“Tentamos medir a Venezuela com a mesma régua que medimos o Brasil”, alega Edson Bagnara

Coordenador da Brigada Internacionalista do MST na Venezuela fala sobre o trabalho do movimento para contribuir para a produção de alimentos no país.

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Por Leonardo Fernandes
Da Página do MST

 

Quando se fala em Venezuela, logo o tema da escassez de alimentos no país vizinho é retomado, ora para chamar a atenção para a gravidade da crise, ora para atacar o governo do presidente Nicolás Maduro, tratando de atribuir toda a responsabilidade sobre o problema ao mesmo.

Pouco se fala dos setores empresariais do país, que tem provocado uma verdadeira guerra contra o governo e o povo venezuelano, ocultando produtos, superfaturando mercadorias, e aplicando a política do ‘quanto pior melhor’. Menos ainda se aborda a história da economia venezuelana, que destruiu a cultura agrícola no país, transformando-o totalmente dependente da renda petroleira.

Foi justamente a renda petroleira que permitiu que o governo do ex-presidente Hugo Chávez promovesse transformações substanciais na vida do povo venezuelano na última década e meia, quando o preço do petróleo chegou a mais de 130 dólares o barril em 2008. Já a partir de junho de 2014, já no governo de Nicolás Maduro, esse valor sofre uma queda vertiginosa, atingindo os 30 dólares em janeiro 2016.

Para o coordenador da Brigada Internacionalista do MST Apolônio de Carvalho, Edson Bagnara, é preciso se despir de preconceitos para entender a realidade venezuelana. “Às vezes, tentamos medir a Venezuela com a mesma régua que medimos o Brasil”, afirma, ao fazer uma breve análise sobre a estrutura histórica da economia venezuelana.

Bagnara está há dois anos na Venezuela, onde coordena o trabalho internacionalista de solidariedade do MST no país. Em entrevista, ele conta como o movimento vem contribuindo para ajudar o país irmão a superar o modelo rentista, predominante há quase um século na economia venezuelana.

Confira a entrevista na íntegra:

Edson, quando o MST começou a fazer esse trabalho internacionalista?

Por volta de 2002, o MST começou um debate interno sobre a criação de brigadas de solidariedade, que na verdade é uma via de mão dupla, ou seja, serve para levarmos solidariedade a outros países, mas também ajuda a construir a conexão entre as organizações da classe trabalhadora dos mais diversos países, principalmente na América Latina. E é nesse contexto que surge a primeira brigada internacionalista do MST, justamente essa que está aqui na Venezuela, que é a Brigada Apolônio de Carvalho. Hoje temos outras brigadas na África, na Palestina… Aqui na Venezuela chegamos em 2005 com o primeiro desafio de construir o Instituto Latino Americano de Agroecologia (Iala) Paulo Freire, que funciona no estado de Barinas.

De lá pra cá, quais foram os projetos com os quais a Brigada se envolveu?

A Brigada tem desenvolvido uma série de atividades, que vão desde a formação até a produção agrícola. Temos projetos para a produção de arroz, feijão, sementes, além dos trabalhos de formação política ideológica. Uma das principais tarefas da Brigada nesse momento é a produção de sementes de grãos e hortaliças. No caso das hortaliças, há um grupo de técnicos brasileiros do MST no estado de Mérida, que faz um trabalho com os camponeses da região para a produção de sementes de hortaliças. Também fazemos intercâmbios para a produção de sementes de grãos com as experiências que construimos no Brasil.

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Escola de Agroecologia coordenada pelo MST

Há um grupo em uma área de produção de sementes de soja no estado de Roraima, um outro grupo no Mato Grosso do Sul, onde já iniciaram a produção de sementes de feijão, além de um grupo de cinco pessoas que se encontram na Bionatur, que é a nossa cooperativa de produção de sementes de hortaliças, no Brasil.

Outra tarefa da Brigada é a comercialização solidária entre as nossas cooperativas e as empresas venezuelanas. Além disso, fazemos o acompanhamento de 49 estudantes brasileiros que estudam medicina na Universidade Latino-americana de Medicina (Elam), localizada em Mariche, região metropolitana de Caracas. Também somos responsáveis pelas articulações políticas tanto com o governo venezuelano quanto com os movimentos populares venezuelanos.

De que modo a agroecologia pode ajudar a retomar a cultura camponesa da Venezuela em prol da soberania alimentar do país?

