A mídia e a política usam da narrativa jurídica para criminalizar, apontam especialistas

Em seminário em Brasília, profissionais do direito e da comunicação problematizam a progressiva criminalização dos movimentos populares pela ação articulada entre judiciário, legislativo, executivo e mídia.

 

Por Lizely Roberta Borges
Da Página do MST 

A aprovação de leis recentes no ordenamento jurídico, associado ao crescente conservadorismo, o desmonte da política social com ações do governo interino de Michel Temer e a histórica violação do direito à comunicação da população constituem um sólido alicerce para a progressiva criminalização de lideranças políticas e movimentos populares na luta pela defesa de direitos.

Esta foi uma das reflexões presentes no seminário Liberdade de expressão e criminalização em tempos de golpe, realizado no dia sábado (23), em Brasília, Distrito Federal, pelo Comitê no Distrito Federal do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). A atividade reuniu jornalistas, comunicadores, movimentos populares, advogados e ativistas da cultura.

A prisão de lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), no estado de Goiás, nos meses de abril e maio deste ano, é exemplar da ação articulada entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, amparados pela mídia comercial, na criminalização da luta social.

No dia 14 de abril deste ano o agricultor Sem Terra Luiz Borges Batista foi preso numa ação coordenada entre Secretaria de Segurança Pública de Goiás, Comarca de Santa Helena e agronegócio estadual em repressão à ação do MST para acelerar a destinação das áreas da Usina Santa Helena de Açúcar e Álcool, ocupadas pelo Movimento e declaradas área pública. Já no dia 31 de maio o intelectual e militante pela reforma agrária José Valdir Misnerovicz, que se encontrava em Veranópolis, no Rio Grande do Sul, foi surpreendido por uma operação articulada entre a Polícia Civil do Rio Grande do Sul e de Goiás para sua prisão.

No mês de junho a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás negou os pedidos de habeas corpus para Luiz e Valdir para que pudessem responder os processos em liberdade. Os dois seguem presos na Casa de Prisão Provisória (CPP) de Rio Verde e no Núcleo de Custódia do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, respectivamente. As lideranças estão presas sob argumento de pertencerem a “organizações criminosas”, com amparo pela Lei 12.850, de 2013. Conjuntamente com a Lei de tipificação do terrorismo (nº 13.260/16) sancionada em março deste ano, a criminalização dos movimentos populares ganha sustentação jurídica.

De acordo com advogada Carla Guareschi, da Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP), a criminalização dos movimentos populares sempre existiu. O cenário atual passa a ser ainda mais preocupante porque há agora, com as leis citadas acima, um amparo jurídico na ação política de enquadramento criminoso aos movimentos populares, cidadãos e lutas.

Ela exemplifica a relação entre a política e o judiciário na negação do direito à moradia urbana: “Para reintegrar um terreno no meio de uma cidade, uma área que não era objeto de interesse do mercado imobiliário, e passa a ser porque é central, apesar de você saber que o interesse por traz da reintegração é político, ou seja, tirar as famílias dali porque as famílias pobres não devem ter direito a área nobre e a pobreza deve estar na periferia, que grandes empreiteiras financiam os poderes locais e que há especulação imobiliária, ou seja, apesar de ter a leitura política do que está em jogo, você precisa do fundamento jurídico para sustentar o política, da narrativa jurídica de que a propriedade deve prevalecer sobre o direito à moradia destas famílias”, pontua Carla.

Construção da opinião pública e mídia

Carla destaca que tanto o poder judiciário quando as mídias utilizam do discurso da neutralidade para manter o poder estabelecido. O argumento da neutralidade, um dos dogmas do jornalismo frequentemente utilizado pelos proprietários da mídia comercial brasileira, invisibiliza os interesses de quem constrói as narrativas. Neste sentido, a comunicação produzida pelos movimentos populares é importante na construção de uma contra narrativa à criminalização engendrada pelos diferentes poderes articulados com a mídia comercial.

Ao tomar como exemplo o despejo de um grupo de militantes no Hotel Torre Palace, na área central de Brasília, realizado em junho com forte aparato policial, o professor do Centro Universitário de Brasília, Luiz Claudio Ferreira, destacou a inversão de posição dos integrantes do Movimento Resistência Popular (MRP) na construção de narrativa pela mídia – de defensores do direito à moradia para criminosos e ameaças ao Estado.

O professor analisou a cobertura do despejo pelos veículos privados de comunicação, principalmente a televisão, e destacou o uso insistente de palavras e ideias como invasor e obstrução do trânsito. Sem a apresentação da história do local, da defesa do direito à moradia digna prevista na Constituição Federal e na humanização das pessoas retratadas, colaborando para uma qualificação do debate público, a opinião pública se sustenta na posição dos poderes estabelecidos. “Nossa narrativa é feita de recortes, manipulações e distorções. Do ponto de vista da responsabilidade que temos como agentes dos discursos estamos falando de lugares de fala de pessoas privilegiadas, o tempo inteiro. É um discurso político. O fio da narrativa acontece a partir das versões da política e do governo. É um discurso político”. Carla complementa que a opinião pública também utiliza do discurso do judiciário como base de argumentação, ainda que não o compreenda.

O seminário também abordou como que a violação da privacidade, a vigilância da informação e o direito de resposta, tanto pelo cidadão comum como estratégia de judicialização da blogsfera, servem à criminalização social. A reflexão teve a contribuição da jornalista do blog Socialista Morena, Cynara Menezes, da professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Liliane Machado e dos advogados Marcelo Chilvalquer, Antônio Rodrigo Machado e John Razen, do Sindicato dos Jornalistas do DF e diretor do Instituto Beta para a Internet e a Democracia (Ibidem), os dois últimos.