Patrícia Pelatieri, do Dieese, critica impactos da Reforma da Previdência no campo

"Há uma condição muito diferenciada entre os trabalhadores do campo e da cidade, no que diz respeito à inserção no mercado de trabalho"

 

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Patrícia Pelatieri, coordenadora de pesquisas do Dieese/ Divulgação

 

Por Leonardo Fernandes 
Da Página do MST

O golpe de 2016, praticado por uma casta de homens brancos e ricos, tem promovido uma série de ataques contra a classe trabalhadora do campo e da cidade. A suposta ‘reforma da Previdência’, considerada um golpe no sistema previdenciário brasileiro é a mais nova e grave medida do governo ilegítimo em sua retirada de direitos do povo brasileiro, e as mais afetadas são as mulheres.

Patrícia Pelatieri, coordenadora de pesquisas do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), explica em entrevista exclusiva os impactos do projeto de reforma da Previdência, proposto pelo governo de Michel Temer. Segundo Patrícia, as mulheres, especialmente as mulheres camponesas sofrerão os maiores impactos na modificação dos critérios para o acesso aos benefícios da Previdência. Além disso, alerta para os efeitos indiretos, mas igualmente perigosos, caso a medida seja aprovada: o aumento do êxodo rural, o empobrecimento massivo e redução drástica da produção de alimentos do país.

Leia a entrevista: 

Como funciona o sistema previdenciário hoje?

O sistema previdenciário hoje faz parte de um Sistema de Seguridade que pensa outras partes da proteção além da aposentadoria, ou seja, a assistência social e a saúde, de maneira complementar. E ele é um sistema baseado na solidariedade e foi pensado assim no momento de incluir esse direito na Constituição de 88.Depois de uma luta muito dura conseguimos chegar à constituinte, amparados pelos princípios dos direitos universais, ou seja, dos direitos iguais para todos. Então, no que se refere ao Sistema de Seguridade, a Constituição de 88 tentou dar conta dessa igualdade.

Porque há tratamento e regras diferenciadas para homens e mulheres, urbanos e rurais?

Porque as condições de inserção no mercado de trabalho de homens e mulheres, urbanos e rurais são muito diferentes. Isso sem levar em conta as diferenças regionais, locais. Tudo isso transforma o Brasil em um país de muita desigualdade. Portanto, ao pensar regras que levem em conta essas desigualdades, é possível tratar os diferentes de maneira mais igualitária.

Quem serão os maiores impactados pela reforma da Previdência, apresentada pelo governo de Michel Temer?

Essa reforma, como foi apresentada, afeta de maneira muito prejudicial a todos os trabalhadores: homens, mulheres, urbanos, rurais, servidores, ou seja, todos, indiscriminadamente. Mas essa reforma afeta mais fortemente, de maneira negativa, às mulheres, e especialmente às mulheres do campo.

Há uma condição muito diferenciada entre os trabalhadores do campo e da cidade, no que diz respeito à inserção no mercado de trabalho. Ou seja, o trabalhador rural entra muito mais cedo no mercado de trabalho. Os dados da PNAD, a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio, do IBGE, de 2014, mostra que 70% das mulheres do campo com até os 14 anos de idade já estavam trabalhando. No caso dos homens, esse número é ainda maior: 78%. Diferente do urbano que, em 2014, 34% das mulheres da cidade e 45% dos homens estavam ocupados. O que também é muito alto. Então essa ideia de que o trabalhador brasileiro começa sua vida laboral mais tarde, aos 23 anos – e é esse o argumento do governo: que ele pode aposentar com 65 porque começou com 23 – não é verdadeiro. Temos hoje um contingente enorme de trabalhadores que começa a trabalhar antes dos 14 anos. E no caso dos trabalhadores rurais, é um percentual muito alto: 70% das meninas começam a trabalhar antes dos 14 anos, e quase 80% dos meninos. Então ao se estabelecer uma idade mínima igual para trabalhadores urbanos e rurais, simplesmente se ignora essa diferença.

No caso das mulheres, a proposta do governo desconsidera o fato de que as mulheres recebem salários cerca de 30% menores. E isso não tem a ver com escolaridade, porque, no geral, as mulheres são mais escolarizadas do que os homens. E nós estamos falando de salário-hora, ou seja, não podemos justificar o salário menor para as mulheres porque cumprem menor jornada… e elas ficam menos tempo no mesmo posto de trabalho do que os homens, ou seja, elas tem uma vulnerabilidade maior e consequentemente mais dificuldade para comprovar o tempo de contribuição, pois há espaços maiores na sua vida laboral, tanto no campo como na cidade.
No caso do campo, a diferença entre homens e mulheres é ainda maior, se levamos em consideração o que chamamos ‘trabalho reprodutivo’, que é o trabalho muitas vezes invisível, que é absolutamente necessário para a sobrevivência da humanidade.