A cadeia completa da produção tem problemas. Mesmo saindo do plano da pequena agricultura, se formos olhar para o agronegócio, para a produção de commodities, não existe a cadeia de produção completa. A agroecologia pode ajudar, pois ela está inserida num sistema onde se produz dentro da própria unidade de produção todos os insumos que são necessários para produzir, ou seja, os inseticidas e fertilizantes naturais, as sementes crioulas… e isso ajuda a reduzir a dependência de insumos químicos, que muitas vezes é o que dificulta a produção de alimentos.

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A Brigada coordena hoje a Unidade de Produção Social e Agrícola (USPA) de Caquetíos, no estado Lara, que trabalha nas duas frentes: produção e formação. Conte-nos um pouco sobre esse projeto.

A UPSA tem uma área de 220 hectares no total. Atualmente já temos uma área irrigada de 30 hectares, que estão em plena produção. Nós estamos aqui nesse espaço desde 2013, mas só a partir de maio desse ano que o MST e a Brigada Apolônio de Carvalho assumiu de fato a responsabilidade de conduzir os trabalhos da escola. Antes disso, apoiávamos os trabalhadores da Unidade dando orientação técnica sobre os cultivos e articulando os recursos para realizar uma reforma no espaço, para que pudesse funcionar a escola. Dessa forma, conseguimos construir banheiros, cozinha, refeitório e alojamentos com capacidade de receber cerca de 60 pessoas.

O projeto da escola de formação, a princípio, estava mais voltada à formação política, mas como a Venezuela tem uma necessidade muito grande quanto à produção de alimentos, temos nos concentrado bastante na formação técnica.

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“Às vezes tentamos medir
a Venezuela com a mesma
régua que medimos o Brasil,
e isso é impossível.”

O tema da escassez de alimentos é bastante exposto pela mídia burguesa contra o governo venezuelano. Como o MST avalia essa situação no país?

Às vezes tentamos medir a Venezuela com a mesma régua que medimos o Brasil, e isso é impossível. Há mais ou menos 100 anos, tem exploração do petróleo na Venezuela. E podemos afirmar que desde o surgimento do petróleo no país, houve uma intencionalidade de transformar a Venezuela num país não agrícola e dependente da renda petroleira. E por que? Porque dessa forma é muito mais fácil de controlar. Ou seja, qualquer insurgência é muito mais fácil de conter, fazendo o que estão fazendo agora: reduzindo o preço do petróleo a nível internacional, asfixiando o país economicamente. É ir do céu ao inferno muito rapidamente.

Em 2012, o barril de petróleo custava entre 130 e 140 dólares, e em janeiro de 2016 chegou a 21 dólares. Fazendo uma comparação simples, é como se uma família tivesse uma renda mensal de três mil reais e passasse a receber 500. Não diminui os filhos, não diminui as despesas da casa, não diminui a conta de água, mas a renda encolheu. Então parte da crise que a Venezuela vive hoje é justamente por isso. Essa cultura de 100 anos de dependência do petróleo gerou uma perda da memória agrícola. Então não se trata de um problema simplesmente do povo, é um problema histórico, cultural, e que leva muitos anos para que se possa reorganizar a agricultura, já que é preciso começar do zero praticamente, produzir uma classe de agricultores que hoje não existe. Como fazer agricultura sem camponeses? O pouco de agricultura que existe hoje na Venezuela, existe porque há cerca de 2% de população camponesa no país. Então é um trabalho árduo.

O que os governos revolucionários têm feito para superar esse problema?

O Chávez fez muito para tentar levantar a agricultura venezuelana, incrementando investimentos, desapropriação de terras, etc. Mas como não há uma cultura agrícola, as terras permaneceram abandonadas, sem produzir. Isso parece algo simples para os países que têm cultura camponesa. Mas onde não existe cultura camponesa, não é raro que uma criança pense que o leite vem da caixinha.

Uma coisa é você poder gerir essa situação com um barril de petróleo a 130 dólares, outra coisa é gerir com o barril custando 40, como está agora. Então não se trata de inoperância do governo, se trata de falta de recursos que é causada principalmente pela estrutura econômica do país, que não foi inaugurada pelos governos socialistas, pelo contrário, os governos do presidente Chávez e do presidente Maduro fez e faz um grande esforço pra transformar essa realidade.

 

 

*Editado por Rafael Soriano