“Nós temos uma dívida histórica com as crianças e adolescentes do campo”

Em audiência pública realizada, parlamentares progressistas, organizações e movimentos populares defendem a necessidade de avanço na garantia de direitos para todas as crianças a adolescentes.
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Erivan Hilário, integrante da coordenação do setor de educação do MST

 

Por  Lizely Roberta Borges
Da Página do MST

 

As crianças do campo, indígenas, das periferias, negras e das famílias empobrecidas são as que sofrem, mais duramente, a não efetivação da proteção integral pela ação do Estado, da família e da sociedade. É o que apontam as organizações sociais e movimentos populares participantes da audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados no dia 13 de julho, em Brasília-DF, em alusão aos 26 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O ECA é a principal legislação para proteção da infância e adolescência no Brasil. A partir da sua aprovação, em 1990, o país adequou a legislação nacional à Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas e com isso determinou a infância e adolescência como população prioritária na formulação e execução de políticas públicas. Embora a legislação seja avaliada como avançada em relação à outros países e as realidades infanto-juvenis tenham sofrido transformações positivas nos últimos anos, como a universalização do acesso ao ensino básico e fundamental, por exemplo, ainda persistem graves violações de direitos humanos desta população.

“Como conquista histórica o ECA significa que tiramos da invisibilidade do direito, por meio das mobilizações populares, milhões de crianças e adolescentes. Mas não podemos tratar a criança e adolescente do ponto de vista genérico, elas existem: são negras, da periferia, indígenas, sem-terra, ribeirinhas, que por vezes a sociedade renuncia a infância e adolescência. Não é possível pensarmos democracia sem pensarmos a dimensão de direitos de crianças e de adolescentes ”, destaca o integrante da coordenação do setor de educação do MST, Erivan Hilário.

Em conjunto com outras organizações, Erivan pontua que o avanço e retrocessos nas políticas públicas para crianças e adolescentes são processos que ocorrem em paralelo: ”O direito à educação é um dos que mais conseguimos avançar, ainda que a escolarização é recente, fruto da luta popular. Só no final da década de 90 tivemos a universalização do ensino fundamental, mas parece que não avança como avança o encarceramento de crianças e adolescentes”.

Violações de direitos infanto-juvenis no campo

De acordo com assessor de políticas sociais da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Antônio Lacerda Souto, duas violações de direitos humanos de crianças e adolescentes campesinos são, neste momento, mais incidentes: à do direito à educação com o fechamento de escolas rurais e o direito ao desenvolvimento pleno e saudável pela existência do trabalho infantil rural.

O índice de trabalho rural na faixa etária de 05 a 17 anos vem sofrendo uma queda exponencial: em 2002, 8,1% desta faixa etária, ou seja 5.546.738 crianças e adolescentes, estavam em situação de trabalho infantil. Em 2014, o índice é de 8,1%, totalizando 3.331.378 pessoas. (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).

Na avaliação de Souto a diminuição do índice deve-se à melhor estruturação da vida no campo e pelo aumento da renda familiar por meio do desenvolvimento de políticas agrárias, como Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). “A medida que o Estado injeta mais recursos na política no campo, você dinamiza a economia, fortalece o campo e as crianças são impactadas, mas ainda a gente vê crianças, por exemplo, nas casas de farinha, nos roçados, na colheita de cultivos, a cotação do catando coco e castanha”.

Também conselheiro do Conanda, ele destaca que o enfrentamento à estas violações é de ordem complexa porque envolve dimensões culturais, políticas e econômicas e demanda ações articuladas entre sociedade, família e Estado. “Ao mesmo tempo que a gente fala que o trabalho infantil tem que ser superado a gente tem a questão da sucessão rural. O campo tem sido esvaziado a cada tempo e as famílias falam – como vamos ensinar nossos filhos a trabalharem para permanecerem no campo? Ao nosso ver temos que trabalhar uma ação educativa que não caracterize como trabalho infantil e assegure a transferência de conhecimentos entre gerações”.

Esta dimensão, da relação entre familiares como prática formativa e de manutenção da cultura camponesa, passou, nos dois últimos anos, a ser reconhecida pelo Conanda. “Temos a perspectivas de criminalizar o trabalho infantil, mas o contexto para o campo é diferente do urbano. Qual a compreensão de trabalho para crianças e adolescentes pelos movimentos campesinos e as famílias do campo? Estamos falando da troca geracional de saberes e isso nas redes de defesa da criança não se debate, as redes debatem uma visão urbana. No Peru e Chile há grupos de trabalho de crianças e adolescentes trabalhadoras organizados”, relata Fábio.

A legislação brasileira não permite o trabalho sob qualquer condição para crianças e adolescentes entre zero e 13 anos; a partir dos 14 anos pode-se trabalhar na condição de aprendiz. Na avaliação dos movimentos populares campesinos é preciso problematizar, a luz da realidade do campo, a diferença entre transferência de conhecimentos e cultura e a exploração da força de trabalho.

