Em Minas Gerais, Sem Terra traçam novo ciclo na produção de café

A trajetória do café Guaií começa em 1996 numa ocupação realizada por trabalhadores Sem Terra no município de Campo do Meio, no sul do estado mineiro.

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Por Maura Silva
Da Página do MST

Fotos: Arquivo Cooperativa Camponesa

Quando se trata de Minas Gerais, é quase impossível não associá-lo entre outras coisas com o famoso cafezinho mineiro. Não por menos, o estado é a liderança mundial de produção e exportação de café.

Aproveitando as condições propícias para este tipo de cultivo é que nasce a história do café Guaií, no assentamento Campo do Meio. 

A trajetória do café Guaií começa em 1996 numa ocupação realizada por trabalhadores Sem Terra no município de Campo do Meio, no sul do estado mineiro.

Os Sem Terra ocuparam o local na esperança de fazer daquela uma área produtiva, que se auto sustentasse com a produção do grão. Assim, iniciou-se o processo de luta pela desapropriação da área, que veio um ano mais tarde, em 1997.

Hoje, o assentamento Campo do Meio conta com 270 moradores divididos em 40 famílias, numa uma área de 887 hectares.

Cada família tem em média 14 hectares de terra para cultivar. Parte dos assentados também produzem feijão, milho, banana, frutas, leite e gado de corte. Mas a principal atividade econômica é a cultura do café.

 

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Flor de café.

Nascem os primeiros grãos

O café começou a ser produzido no assentamento já em seu primeiro ano, com o plantio feito de forma coletiva. A partir do ano 2000 as famílias acessaram os créditos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e, assim começaram expandir a área plantada.

A principal espécie de grão produzido no assentamento é o arábica, o mais produzido em todo mundo, representando três quartos da produção mundial de café.

Em 2011 os assentados começaram as discussões para a criação de uma cooperativa na região, que deu origem a Cooperativa Camponesa no ano seguinte.

“A partir de 2012, iniciou-se o processo de regularização de registros de produção junto aos órgãos competentes. Ficamos pouco mais de um ano nesse processo. Em 2014 conseguimos o registro da cooperativa. Demos entrada nos papéis com 25 sócios fundadores. A ideia é fecharmos 2015 com 45 novos sócios, todos moradores do assentamento e dos acampamentos de 1° do Sul, Nova Conquista II e Santo Dias localizados aqui na região”, explica Sebastião Melia Marques, um dos sócio-fundadores da cooperativa Camponesa.

 

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Produção orgânica

Hoje, 95% das famílias vivem da produção do café. No último período, os Sem Terra iniciaram um projeto de transição do cultivo do café convencional para o orgânico, que tem como objetivo elevar a qualidade de produção, comercialização e qualidade do café. 

Segundo Marques, um dos principais fatores de transição, além do aumento da qualidade do café e da ideia de se produzir alimentos saudáveis à população, é a independência de comercialização do produtor.

“O café orgânico visa uma melhor qualidade, tanto para as famílias que trabalham quanto para os consumidores. Além disso, os insumos industrializados comprometem muito o resultado da produção do agricultor”, afirma.

Com a produção orgânica os assentados conseguem quebrar a lógica de comercialização que impede um retorno justo ao pequeno agricultor.

“O produtor, na lógica de produção do café convencional, acaba trabalhando para a indústria e não tendo retorno nenhum. Com incentivos, o cultivo de orgânicos possibilita a ele produzir a própria matéria-prima para atuar na adubação do café. Isso faz com que o capital dele gire em sua propriedade, sem depender da indústria externa”, conclui.

Além do café orgânico, os assentados também querem trabalhar com a certificação Fair Trade.

Essa certificação é dada pela International Federation of Alternative Trade (Federação Internacional de Comércio Alternativo), e define o Comércio Justo (Fair Trade, em inglês) como sendo parte de parcerias que contribuem para o desenvolvimento sustentável por meio de melhores condições de troca e garantia dos direitos para produtores e trabalhadores à margem do mercado, principalmente no Hemisfério Sul.

 

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“Hoje nós temos 20 famílias que estão nesse processo de transição, mas ainda enfrentamos desafios. Nosso solo foi muito degradado, a terra aonde os assentamentos foram construídos, sofreu anteriormente com muitos anos de uso de máquinas e de químicos, e isso dificulta o processo”, explica.

Outra dificuldade enfrentada pelo produtor orgânico é conseguir a própria matéria prima para suprir a necessidade nutricional da planta. As famílias assentadas ainda não têm condições de produzir insumos.

Além disso, como a monocultura é uma especificidade da região, a presença de cooperativas externas é outra característica que dificulta o processo. Inicialmente, elas apresentam uma facilidade ao produtor, mas a médio e longo prazo essa vantagem inicial deixa de existir, já que a maior parte do lucro acaba indo para as próprias cooperativas.
 

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Participação das mulheres

A participação das mulheres em todo o ciclo do café, do plantio à colheita, é efetiva. Para dar margem a essa característica organizativa, foi criado um coletivo feminino que conta com a participação de mulheres da região. 

Para Mirian Alves, da coordenação do coletivo, a necessidade de unir forças entre as mulheres surgiu para quebrar a lógica masculina que ainda domina alguns espaços.

“Tínhamos só homens na organização, daí surgiu a necessidade de enquadrarmos a participação feminina. Os homens costumam trabalhar em um ideal que é baseado em suas próprias demandas. Enxergamos aqui a necessidade de suprir as demandas também das mulheres”.

O coletivo é dividido em setores para que cada mulher possa ser contemplada dentro de suas especificidades.
São 70 mulheres Sem Terra da região que se organizam nos setores de saúde, educação, alimentação, e que participam da coordenação estadual, das discussões e das decisões formativas e políticas.

 

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“Estamos organizada para trazer à tona a reflexão: Qual papel da mulher? É no tanque? Limpando casa? Não. Aqui nós temos mulheres que discutem e participam das decisões políticas, que são tratoristas, mães, donas de casa, formadoras. Muitas pessoas pensam que o MST é pautado só na ocupação de terras. Nosso papel aqui é provar que, além de um pedaço de terra, temos nosso lugar nessa sociedade. Temos setores que ainda são dominados por homens, uma visão distorcida da atual realidade em que vivemos. Estamos aqui para falar e fazer política e quebrar essa lógica que ainda persiste em muitos espaços”, finaliza.

O coletivo de mulheres faz parte de uma estrutura que começou a ser criada com a chegada dos primeiros Sem Terra na região.

A cooperativa, a organização dos trabalhadores, das mulheres e a vivência coletiva têm sido um fator determinante de luta contra o agronegócio, que domina o cultivo de café no estado e procura inserir a produção dentro de sua lógica.

Marques coloca que um dos grandes desafios é pensar maneiras práticas de quebrar a hegemonia do agronegócio e garantir a produção de alimentos de qualidade que possibilitem renda ao produtor e beneficie ao consumidor.

Parcerias

Desde o início de 2014, a Cooperativa Camponesa recebe o apoio da Christian Aid, uma agência cristã de cooperação internacional, que se transformou em importante parceira neste processo de fortalecimento da cadeia produtiva do café sob bases orgânicas.

O projeto conta com o apoio na aquisição de insumos orgânicos e com assessoria técnica permanente, criando perspectivas concretas para a transição agroecológica.

Entre outras atividades, os associados podem trocar experiências com outras cooperativas de produção de café pelo mundo, como foi o caso das visitas às áreas de produção na Nicarágua e no Burundi, o que permite agregar conhecimentos imprescindíveis para que a cooperativa se consolide na produção orgânica.