Em 2014, 96% das mulheres trabalhadoras do campo afirmavam que, além de cumprir o trabalho produtivo, também eram responsáveis pelos afazeres domésticos. Enquanto o percentual de homens foi de 48%. Essa diferença também existe na cidade, mas é um pouco menor. Nesses afazeres domésticos, as mulheres se dedicaram 19.1 horas por semana, enquanto os homens, 5.1 horas semanais. Veja bem a diferença: estamos falando de 14 horas de diferença de trabalho.

Além disso, há uma parte do trabalho produtivo no campo, a chamada produção para o autoconsumo, ou seja, a horta, o galinheiro, e que normalmente fica a cargo das mulheres, muitas vezes é considerada uma extensão do trabalho doméstico. Então é um trabalho que não é computado, mas que também é um trabalho produtivo. Nesse sentido, há um subdimensionamento inclusive das pesquisas no campo devido à falta de pesquisas, e também por conta dessa abordagem que não dá conta do diferencial da realidade do campo.

O atual sistema leva em conta o trabalho reprodutivo desempenhado majoritariamente pelas mulheres?

O sistema que temos hoje leva esses elementos em consideração até certo ponto. Talvez não exatamente como seria o ideal, ou o mais justo. Juntando o trabalho produtivo com o trabalho reprodutivo, as mulheres trabalham, em média, oito horas a mais do que os homens. Isso é uma média geral para as realidades do campo ou da cidade. Seguindo a conta, a cada ano, as mulheres trabalham 73 dias a mais do que os homens, ou seja, um pouco mais do que dois meses. Ao final de 30 anos de trabalho, as mulheres terão trabalhado oito anos a mais do que os homens. É uma conta simples. Então essa diferença de cinco anos que temos hoje no acesso à aposentadoria é bastante razoável, contemplando de alguma maneira esse trabalho reprodutivo. É claro que podemos discutir como fazer essa aproximação, à medida que tenhamos ao longo de anos políticas que visem diminuir esse trabalho reprodutivo das mulheres, compartilhando entre todos. E isso tem a ver também com políticas públicas, ou seja, creches, escolas, o cuidado com os idosos.

O projeto do governo prevê novas exigências para o acesso ao benefício da aposentadoria para os produtores rurais. Quais as consequências dessas novas regras para os trabalhadores e trabalhadoras do campo?

Sem dúvida, esse projeto de reforma do governo excluirá grande parte dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais do sistema de proteção, ou seja, da possibilidade de aposentadoria. Porque ele soma dois critérios mínimos para ter acesso: ter no mínimo 65 anos, e isso vale para todos, homens, mulheres, urbanos e rurais… No caso das mulheres rurais, são dez anos de diferença do que existe hoje, pois atualmente elas podem se aposentar aos 55 anos; só que não basta chegar aos 65 anos. Segundo a proposta do governo, os trabalhadores e trabalhadoras rurais terão que comprovar que contribuíram por 25 anos, ou seja, 300 contribuições. Além disso, a proposta exige que sejam feitas contribuições individuais. Atualmente existe uma modalidade na constituição que é o assegurado especial, justamente para contemplar a agricultura familiar.

A agricultura familiar é a base de sustentação de toda a sociedade brasileira. E ela é feita pela família, pelo núcleo familiar, homens, mulheres e filhos. Isso ajudou a incluir a agricultura familiar no sistema previdenciário, ou pelo menos boa parte dela, porque ainda há uma parte que continua desprotegida, e incluiu as mulheres. Sabemos que se a família tiver que fazer a opção por uma contribuição individual, o escolhido, provavelmente será um homem. Pela renda líquida da família, mesmo que fosse uma contribuição mínima como é, por exemplo, os 5% cobrados ao chamado Microempreendedor Individual, grande parte das famílias camponesas não terá condições de cumprir com a contribuição individual de cada membro da família. Então não há dúvida que essa proposta exclui grande parte dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais do sistema de seguridade.

Isso pode provocar um aumento do êxodo rural? Quais os dados que o Dieese possui sobre a evolução da taxa de permanência no campo?

