Assentamento Contestado, laboratório de organização popular e de agroecologia

Comunidade é referência em agroecologia e desenvolve experimentos nas áreas de educação, saúde, agricultura, organização coletiva e trabalho cooperativo

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Por Michele Torinelli
Da Vida Boa

Município da Lapa, Paraná. Cerca de 150 famílias habitam uma área de mais de três mil hectares. Antigamente essa terra pertencia a uma pessoa só, o Barão de Serro Azul, e depois foi parar nas mãos de uma indústria de cerâmica. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) descobriu que a empresa tinha uma grande dívida com a União e ocupou a terra em 1999, reivindicando que fosse destinada à reforma agrária. Eram trinta famílias debaixo de lona preta. E, mesmo sob conjuntura desfavorável, com Jaime Lerner no governo do estado e Fernando Henrique Cardoso na presidência, em poucos meses a terra foi conquistada.

A proposta, desde o início, era promover um assentamento voltado para a produção orgânica – na época, nem se utilizava o termo “agroecologia”, como revelou Antônio Capitani ao jornal Brasil de Fato. Outras famílias foram chegando e hoje mais de 80 possuem hortas orgânicas certificadas. Elas formam a Cooperativa Terra Livre, que engloba outros agricultores do município, somando mais de 250 associados.

Para além da cooperativa, o assentamento abriga a Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA), iniciativa do MST junto à Via Campesina que há dez anos recebe militantes de todo o subcontinente para que possam aprender e disseminar agroecologia. Para dar conta da educação formal das crianças e dos jovens assentados, há uma escola estadual, outra municipal e uma ciranda para os mais novos.

Contudo, os espaços de formação são múltiplos, assim como as práticas agroecológicas. O movimento promove cursos e encontros, como a Jornada de Agroecologia, cuja 15ª edição ocorreu recentemente na Lapa, a alguns quilômetros do assentamento, reunindo mais de três mil campesinos e militantes para aprender, celebrar, divulgar e trocar experiências de agroecologia, organização coletiva e transformação social.

Outras práticas que têm ganhado força na comunidade são agrofloresta e bioenergia. Ouvi a conversa de dois agricultores durante a Jornada – eles estavam sentados num banquinho comentando a programação e, diante das várias oficinas de agrofloresta que seriam realizadas, um explicou para o outro: “agrofloresta é pra gente ter o que comer e viver na sombra”. Nada mais simples e verdadeiro!

Participei da Jornada e da oficina de bioenergia realizada no assentamento Contestado durante o evento. Depois da Jornada, vim passar alguns dias na comunidade. Conheci um pouco do cotidiano local e do trabalho dos agricultores, e vi que tanto a agrofloresta quanto a bioenergia fazem parte de suas rotinas diárias.

Agrofloresta, cultivos orgânicos e bioenergia: saúde da terra e da gente
 

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Conversa entre os coordenadores do assentamento Simone Rezende e Antônio Capitani, a comitiva da Venezuela, Lyrca e eu.

Também da Jornada vieram direto para cá Lyrca, catalã que atua em Ubatuba com organização comunitária e distribuição de cestas orgânicas, e três venezuelanos – María, Reni e Franklin – que trabalham com políticas de agricultura em seu país e vieram absorver um pouco da experiência do movimento. Ficamos alojados na ELAA, e pude acompanhar os hermanos latino-americanos em suas visitas aos agricultores – sendo que Lyrca logo partiu.

María ficou impressionada com a organização dos campesinos. “Percebe-se que a ordem e o planejamento são princípios desse assentamento”, comentou por sermos recebidos pelos agricultores com materiais informativos e apresentações estruturadas de seu trabalho, seja em formato impresso ou digital. Assim como aprenderam com outros, eles dispõem de seu tempo para receber visitantes e difundir sua experiência. Tiveram oportunidade de aprender a sistematizar seu conhecimento, e replicá-lo faz parte da dinâmica do movimento.

O primeiro a nos receber foi Elias de Souza, agrofloresteiro que participa da comunidade desde o começo. Ele foi assentado há dez anos – antes disso, passou dois anos acampado e três anos no alojamento da ELAA. Ele não fez o curso de tecnólogo em agroecologia formalmente, mas acompanhou grande parte das aulas, oficinas e debates, e diz que tudo o que sabe e aplica hoje aprendeu lá e nas Jornadas de Agroecologia – das 15 edições, ele conta que perdeu apenas duas. Além de labutar na sua agrofloresta, ele coordena o grupo de agroecologia e certificação participativa da cooperativa.

