“Transgênicos não são alimentos, e sim mercadorias”, aponta médico argentino

Em entrevista ao Saúde Popular, médico argentino analisa os danos causados por alimentos geneticamente modificados e agrotóxicos para as pessoas e a sociedade.

 

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Do Saúde Popular

O médico argentino e membro da Rede Popular de Médicos da Argentina, Javier Balbea, esteve no Brasil para participar do seminário “A realidade dos agrotóxicos e transgênicos no Brasil e seus impactos sobre a saúde humana e ambiente”, que ocorreu durante Feira Nacional da Reforma Agrária, em São Paulo, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Em entrevista ao Saúde Popular, Balbea critica o uso dos transgênicos e agrotóxicos, pois acredita que eles são uma tecnologia que serve ao propósito de dominar os territórios dos países produtores.

Para o médico, o ato de comer e produzir alimentos está ligado diretamente à cultura dos povos, e isso está sendo ameaçado. “A produção transgênica é de mercadoria, não de alimentos. Isso vai na contramão da cultura dos povos”.

Confira abaixo a entrevista de Javier Balbea ao Saúde Popular:

Qual o propósito de uma tecnologia como os transgênicos?

As tecnologias não são neutras. Elas são instrumentos políticos e algumas servem a determinados poderes para implementar determinadas ações.

Se uma tecnologia tem apoio de toda a indústria, vai ser criado um processo de legitimação social para que as pessoas a aceitem.

No caso dos transgênicos, eles servem para a dominação de alguns territórios pela produção de commodities [produtos primários] a favor do capital.

Você disse que comer é um ato cultural. Como os transgênicos mudam nossa forma de comer e produzir?

O alimento é muito mais que nutrientes. Às vezes, comemos sem ter fome, por uma relação social que se estabelece ao redor de produzir e preparar os alimentos.

Quando deixamos de produzir alimentos e passamos aos produtos transgênicos, que são mercadorias, não existe essa relação, porque é uma produção que vai na contramão da cultura dos povos.

Na Argentina, por exemplo, não temos a cultura de comer soja, mas temos uma expansão da fronteira agrícola baseada no cultivo de soja. No Brasil é o mesmo. É uma produção feita, especialmente, para a exportação, que atende ao interesse de outras nações.

Além disso, vários estudos mostraram que ingerir produtos transgênicos gera doenças, como mudanças no tubo digestivo, além da química associada ao produto geneticamente modificado: não há transgênico que não tenha em sua composição agrotóxicos.

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Balbea participou de seminário durante a Feira Nacional da Reforma Agrária, que ocorreu entre os dias 22 e 25 de outubro, na capital paulista. Foto: Alexandre Gonçalves

Por que países como Brasil e Argentina continuam a usar agrotóxicos comprovadamente perigosos, que foram banidos em outros países?

Esses países, principalmente na Europa, decidiram por pressões populares e outros motivos que esses venenos causam danos à saúde. Mas em países como Brasil e Argentina, onde é mais fácil manipular a política, o uso continua.

São países que não são verdadeiramente soberanos, não podem articular suas próprias políticas; eles respondem às políticas que se desenvolvem nos países capitalistas centrais. Dependem dessa economia que se decide em outro lugar e é aplicada nos seus territórios. Há uma liberdade e impunidade que permite atravessar o direito dos povos.

Por que há um silêncio da comunidade científica sobre muitas denúncias e questionamentos em relação aos transgênicos?

Acredito que por é falta de conhecimento, pelo tipo de formação que existe, que naturaliza essas tecnologias como algo indispensável para a economia e a sociedade.

É o paradigma de que a economia pesa mais que a vida. Toda nossa vida passa pelo consumo. O econômico tem um valor que está acima de qualquer outro direito, é a forma de funcionar da sociedade.

E quando se pensa que não há alternativa, é uma vitória para essa forma de pensar dominante, que não nos deixa acreditar que há formas de produzir sustentáveis e que a saúde é algo utópico.

Mas, cada vez mais, o debate se vai dando de forma maior, em lugares mais importantes. O acúmulo de informação e o mal estar social que vai se gerando através desse tema já não permite que alguns olhem para o outro lado [e ignorem o assunto].

E como a rede de médicos da Argentina contribui para esse debate?

Quando os cientistas vão contra os interesses da indústria, eles são perseguidos, deixados de lado de cargos e carreiras, apenas por publicar o que acreditam ser correto.

É preciso ter um espaço onde os médicos, os profissionais da saúde e outras disciplinas se sintam seguros de poder investigar e compartilhar a informação.

Já realizamos três congressos de saúde ambiental, com pessoas que participaram de discussões sobre transgênicos, agrotóxicos, de modelos produtivos diferentes.

Esse processo criou uma união de cientistas comprometidos com a saúde e a natureza da América Latina. A rede tem sido um espaço que permite criar e contestar, sem que essas pessoas se sintam perseguidas pela indústria, tenham apoio e espaço para pensar outra ciência que esteja a favor dos interesses do povo.