Cabe ao povo criar o significado revolucionário da palavra ‘Cultura’, afirmam debatedores

Seminário trouxe os desafios da cultura na atual luta de classes, durante o Festival de Artes e Cultura da Reforma Agrária.

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Por Maria Aparecida
Da Página do MST

Fotos: Leandro Taques

Talvez um dos conceitos que mais tenha definições em qualquer dicionário, e mesmo assim seja o mais difícil de ser compreendido, seja a palavra “cultura”. Numa grande síntese e correndo risco de sermos simplistas, poderíamos resumi-la no “saber fazer de um povo”. 

Porém, Cristina Bezerra, professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), preferiu discorrer sobre “a história de uma palavra”, referindo-se aos conceitos de cultura, passeando cronologicamente por algumas das definições do termo, desde a reprodução da vida até o conceito de cultura como expressão artística.

Cristina foi uma das participantes do seminário sobre os desafios da cultura na atual luta de classes, que aconteceu, neste sábado (23), no auditório do Minascentro, em Belo Horizonte (MG), durante o Festival de Artes e Cultura da Reforma Agrária.

Para ela, o primeiro conceito, que ela chamou de “sentido” está ligado diretamente à cultura como produção da existência. “Primeiro sentido da palavra cultura tem a ver com as ciências naturais, com a capacidade que o homem tem de cuidar da natureza. É a cultura como cuidado, como cultivo, como capacidade de tirar da natureza o que ele precisa, de fato, para sobreviver”, afirma.

É neste sentido que ela define o nascimento da cultura pelo trabalho, da relação do ser humano com o trabalho e que, por isso, é fundamental que “a primeira coisa que nós, enquanto trabalhadores e trabalhadores saibamos é qual a nossa intenção com a natureza”.

Outro elemento, segundo a professora, seria a relação social ao se produzir cultura. “Quando o ser humano descobre que pode produzir cultura, ele passa a se relacionar com outras pessoas, se relacionar socialmente. Ele se descobre também como ser cultivável”, aponta.

Para ela, a palavra cultura também toma outro sentido porque o ser humano aprendeu a ler a realidade em que vive, com a criação de hábitos, de costumes, e por isso foi criando elementos de pertencimento, ao mesmo tempo em que surgem elementos de exclusão. “Passa a criar projetos em comum, e coisas que as pessoas não desejam fazer, se excluem”, explica. “Nessa relação, a cultura nos dá, então, consciência”.

Todavia, “se a cultura vem do trabalho, ela vem do social, então, não há, de maneira alguma, uma cultura desinteressada. Ela está o tempo todo disputando as nossas cabecinhas”, concluiu. 

É dessa forma que Cristina trouxe questionamentos sobre o papel da cultura para a classe trabalhadora, para que possamos refletir a todo momento. “Qual cultura querem os trabalhadores? Que cultura expressa os nossos projetos? Que tipo de cultura queremos construir enquanto trabalhadores? […] Somos sujeitos de cultura, e então, cabe a nós todo o significado revolucionário que ela contém”.
 

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O artista enquanto um trabalhador

A cantora Titane, integrante do Movimento Cultural BH e também presente na mesa, partiu de sua experiência pessoal no campo da música para apresentar seu entendimento sobre a cultura e o artista. 

Para ela, “o artista é, antes de tudo, um trabalhador. Nos processos artísticos tem esse elemento de troca, mas não pode ser só isso, como alguns processos que são criados para fama e dinheiro, em que a arte é conhecida como sendo apenas uma carreira artística”.

Segundo ela, a arte para a classe trabalhadora, contestatória, “é uma forma de dizer coisas desagradáveis, de fazer denúncias. Porque é uma forma de liberdade. Às vezes, pode ser terrível para o próprio artista ter que fazer algumas coisas”, comenta.

Isso porque no modo de produção capitalista, na denominada indústria cultural, se escolhe um artista enquanto se neutraliza tantos outros. “Não é do interesse dessa indústria que tenha mais pessoas, por isso criam e personificam determinada pessoa para transformá-la na artista ou no artista da vez”, afirma Titane. 

Independente do trabalho desenvolvido pela indústria cultural, porém, Titane acredita que “quem inventa, quem cria, é quem está na vida real, no dia a dia e não essa indústria”. O que ela faz seria apenas se apropriar dessa criação, destacou a cantora.
 

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A cultura e a luta pela terra

“O papel da cultura tem que ser conversado com três coisas: a luta pela terra, a luta pela Reforma Agrária e a luta pela transformação social, o Socialismo”. Essa foi a intervenção de Júlio Moretti, do coletivo nacional de Cultura do MST, ao trazer a discussão realizada há alguns anos no MST sobre o tema. 

“Toda sociedade tem regras, padrões, formas de explicar o mundo e estas funcionam de acordo com aqueles que dominam, que detém o poder da voz, dos meios de produção”, acrescentou Júlio ao explicar onde estamos inseridos na discussão e desenvolvimento dos processos culturais.

Por essas questões, Júlio acredita que é preciso que a classe trabalhadora esteja atenta a alguns pontos fundamentais para o desenvolvimento do trabalho. “Como, no nosso fazer artístico, criamos práticas que neguem as normas vigentes na sociedade capitalista? Como é que no nosso cotidiano conseguimos ter práticas coletivas e que neguem a sociedade vigente? Como construímos novos aspectos da cultura? Como conseguimos construir, dentro dos nossos territórios, uma cultura de constranger eu, o camponês, quando uso dos mesmos mecanismos que os opressores?”, questionou.

Para ele, é muito difícil criar formas diferentes dentro de uma sociedade que já está muito naturalizada desde décadas. “Para nós a cultura é isso, disputar as formas pelos quais nós vivemos, por uma sociedade mais justa.

Por isso, o MST também acredita na capacidade da arte de embelezar e denunciar ao mesmo tempo, isto é, ao mesmo tempo que é de contemplação, é de resistência”, refletiu.

“Já que estamos no Festival, vamos falar um pouquinho dele, para que saibam como é difícil fazer o debate da arte em muitos espaços da classe trabalhadora. Não temos classificação no nosso Festival. Nisso chegamos depois de muita discussão, de muita construção coletiva. Mas o que está introjetado e acabamos naturalizando são as competições, desde crianças, nas brincadeiras”.