Sobre o fechamento das escolas rurais, Erivan aponta que a defesa pelo direito à educação permanece como bandeira central pelos movimentos populares. “Nas últimas décadas mais de 37 mil escolas rurais foram fechadas. Não podemos admitir que neguem o direito a educação à crianças e adolescentes” Ele destaca que a ação do Estado no fechamento das escolas nas áreas urbanas, contexto visibilizado em 2015, em especial no estado de São Paulo, é realidade muito presente na área rural. “Vimos as ocupações das escolas nas cidades, mas no campo há muitos anos vem ocorrendo um movimento sistemática, como política de estado, fechar escolas que em geral atendam os níveis fundamentais e básico, porque o ensino médio ainda está longe de ser realidade do ponto de vista de universalização”.

Souto pontua que as prefeituras justificam o fechamento das escolas pelo baixo número de alunos. “Eles falam que[escolas rurais] são inviáveis do ponto de vista econômico, então educação é medida como se fosse mercadoria”. A saída ofertada pelas prefeituras, segundo ele, é a ida da população do campo para estudo em área urbana. “Você tem aí um confronto de saberes, cultura e identidade, no qual a criança do campo começa a perder sua relação de cultura com sua comunidade”. Ele também denuncia que, ao migrar o ensino para a área urbana, as prefeituras transformaram o transporte escolar em estratégia eleitoral e meio de obtenção de lucro por empresas vinculadas ao poder público.

As realidades de crianças e adolescentes do campo, em particular das famílias integrantes de movimentos populares, tem sido pouco observadas pelas organizações de defesa e promoção e direitos infanto-juvenis. Esta é a avaliação do presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Fábio Paes. “Nós percebemos que agenda agrária não foi prioridade até mesmo do Conanda e da agenda pública dos ministérios e setores específicos nos últimos anos. A reforma agraria não foi prioridade, isso impacta diretamente na vida de crianças. A questão do campo é um déficit histórico que nós temos”. Fábio aponta a lacuna de instrumentos e meios para garantir a proteção à crianças e adolescentes em contextos presentes na luta pelo direito à terra: “Não temos protocolos ou estratégias de proteção de crianças nos assentamentos para ajudar famílias e movimentos a proteger mediante agressões de policiais ou de políticas equivocadas de segurança pública, nem metodologias e teorias sobre quem são as meninas e meninos do campo”.

Lugar da infância e adolescência no governo interino

Por meio da Medida Provisória nº 726, publicada no Diário Oficial da União no dia 12 de maio, o presidente em exercício, Michel Temer, ao reorganizar as estruturas dos ministérios, extinguiu o Ministério da Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos, onde estava alojada a política da área. Os conselhos nacionais vinculados ao Ministério e a Secretaria de Políticas para Criança e Adolescente foram absorvidos pelo recém-criado Ministério da Justiça e da Cidadania.

O rebaixamento da pasta e a vinculação à um órgão também responsável por medidas repressoras é analisado com preocupação pelos defensores de direitos humanos de crianças e adolescentes. “Há desmonte da agenda pública em prol de disputas partidárias deste governo golpista, como se a política que tivesse instituída não fizesse parte de um projeto construído pela sociedade junto com o governo brasileiro. Concebemos a extinção do Ministério, assim como o deslocamento da Secretaria [da criança] como equívoco de concepção política e de enfoque de direitos – que justiça é essa? Por que está abaixo de um mistério que controla, que é policialesco e militarizada. Todos os movimentos e organizações percebem este grande equívoco, ainda mais com este ministro de justiça”, denuncia Fábio.

O ministro mencionado é Alexandre de Moraes. Assim que seu nome foi publicado para assumir a pasta da Justiça e Cidadania, diversas organizações de defesa de direitos humanos manifestaram oposição pelo fato de que Alexandre, também advogado e jurista, ter representado, pelo seu escritório, em mais de uma centena de ações uma cooperativa de transportes investigada por supostas ligações com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), durante o período que esteve à frente da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. A postura repressora de sua gestão à manifestações populares também foi destacada pelas organizações sociais.

Para a deputada federal, Maria do Rosário (PT-RS), ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República no período de 2011 a 2014, a nova localização da política da infância e adolescência implica não apenas um menor lugar da política de defesa e proteção desta população como também para a ação do Estado orientada para o recrudescimento e criminalização dos movimentos populares.

“Onde está a pasta dos direitos humanos? Onde estás a secretaria de direitos da criança e adolescente? Onde estão os conselhos? Estão subsumidas em Mistério da Justiça que é Ministério, mais do que nunca neste governo Temer, do controle sobre os movimentos populares, causas e lutas. O que estamos perdendo em termos de política é pouco perto da possibilidade e da construção real de perda para crianças reais, quando, por exemplo, estabelece 20 anos de congelamento na educação e saúde, quebram política de seguridade e assistência social. Estas ações afetam diretamente as crianças e adolescentes”, destaca Maria do Rosário.

Rosário refere-se à Proposta de Emenda Constitucional 241/2016, apresentada por Temer em maio deste ano, que estabelece um novo regime fiscal para gastos com saúde e educação. A PEC aguarda parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e encontra forte resistência dos movimentos populares pela avaliação de que, articulado a mais ações do governo interino, resultará no desmonte das políticas das áreas, como a extinção do SUS.

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