que a situação dos agricultores é extremamente grave, digna de decretação de estado de calamidade pública. Mas sequer preocupa os governantes e a própria sociedade”.

Contaminação sem limites

De acordo com a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), o modelo de produção agrícola baseado no monocultivo em grandes extensões de terra, com uso intensivo de agrotóxicos, predomina em praticamente todo o país. Até mesmo no Nordeste, em grandes áreas com cultivo de frutas voltado à exportação. Poucas regiões, como a caatinga, por suas características de solo e clima, ainda estão fora desse mapa.

Assim como o meio ambiente sofre, com o solo, os rios e lençóis freáticos contaminados pelos venenos usados na agricultura, os trabalhadores adoecem pela exposição aos venenos sem equipamento de proteção, ou em acidentes que ocorrem na manipulação mesmo que eles usem roupas de proteção, e se alimentando com alimentos que recebem venenos”, diz o secretário de Políticas Sociais da entidade, José Wilson Gonçalves.

Apesar da força da bancada do agronegócio no Congresso Nacional, a Contag acredita que é possível mudar, aos poucos, essa situação. Entre as ações das quais participa, estão grupos de trabalho no Ministério da Saúde e na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que discutem estratégias para reduzir o apoio governamental às políticas que privilegiam o agronegócio e todos os males trazidos por esse modelo de produção.

“O Ministério precisa atuar nessa questão, tem de ter estratégia de punição para o excesso de venenos e tributar empresas que poluem o meio ambiente e adoecem as pessoas. E a Anvisa deve regulamentar politicas de fiscalização mais intensa para coibir a produção agrícola com uso excessivo de agrotóxicos”, afirma.

Para Gonçalves, são necessárias normas mais duras. Para começar, proibir o uso de venenos que já estão proibidos em outros países e dificultar a entrada desses venenos de maneira irregular. “É preciso também taxar esses venenos, ter impostos. No Ceará, por exemplo, não há cobrança de impostos na comercialização de agrotóxicos. Lá se paga impostos, é mais caro comprar comida do que agrotóxicos”.

A Contag defende a implementação, de fato, da Política Nacional de Agroecologia. “Precisamos sair de um modelo tao agressivo à saúde. Esperamos que possamos concluir os trabalhos para aprovar regras mais rígidas. O Ministério precisa definir taxações dessas empresas de agrotóxicos para financiar a saúde. Já que estão lucrando com a produção de comida que adoece, têm de financiar o SUS”.