Filho de agricultor, ele conta que seu pai, que hoje está com 60 anos, nunca mexeu com veneno. Ele plantava diversos cultivos, de forma consorciada, sem nunca ter ouvido falar de agrofloresta. “Os antigos faziam agrofloresta e nem sabiam”, acredita Elias. Ele conheceu essa técnica no assentamento do MST em Morretes (PR) e em Barra do Turvo (SP), onde fica a Cooperafloresta, cooperativa da qual o movimento também participa, e ficou encantado. Hoje ele cultiva dez hectares de horta, pomar e agrofloresta.

Elias fala da necessidade do movimento se especializar em sementes, e diz que tirou cinco pés de cenoura, os mais bonitos, para separar suas sementes e ir testando e replicando. Não é um trabalho fácil, mas vem sendo desenvolvido pelo movimento principalmente através da Bionatur, uma rede de comercialização de sementes agroecológicas com sede no Rio Grande do Sul. “A agrofloresta é um banco vivo de sementes, porque guardando muitas vezes apodrece”, defende.

O sistema agroflorestal adapta a dinâmica da natureza para o cultivo planejado de alimentos, combinando o plantio de árvores com plantas de médio e pequeno porte. Assim os cultivos se alternam e há sempre alguma espécie produzindo. “Tudo que eu plantar dentro do meu sistema eu posso cortar. Aqui eu corto uma e planto vinte. Eu não posso ir no mato e cortar um pinheiro, mas aqui eu posso”, argumenta Elias. “A gente faz um trabalho com muita responsabilidade, com muito respeito pela natureza”, complementa.

Para o agricultor, o grande segredo da agrofloresta está em saber combinar os cultivos, saber quais espécies combinam entre si e distribuir da maneira mais apropriada nas linhas – o que a teoria pode ajudar a fazer, mas só a experiência ensina de fato. Ele explica que o milho, por exemplo, pode ser plantando com quase qualquer planta; repolho combina com cenoura, beterraba e cebolinha; e por aí vai.

Mas a transição para a agroecologia envolve outros fatores além da técnica – é uma mudança na visão de mundo, e até na perspectiva de produção e renda. “Dinheiro é bom, a gente precisa dele. Mas pra viver, antes a gente precisa comer. Então se a gente planta, a gente já tem o que precisa, e tira o dinheiro do excedente”, explica Elias.

Sua esposa nos saudou quando chegamos e nos ofereceu um suco na saída, mas ficou dentro de casa. Elias explicou que ela tem um problema nos olhos e não pode pegar muita luz direta – segundo os médicos, já era para estar cega, mas tem se tratado no assentamento com bioenergia.
 

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Júlia e os morangos agroecológicos.

No dia seguinte fomos visitar Odair Trisote e Júlia Marigold, agricultores cujo carro-chefe é o morango orgânico, que vendem sob a marca Aromas. Odair nos mostrou uma apresentação digital em slides que preparou para a oficina que deu durante a Jornada de Agroecologia, e explicou minuciosamente como fazer o cultivo.

A família planta morango intercalado com alface – para cada muda de morango, planta-se duas de alface. O alface é colhido antes, e em seu lugar é plantado um talo tirado do moranguinho ao lado, que é a mudinha. E assim um pé de morango se transforma em três. Eles estão testando plantar intercalado com tomate também.

Sua filha, Ana Paula, ajuda na lida e está fazendo um documentário sobre o cultivo de morangos orgânicos. Seu outro filho, Matheus, está fazendo o curso de administração de cooperativas no Rio Grande do Sul e trabalha na cooperativa de arroz orgânico do movimento.

Na sequência fomos visitar Edson Chagas, que eu já havia conhecido na oficina de bioenergia. Quando chegamos ele estava debulhando sementes de mostarda crioula. Disse que faz bastante tempo que não via dessas, e que encontrou numa Jornada uns dois anos atrás – plantou e deu certo. “É bem saborosa, bem picante”, conta ele, que explica que uma maneira de prepará-la é germinar a semente e desidratá-la: vira um tempero que substitui o sal.

