Julgamento de policial que matou sem terra ressuscita velhos discursos contra o MST

Encarregado da acusação, o promotor Eugenio Paes Amorim garantiu que o Ministério Público agiria no julgamento “como a Brigada Militar deveria ter agido no episódio”, ou seja, no estrito cumprimento da lei.

 

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Militantes do MST organizaram vigília em frente ao Fórum Central de Porto Alegre para acompanhar o julgamento. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 

Por Marco Wessheimer
Do Sul 21

“A senhora sabia que havia recursos públicos envolvidos na ocupação que pagavam inclusive a cachaça do MST?”. “O senhora é simpatizante do MST?”. “O senhor apoia as invasões de terra?”. “O que os direitos humanos disseram quando os sem terra mataram o soldado Valdeci?”.

Essas foram algumas das perguntas feitas pela defesa do policial militar Alexandre Curto dos Santos às testemunhas da acusação no início do julgamento do acusado de assassinar, com um tiro de fuzil pelas costas, o sem terra Elton Brum da Silva, em 21 de agosto de 2009, durante uma ação de reintegração de posse na fazenda Southall, no município de São Gabriel. As perguntas indicaram que uma parte importante da estratégia de defesa do brigadiano consiste em apostar no discurso de criminalização do MST propagado nas últimas décadas no Rio Grande do Sul e em todo o país.

Antes do início do julgamento, em uma conversa rápida com jornalistas, o advogado Jabs Paim Bandeira, encarregado da defesa de Alexandre Curto dos Santos, detalhou a outra parte da estratégia. Segundo ele, havia um clima de guerra no dia, os sem terra estavam desobedecendo a ordem judicial e tentando agredir os policiais, “inclusive com espetos”.

A morte do Sem Terra, sustentou, resultou de uma troca de munição por engano entre os policiais. “As armas com munição letal e com munição não-letal são parecidas, o que as distingue é a numeração. Houve um engano. O policial não tinha a intenção de matar o sem terra. Ele disse que viu um vulto levantando a mão e pensou que estivesse tentando pegar a rédea de um cavalariano. Aí fez o disparo, mas não sabia que estava usando munição letal”, disse o advogado.

O policial militar Alexandre Curto dos Santos é acusado de assassinar com um tiro pelas costas o trabalhador rural do Movimento dos Sem Terra Elton Brum da Silva. (Foto: Marco Weissheimer)

Encarregado da acusação, o promotor Eugenio Paes Amorim garantiu que o Ministério Público agiria no julgamento “como a Brigada Militar deveria ter agido no episódio”, ou seja, no estrito cumprimento da lei. Para Amorim, o argumento da defesa de que teria ocorrido uma troca de munição por engano é irrelevante. “As imagens são claras. A vítima não estava em posição de agressão.

Havia vários policiais militares a cavalo agredindo a vítima e o réu, desnecessariamente, desferiu um disparo pelas costas que foi fatal. Aliás, seria fatal mesmo que a bala fosse de borracha porque a distância era muito curta, conforme mostram as perícias e a necropsia. A distância de segurança para disparo de balas de borracha gira entre 5 e 10 metros. Segundo a perícia, o tiro foi dado a uma distância entre 3 e 5 metros. Mesmo uma munição de borracha, a essa distância, penetraria o corpo da vítima, causando lesões muito graves ou matando-a da mesma forma. Então, essa discussão em torno da munição é secundária.

A primeira testemunha de acusação foi Carlos César D’Elia, procurador do Estado e integrante do Comitê Estadual Contra a Tortura, que falou na condição de representante do Raiz Movimento Cidadanista. D’Elia acompanhou os fatos na época e visitou a fazenda Southall no dia seguinte à ação da Brigada Militar que resultou na morte de Elton Brum.

Ele fez várias entrevistas e gravou depoimentos de agricultores sem terra que relataram uma série de excessos que teriam sido cometidos pelo batalhão de choque da Brigada e caracterizariam inclusive a prática de tortura. Além de relatos de agressões físicas como o uso de armas de choque (taser), inclusive com contato direto da pistola, D’Elia gravou depoimentos que apontaram agressões verbais dos brigadianos contra os sem terra: “Filho da puta”, “viado”, “fedido” e “rato” teriam sido algumas das palavras desferidas pelos policiais.

Primeira parte do julgamento foi marcada por depoimentos de testemunhas da acusação e da defesa.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)

O promotor Eugenio Amorim questionou D’Elia sobre um episódio envolvendo formigueiros na desocupação da fazenda Southall. No dia da desocupação, depois da entrada da Brigada, relatou o integrante do Comitê Estadual Contra a Tortura, houve uma divisão entre homens e mulheres. Os primeiros deles foram colocados todos sentados, alguns deles sobre formigueiros.

Há fotos registrando os ferimentos, disse Carlos D’Elia. Além disso, acrescentou, os brigadianos circularam comum adolescente, com o braço forçado para trás, querendo que ele identificasse as lideranças do movimento, informação que era considerada muito importante pela BM. Ainda segundo o procurador, o relatório feito pela Brigada no dia da ação não fez referência à motivação do disparo. “Dias depois surgiu a história de que as armas teriam sido trocadas”.

