Alerta: mortandade de abelhas pode ficar sem controle

Falta de fiscalização dos órgãos competentes sobre a origem, o manuseio, a estocagem dos agrotóxicos e o destino final das embalagens são problemas enfrentados pelos apicultores. Leia na segunda reportagem da série especial.
Matéria II - Matéria da Capa - Agrotóxicos têm causado a morte não apenas de abelhas, mas também de pássaros na região.JPG
Série especial de reportagens traz o alerta quanto aos riscos ambientais do uso de agrotóxicos.

 

Da Página do MST
Por Catiana de Medeiros
Colaboração: Leandro Molina

 

Na primeira reportagem da série você ficou sabendo da morte de abelhas na região da Campanha do Rio Grande do Sul, e da grave situação de assentados da reforma agrária que perderam colmeias inteiras com o uso excessivo de agrotóxicos em áreas próximas aos assentamentos (leia aqui). Veja a segunda reportagem da série “Tem veneno no seu mel”.

“Não tem outra explicação lógica a não ser contaminação por agrotóxico”

Os engenheiros agrônomos Márcio Morales e Maurício Boni, da rede de sementes agroecológicas Bionatur, com sede em Candiota, acompanham de perto a situação das famílias que perderam colmeias na região da Campanha do Rio Grande do Sul. Segundo eles, o problema ocorre com vários produtores de abelhas e, mesmo não havendo laudo que comprove, há fortes indícios de que as mortes tenham relação direta com a soja transgênica e o uso de agrotóxicos.

“Não há conhecimento de doença ou algum outro tipo de problema que esteja ocorrendo com enxames no estado, a não ser a produção de soja nos arredores dos assentamentos da região. Ela traz consigo não só o Glifosato, mas também fungicidas e inseticidas que muitas vezes são proibidos no Brasil e contrabandeados do Uruguai. O que nos preocupa é em qual escala vai continuar ocorrendo essas mortandades. Ela vem numa ordem que, daqui a pouco, pode se multiplicar e ficar sem controle”, alerta Morales.

 

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Márcio Morales, engenheiro agrônomo da Bionatur, associa o uso de agrotóxicos e os cultivos transgênicos à morte em massa de abelhas nos assentamentos.

Conforme Boni, o principal sintoma da contaminação por veneno é a morte repentina de uma grande quantidade de abelhas, da mesma forma que ocorreu com as colmeias do assentado João Carlos Camargo, em Hulha Negra. “Não há nenhuma doença ou ataque de praga que acuse esse dano tão repentino. Não tem outra explicação lógica a não ser a contaminação por agrotóxico”, frisa.

Prejuízos sociais, produtivos e econômicos

Os engenheiros explicam que a mortandade das abelhas, por consequência do uso abusivo de veneno nas lavouras de soja transgênica, tem gerado prejuízos de ordem social, produtiva e econômica aos assentados da região, principalmente para aqueles que optaram pela produção de alimentos saudáveis.

De acordo com Boni, as abelhas são fundamentais no processo de polinização das plantas, e ajudam a garantir a produção de alimentos, sobretudo, de frutas e de grãos.

“Os níveis de produção e diversidade ficam comprometidos na medida que não há abelhas. Hoje, muitos assentados estão desistindo da produção de orgânicos por estarem cercados pelos agrotóxicos e, consequentemente, por não conseguirem manter uma produção limpa em seus lotes pela pulverização aérea na vizinhança. O modelo convencional de produção os induz a entrar nesse sistema, de forma contrariada, e quem quer resistir não encontra amparo legal ou alternativas. Então, a produção de mel acaba sendo contaminada pelo agrotóxico e inviabiliza a produção orgânica”, comenta.

Como resultados dos efeitos que os agrotóxicos e a soja transgênica têm causado na Campanha, os engenheiros também citam a degradação do solo, a supressão das pastagens nativas e a diminuição da renda das famílias assentadas, uma vez que atinge, de forma indiscriminada, outros tipos de cultivos. Conforme o assentado em Hulha Negra, Elio Francisco Anschau, nos últimos três anos têm sido cada vez mais difícil obter renda com a apicultura e manter a sua produção, de três hectares, de milho crioulo e de alimentos agroecológicos.

 

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Engenheiro agrônomo Maurício Boni: “os níveis de produção e diversidade ficam comprometidos na medida que não há abelhas”.

 

“Planto milho crioulo há mais de 15 anos, mas está muito complicado manter a semente. Ano passado, parte da minha lavoura foi atingida pelo transgênico, e também perdi plantações de abóbora, melão e de outros alimentos. O que vai garantir minha produção de milho este ano é uma outra parte de seis mil metros quadrados, isso se ela também não for contaminada”, declara.

Para seu José, a perda das colmeias em 2014 e 2015 resultou na paralisação do seu sonho de ampliar a produção de mel, e em menor qualidade de vida. Planos, como viajar com a família, ficaram em segunda ordem. “Com o dinheiro do mel eu pretendia fazer alguns investimentos para melhorar a produção, também queria comprar algumas coisas para dentro de casa, pagar algumas contas e viajar. Não consegui”, lamenta.