Ele nos mostrou sua agrofloresta – e tal como com os outros agricultores, fomos percorrendo as linhas, identificando as plantas e conversando sobre elas. Levamos adubo para jogar num novo canteiro, e utilizamos a bioenergia para perguntar para a terra o que deveria ser plantado ali e como. Edson tirou seu pêndulo, colocou a mão na terra e, dependendo do movimento que o cristal fazia, a resposta era “sim” ou “não”.

E assim foi perguntando: “planto beterraba?” Sim. “Quatro linhas?” Não. “Três?” Sim. Desse modo chegou-se ao desenho de três linhas de beterraba intercaladas com duas linhas de alface, duas carreiras de milho pipoca nas bordas e uma carreira de girassol ao centro. O pêndulo também confirmou que seria interessante por mais cinza na terra e palhada por cima depois de plantar.

Todos os agricultores pelos quais passamos ou fazem algum tratamento com bioenergia, ou já fizeram, ou têm algum parente que fez ou faz. Edson atua no setor de saúde do assentamento, no qual junto a alguns colegas, como Maria Natividade de Lima, atende à comunidade e difunde os saberes e os tratamentos por meio de plantas, da alimentação e outras técnicas complementares – como auriculoterapia, as sementinhas que são colocadas em pontos estratégicos na orelha.

Esse trabalho é feito como contribuição ao movimento – todo mundo participa de algum setor, seja de saúde, educação, produção, comunicação e cultura, esporte ou finanças. Perguntei se ele cobra quando alguém faz um tratamento contínuo com ele. Edson respondeu que algumas pessoas cobram, às vezes apenas para cobrir os custos, mas que ele entende que, como teve a oportunidade de aprender tudo isso de graça através do movimento, também deve repassar de graça.

Nossa última visita foi à casa de Israel Guilherme da Silva e Leila Maria Rita, que estavam colhendo, lavando e amarrando maços de couve para repassar à cooperativa – o caminhão passaria em breve para buscar. Todos os agricultores associados têm a venda de sua produção garantida pela cooperativa, que repassa para a prefeitura por meio de programas como PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar. Ou seja, essa produção agroecológica vai direto para a mesa de escolas e hospitais.

O casal veio há dois anos morar com o irmão de Israel, que está no assentamento desde o início. Israel não conhecia essa técnica, passou a praticar por meio dos projetos aplicados na comunidade, como o Agroflorestar, e hoje sua agrofloresta tem um ano. Mas o agricultor conta que no fundo já conhecia essas práticas, porque seu pai plantava milho intercalado com mamona, e podava o mamoneiro para adubar o milho. E dava bem. Depois sua família começou a trabalhar com monocultivo e insumos químicos, de acordo com o sistema disseminado com a chamada Revolução Verde a partir da década de 1970. A ambição foi crescendo, os riscos também, e o negócio desandou. Foram à falência e tiveram que ir para a cidade buscar trabalho e renda.

Ele trabalhava com construção civil, e ainda faz algumas diárias no assentamento – recentemente ajudou na construção do galpão da cooperativa. Mas aqui o esquema de trabalho é outro: o movimento estimula a troca de serviços e a cooperação. “Mesmo tendo algum teimoso no meio, algumas desavenças, a gente tem que ir tentando, porque até entre casal tem conflito! O negócio é não reparar muito nos defeitos dos outros, e sempre tem que ter uns guerreiros no meio pra gente conseguir seguir adiante”, conta Israel.

O assentamento é organizado em núcleos, que são divididos geograficamente por área e congregam de 10 a 15 famílias. O núcleo onde vivem é o único da comunidade que se organiza sob forma de agrovila – ou seja, as casas ficam pertinho umas das outras e há alguns cultivos comuns, como a horta mandala. Zé Luiz, irmão de Israel, contou que o projeto inicial do assentamento previa que fosse todo organizado desse jeito, em agrovilas, mas que trata-se de uma disputa dentro do movimento, e de cada comunidade, de como se organizar.

Israel, além de ter feito tratamento bioenergético, já fez alguns dos cursos de bioenergia oferecidos no assentamento. Mas conta que não consegue fazer a checagem, ou seja, o diagnóstico – nem todo mundo consegue. É uma questão de sensibilidade, de ser tranquilo e concentrado, revela.
 