Em seu testemunho, o procurador destacou que nunca pretendeu prejudicar ou atacar a instituição Brigada Militar, mas sim contribuir para o seu aprimoramento, para que passe a agir como uma polícia técnica. Os relatos de excessos cometidos pela BM, assinalou, tem uma história de muitos anos e seguem ocorrendo no presente, como ocorreu recentemente no caso da desocupação da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz).

A defesa do policial militar questionou Carlos D’Elia se ele sabia, entre outras coisas, que o réu foi inocentado no Inquérito Policial Militar, aberto para investigar o caso, e que “apenas uma criança foi ferida no pé” durante a desocupação. Após fazer questionamentos sobre o episódio em si, Jabs Paim Bandeira perguntou: “O senhor é simpatizante do MST?

O senhor apoia as invasões de terra?”. A resposta da testemunha veio rápida: “Sou simpatizante de todos os movimentos sociais que lutam pelos direitos humanos e sociais previstos na nossa Constituição. Acho legítimas as ocupações como busca de concretização desses direitos quando eles são sonegados pelo Estado”. Bandeira emendou: “O senhor era militante na época do assassinato do soldado Valdeci por um sem terra?”. “Sou militante muito antes disso. Minha militância começou na luta contra a ditadura”, respondeu D’Elia.

Velas e cruzes no ato em memória ao sem terra assassinado.
(Foto: Maia Rubim/Sul21)

A segunda testemunha de acusação foi a atual ouvidora da Defensoria Pública do Estado, Patrícia Lucy Machado Couto que, na época, trabalhava na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, presidida pelo então deputado Dionilso Marcon (PT).

De modo similar ao que fez Carlos D’Elia, Patrícia Couto procurou dar informações sobre o cenário que marcou a ação da desocupação em 2009, quando o coronel Paulo Roberto Mendes era comandante da Brigada Militar. Em 2007, o Conselho Superior do Ministério Público do RS aprovou um relatório que resultou, entre outras recomendações: “designar uma equipe de promotores de Justiça para promover ação civil pública com vistas à dissolução do MST e a declaração de sua ilegalidade”.

Patrícia Couto lembrou o longo histórico de confrontos entre movimentos sociais e a Brigada Militar no Rio Grande do Sul. “Temos não mais uma cicatriz, mas uma ferida aberta”, resumiu. Virou rotina, em casos de denúncias de excessos da Brigada Militar contra o MST e outros movimentos sociais, a corporação responder mencionado o caso a morte do PM Valdeci de Abreu Lopes, em 1990. “Houve uma tentativa de desqualificar o meu depoimento com afirmações desse tipo. A ideia é demonizar o MST mesmo. Na verdade, a ausência do Estado no cumprimento de direitos sociais previstos na Constituição é a grande responsável por essas situações que acabam virando caso de polícia e deixando um caminho de muita raiva”.

Além de ser lembrado pelo advogado Jabs Paim Bandeira, o episódio da morte do soldado Valdeci também foi citada pelo coronel Mendes, hoje no Tribunal de Justiça Militar, que depôs como testemunha de defesa. “A Brigada Militar tem que prestar homenagem aos seus heróis”, disse o ex-comandante da corporação. Mendes defendeu a atuação da Brigada na desocupação da fazenda Southall, garantindo que ela observou a técnica definida para esse tipo de situação. “No momento em que há uma decisão pela reintegração de posse ela tem que ser cumprida, não havendo mais espaço para mediação”.

A acusação exibiu imagens dos ferimentos no corpo de Elton Brum e perguntou ao coronel Mendes, entre outras coisas, sobre a distância em que teria sido efetuado o disparo. Ele admitiu que, pelos ferimentos, “o disparo não foi tão distante”, mas reafirmou a versão de que houve uma troca acidental de munição não letal por munição letal. Por outro lado, admitiu que faz parte da técnica desse tipo de operação utilizar um grande aparato militar para intimidar os ocupantes e diminuir a possibilidade de resistência.

Após o coronel Mendes, depôs como testemunha de defesa a promotora de Justiça Lisiane Villagrande Veríssimo da Fonseca, que acompanhou, em 2009, a ação de desocupação a pedido da Brigada e considerou a mesma tecnicamente correta.

A primeira parte do julgamento deixou clara a estratégia da defesa de desconstituir o dolo, combinando uma desqualificação do MST como organização e das testemunhas de acusação como simpatizantes desta. Velhos argumentos nesta direção desfilaram pelo júri presidido pelo juiz Orlando Faccini Neto que previu que o julgamento se estenderia noite adentro, podendo terminar só na sexta-feira. “Tudo indica que os trabalhos serão longos. O papel do magistrado é regular os debates para que os jurados possam decidir”, disse o magistrado.

Enquanto isso, em frente ao Fórum, dezenas de integrantes do MST seguiam em vigília, com bandeiras do movimento, fotos de Elton Brum, velas acesas, cruzes de madeira e uma faixa que dizia: “Aos nossos mortos nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta. Elton Brum presente”.