Os levantamentos que temos no Dieese são referentes ao último senso, feito em 2010, e que trazem os dados por faixa etária sobre a taxa de permanência da juventude no campo. Entre 1980 e 1991, ou seja, em uma década, entre os jovens de 15 a 19 anos, a taxa de permanência era de 60.6%. Entre os jovens de 20 a 24 anos 67.6%. E finalmente, entre aqueles que possuem de 25 a 29 anos, a taxa foi de 74.8%. Na década de 2000 a 2010, essas taxas foram bastante elevadas. Na faixa de 15 a 19 anos subiu para 65.7%. Entre os jovens de 20 a 24 anos foi de 76.5%. E de 25 a 29 anos, a taxa de permanência subiu para 84.3%. Esse crescimento teve a ver com o aumento da perspectiva de ter uma proteção social. O trabalho permanece no campo porque há uma perspectiva de futuro lá. Muitos jovens saem do campo porque não veem perspectiva de futuro. E é claro que não se trata só a previdência.

É preciso que isso esteja articulado com outras políticas para o campo. Mas a política previdenciária, que é a proteção que o estado deve garantir para quando o trabalhador perde a capacidade de produzir, é muito importante. Outra questão é que 68% dos benefícios rurais pagos hoje são destinados a pessoas que vivem em municípios com até 50 mil habitantes. E em 71% dos municípios, a transferência de recursos dos benefícios previdenciários no comércio de bens e serviços é maior do que o Fundo de Participação dos Municípios, que normalmente é a principal receita dessas prefeituras. Então isso significa um impacto nas cidades, um impacto regional que ainda não podemos sequer dimensionar. Retirar esses recursos desses municípios, e retirar essa população rural desses municípios vai significar também um empobrecimento urbano.

Como isso impactaria a produção de alimentos no país?

Uma grande parte da produção de alimentos é de responsabilidade da agricultura familiar. 87% da produção de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz é produzido pela agricultura familiar. Quando é retirado desse núcleo familiar a perspectiva de futuro através da sua produção, certamente isso terá como consequência uma queda significativa dessa produção. Porque a tendência é que os jovens saiam desse lugar, diminuindo a capacidade produtiva do núcleo familiar. Então certamente essa proposta terá um impacto muito negativo na produção de alimentos.

Ainda hoje existem trabalhadores e trabalhadoras desamparados do sistema previdenciário. Quantos são os trabalhadores do campo sem essas garantias? Esse número pode aumentar?

Da população rural economicamente ativa, ou seja de 16 a 59 anos, 82% estavam protegidas pelo sistema de seguridade em 2014. Evidenciando que houve um crescimento dessa proteção ao longo desses últimos anos, como consequência dessas novas modalidades de inclusão previdenciária. Do total de 10,6 milhões de trabalhadores e trabalhadoras camponesas que existem hoje no Brasil, cerca de 10%, ou seja, 398 mil trabalhadores rurais ainda seguem desamparados pelo sistema previdenciário. O que nós estamos alertando é que com essa proposta, esse número deve aumentar.

Isso tem a ver com o fato da maioria da população rural ter acedido ao beneficio previdenciário graças ao sistema de seguridade. Em 2015, 55% dos benefícios concedidos aos trabalhadores rurais foram para mulheres. Sendo que 96% dos benefícios concedidos aos trabalhadores rurais foram todos na modalidade ‘assegurados especiais’. O último dado que temos é de janeiro de 2016, quando 67% dos benefícios rurais concedidos foi por idade, 25% foi por pensão por morte e 5% foi aposentadoria por invalidez. Se somarmos esses três números, veremos que 97% dos benefícios concedidos na área rural foi na modalidade ‘assegurado especial’, que deixará de ser especial caso essa proposta seja aprovada.

Na sua avaliação, essa proposta de reforma elaborada pelo governo atende a quais interesses?

Para nós, que sempre analisamos sob a perspectiva do trabalho, é muito difícil de compreender como alguém pode ter a coragem de apresentar um projeto como esse. Porque com ele, condena-se o país a um empobrecimento que não é bom nem para o capitalismo. Embora o capitalismo não seja um sistema racional, já que a acumulação é sempre a prioridade. Analisando esse projeto como ele foi apresentado, podemos afirmar que o objetivo central é privatizar a Previdência, e só quem tiver capacidade de se bancar terá proteção na velhice. Estamos falando de impactos como o aumento da pobreza entre os idosos no Brasil, e tudo, objetivando atender aos interesses do sistema financeiro privado. Na verdade, muito ao contrário do que o governo diz, que está fazendo a reforma para manter a previdência, o que a gente percebe é que as pessoas que têm condições, optarão pela iniciativa privada, desestruturando todo o sistema público no Brasil.