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Horta mandala coletiva.

Outro modelo de educação é possível

Quando eu e Lyrca chegamos ao assentamento, fomos recebidas por Anerson, estudante da República Dominicana que também trabalha na ELAA. A escola, que já formou três turmas, surgiu há dez anos em parceria com o ITFPR – Instituto Técnico Federal do Paraná e oferece dois cursos superiores reconhecidos pelo MEC. Anerson cursa o de tecnólogo em agroecologia. O outro curso é de licenciatura em educação do campo, ciências da natureza e agroecologia. A quarta turma conta com estudantes do Brasil, Paraguai, Bolívia, Chile, Argentina e República Dominicana.

Simone Aparecida Rezende, da coordenação pedagógica do MST, explica que a proposta de educação da ELAA se divide em três eixos – acesso ao conhecimento científico; conhecimentos populares; e troca de saberes entre os povos da América Latina – e está calcada na pedagogia do oprimido de Paulo Freire e no materialismo histórico. “Brincamos que formamos ‘militantes-técnicos-pedagogos’ em agroecologia, porque educação e agroecologia não podem estar desvencilhadas”, conta Simone. “Não queremos formar só técnicos, mas um ser humano melhor”, agrega. A coordenadora destaca que o projeto Escola Sem Partido, que tramita no Congresso Nacional, é antagônico à proposta educacional do MST e demonstra como o período político pelo qual passamos é “temerário”.

O modelo de ensino da Escola funciona no sistema de alternância, como outros cursos do movimento. Isso significa que o estudante passa um período em sua comunidade e outro período na Escola, de maneira alternada, para que possa replicar o conhecimento em sua comunidade e para que os cursos atendam à demanda de várias regiões. Sendo assim, os cursos na ELAA são intensivos e os estudantes moram na escola durante o período de aulas – por isso a ELAA conta com estrutura de refeitório e alojamento.

A ELAA é uma proposta que surge da Via Campesina, uma articulação mundial de movimentos camponeses, em 2005 no Fórum Social Mundial em Porto Alegre e região, quando Hugo Chávez esteve presente. O projeto abarcava duas escolas, uma no Brasil e outra na Venezuela, que também se consolidou – é a IALA – Instituto de Agroecologia Latino Americano Paulo Freire. Existem outros IALAs: o Guarani no Paraguai, um no Chile voltado para as mulheres e outro na Colômbia, inaugurado esse ano – além de experiências no Equador, Guatemala e Argentina.
 

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O desafio agroecológico no Brasil de hoje

O debate da agroecologia começou no MST no ano 2000 a partir da auto-crítica de estar fazendo a reforma agrária reproduzindo o modelo praticado pelo agronegócio: uma agricultura degradante e dependente das grandes empresas. A formação em agroecologia apareceu então como uma necessidade. “É um debate de visão de mundo, de relações, e isso pega nas contradições”, explica Simone.

A coordenadora destaca que é um desafio popularizar a agroecologia: trata-se de uma mudança na relação com a natureza, entre as pessoas, com a comunidade. É uma proposta que está em construção – e, sendo assim, em disputa, inclusive no que tange às políticas públicas. “Você vai no banco e não tem linha de financiamento para a produção orgânica, muito menos para agroecologia”, relata. E para popularizar a agroecologia, é preciso que haja política pública para isso, defende Simone.

Mas a conjuntura atual não é nada favorável: o fato é que até as políticas públicas para a agricultura familiar que já existem estão em risco. “Esse golpe não pegou só a Dilma, mas toda a esquerda, e o que nos coloca é que a esquerda não deu conta de pensar o Brasil”, entende Simone. E a agroecologia vem contribuir também nesse viés, na reflexão acerca do sentido da luta social – e na crítica ao neodesenvolvimentismo. “Nós nunca achamos que a via eleitoral ia resolver o Brasil. Nós nunca saímos das ruas, nunca deixamos de ocupar a terra”, lembra Simone.

O assentamento Contestado é modelo dessa luta, exemplo não só da mudança estrutural que a sociedade precisa por meio da reforma agrária, mas da construção de um modelo de organização social calcado na cooperação, na ecologia e na emancipação humana – princípios defendidos e aplicados por meio da agroecologia.

 

 

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