Diálogos sobre uso e produção de água reúnem experiências distintas para analisar a atual crise hídrica

Representantes de diversos movimentos e organizações sociais integram a atividade
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Da Página do MST 

 

O povo brasileiro tem enfrentado uma grave crise nas dimensões econômica, política, alimentar e ambiental. Na perspectiva ambiental, vivemos a crise da água. Enquanto o capital e o Estado enxergam a água como mercadoria para obter lucro, os movimentos sociais, as pastorais, articulações e organizações da sociedade civil entendem esse recurso como um bem comum, direito de todas e de todos. Esse foi o tema da roda de conversa realizada durante o Circuito Mineiro de Arte e Cultura da Reforma Agrária, em Montes Claros, no dia 9 de setembro.

“É interessante trazer aqui a reflexão da Campanha da Fraternidade de 2017, que trouxe como tema os biomas brasileiros, e também trazer a reflexão do Papa Francisco acerca da Casa Comum”, diz Alexandre Gonçalves, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “O planeta é nossa casa comum. Se a gente destrói o planeta, nós vamos destruir nossa casa. A princípio, é uma reflexão óbvia, mas é muito profunda”, completa. 

Entretanto, quando se avalia a maneira como a água está sendo usada no Brasil e observamos quem define o seu destino, essa reflexão perde o sentido. “Montes Claros, com uma população de cerca de 400 mil habitantes, utiliza 23,6 milhões de metros cúbicos de água por ano. Já uma empresa de criação de gado da região, que sempre funcionou sem licenciamento ambiental, tem uma demanda anual de 35 milhões de metros cúbicos.

Depois falam que a culpa é nossa, do nosso banho de cinco minutos”, exemplifica Alexandre.
Para minimizar o problema do abastecimento de água nas cidades, os governos têm investido em grandes obras que envolvem decisões políticas e muito dinheiro. Atualmente, em Montes Claros, estão querendo acabar com a água do Rio Pacuí, importante afluente do Rio São Francisco, por meio de uma obra de transposição. “Como que aquele povo que produz o tomate, a verdura, a folha pra vender e criar sua família vai sobreviver?”, questiona o vereador Sóter Magno. “Em tempos passados, deveria ter sido criada uma estrutura que evitasse essa situação.

O que temos que fazer hoje é produzir água. E como se produz água? Protegendo as nascentes, as veredas… O reuso da água também pode ser uma solução”, acrescenta. 

Tecnologias sociais para convivência com o Semiárido

Para combater a situação vigente, atores sociais têm, há anos, lutado pela defesa dos direitos de todas e todos e, acima de tudo, em defesa de bens comuns como a água. “Pra nós, a água não é mercadoria, a água é um bem comum, sagrado, um direito para todas as pessoas e os seres viventes”, declara Leninha Alves, coordenadora de articulação política do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM) e coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA Brasil). “Estamos resistindo e lutando para mostrar que esse modelo de desenvolvimento é insustentável. Há mais de trinta anos, aqui no Norte de Minas, nós do CAA/NM trabalhamos com agroecologia e tecnologias sociais a fim de combater esse modelo depredador dos recursos naturais”, acrescenta. 

O Norte de Minas é dominado pelo agronegócio baseado nas monoculturas e, mais recentemente, pela mineração, que veem a água como negócio. Na região, os projetos chegam de cima, construído com grandes corporações, inclusive internacionais, que vieram ocupar a terra, principalmente no lugar onde haviam nascentes, córregos, riachos e lagoas. 

Após décadas ocupando essa terra “a preço de banana”, as empresas saem da região e deixam para trás todo um passivo ambiental. E normalmente são as comunidades que tentam recuperar essas áreas. “Tem empresa que ficou aqui 25 anos explorando, usando a terra, vão embora e deixam lá um monte de erosão, nascentes mortas, e a gente vem acompanhando o povo, a duras penas, tentando reviver essas nascentes. Os grandes empreendimentos já usaram toda a água superficial. Agora estão querendo explorar nossos aquíferos”, conta Leninha. 

Atualmente tem retornado o fenômeno dos refugiados ambientais, ou seja, comunidades que estão deslocando de seus locais, para ir a um lugar onde tenha água. “Quando a sede chega, quando a falta de água bate à porta, as pessoas começam a se desesperar. Nunca imaginávamos que voltaríamos a ter refugiados da seca”, de indigna. 

Para se contrapor a esse cenário, o CAA e a ASA Brasil têm implementado tecnologias sociais para garantir água para consumo humano e produção de alimentos, associadas ao debate político sobre essa outra lógica de desenvolvimento. Ao longo dos mais de 15 anos de atuação, a ASA vem combatido o uso da água como voto para eleição de políticos. “Em função de retirar a lógica do carro pipa e garantir autonomia e cidadania do povo, é que a Articulação Semiárido Brasileiro vem construindo, junto às comunidades, tecnologias de captação de água da chuva. Em 10 anos, nós construímos mais de um milhão de reservatórios”, revela. 

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Agroecologia como necessidade

Leninha ainda lembra que, aliado ao desenvolvimento de tecnologias sociais, é preciso fortalecer a prática agroecológica, pois quando se maneja o solo de forma adequada, é possível produzir alimentos sem degradar o meio ambiente, e ainda repor a água subterrânea. “Então, se a gente não pensar nessa perspectiva de envolver a comunidade e fazer o trabalho para produzir água no sistema, não adianta a gente só captar água da chuva e economizar em casa”, finaliza. 

No Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o debate e a aplicação das práticas agroecológicas tem beneficiado muitas famílias de assentados. “Dentro do MST a gente tem a tarefa de organizar a produção numa outra perspectiva. E esse outro jeito de produzir é o que a gente chama de agroecologia”, conta Felipe Russo, do setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do movimento. “Então é por isso que o MST está plantando muda, correndo atrás de projetos pra gente recuperar as nascentes em áreas degradadas e desenvolver a agroecologia. Senão a gente conquista terra e não consegue viver nela”, completa. 

Mas, em geral, os assentados esbarram nas dificuldades legais e burocráticas impostas pelo Estado com o intuito de beneficiar o agronegócio. “Enquanto os agricultores familiares reivindicam de meio a dois hectares para produzir alimentos, tem empresa, como a Plantar, que é liberada de tirar água do rio que abastece Montes Claros para irrigar as monoculturas de eucalipto. Por isso é que está faltando água na cidade”, lembra. 

Russo também fala da necessidade de expandir o debate para outros meios. Segundo ele, além de desenvolver tecnologias de captação de água da chuva e de convivência com o Semiárido no campo, é preciso aplicar essas tecnologias no meio urbano. “A gente tem que ter clareza do ambiente em que vivemos, ter clareza que a agroecologia não é só uma definição política, é uma necessidade”, conclui.