 

O problema econômico também atinge a Bionatur, que envolve o trabalho de 50 famílias assentadas na região, de um total de 170 entre os estados de Minas Gerais e RS, na produção de sementes agroecológicas. De acordo com o presidente da cooperativa, Alcemar Adílo Inhaia, a ofensiva da soja transgênica e do uso de agrotóxicos tem dificultado a produção limpa e, hoje, uma das maiores preocupações da rede gira em torno de como manter as lavouras e evitar perdas significativas.

“Enfrentamos o ataque das lagartas que migram das lavouras transgênicas para as nossas áreas de produção, além de fungos e doenças que antes não existiam. Está quase inviável a produção agroecológica, o que causa um impacto muito forte na cooperativa do ponto de vista econômico. Tínhamos um planejamento para expandir nossos espaços de produção, mas os agricultores tiveram sérias frustrações e deixamos de vender por não conseguirmos produzir. Ano passado, nossa estimativa era chegar a nove toneladas de sementes de hortaliças, não chegamos a quatro. Tivemos mais de R$ 2 milhões em prejuízos. Hoje, poderíamos ter no mínimo 250 agricultores trabalhando com a cooperativa, mas devido às barreiras muitos acabaram desistindo”, explica.

Carlos Alberto Maciel, técnico da Emater em Bagé, entidade que também presta assistência às famílias produtoras de mel, explica que as plantações de soja em parceria tem se tornado comum na região e, muitas vezes, acabam “dando poder” a algumas pessoas por terem maquinários e acesso a mais recursos. “Muitos têm a tradição familiar da plantação de soja e se sentem empoderados diante de outras famílias por conseguirem pagar para plantar soja na área dos outros. Isto é, com certeza, um problema social que esse monocultivo acaba gerando”, enfatiza.

Falta fiscalização e políticas públicas

Uma das principais queixas dos assentados se refere ao descaso dos órgãos competentes para ajudá-los a resolver os problemas. Seu João diz que denunciou a mortandade de abelhas ao Ministério Público, pediu ajuda à Brigada Militar e à Patrulha Ambiental, mas que nada foi feito. “Tive problemas de saúde e fiquei muito abalado. No dia seguinte pedi ajuda aos órgãos competentes, para que viessem ver o que estava acontecendo. Mas até hoje não recebi resposta”, explica João.

 

Matéria II - O assentado Amarildo Zanovello diz que há ineficiência e inoperância dos órgãos públicos em relação aos problemas enfrentados pelos apicultores.JPG
O assentado em Candiota, Amarildo Zanovello denuncia a inoperância dos órgãos competentes.

 

Amarildo Zanovello, assentado em Candiota, também chama a atenção para a ineficiência e a inoperância dos órgãos públicos em relação aos problemas enfrentados pelos apicultores. “Deixei as abelhas mortas dois meses no freezer, esperando retorno do Ibama e da Secretaria do Meio Ambiente, que ficaram de indicar algum laboratório para analisar o tipo de produto que está causando essas mortes. Até hoje não tive retorno de nenhum órgão. Não temos proteção nem respeito, porque o agronegócio não tem limites com a produção que está no seu no entorno, muito menos com as pessoas que têm outro sistema de produção sem veneno”, completa.

Para o engenheiro Morales, a falta de fiscalização dos órgãos competentes sobre a origem, o manuseio, a estocagem dos agrotóxicos e o destino final dado às suas embalagens é um dos principais problemas enfrentados pelos apicultores da região. Para superar parte desses entraves, ele defende a criação de políticas públicas para incentivar a produção de mel orgânico.

“Precisa ter unidades de beneficiamentos e canais para comercialização. A maior parte da produção de soja no Brasil é financiada com dinheiro público e tem seguro contra qualquer intempérie. Mas para a produção de mel não tem nenhum tipo de incentivo ou seguro. Os camponeses precisam de políticas públicas que garantam a eles os mesmos direitos que o agronegócio tem. Não queremos nada além disso, somente direitos iguais”, argumenta.

Segundo o engenheiro Boni, outra opção seria criar dentro dos assentamentos zonas livres do uso de agrotóxicos e de transgênicos, assim como existe no Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, na região Metropolitana de Porto Alegre.

“A produção de mel é mais delicada que outra produção agrícola, porque a abelha voa numa distância muito grande para captar pólen, e muitas vezes em áreas que contêm agrotóxicos. O ideal seria criar territórios que não tenham uso de venenos e priorizar a produção de alimentos saudáveis para os agricultores e a cidade, e não commodities e produtos de exportação”, aponta.

Leia amanhã na terceira e última reportagem da série:

As apostas da produção de mel sem o uso de veneno e a importância da conscientização do público urbano sobre os perigos do consumo de agrotóxicos.