“O governo não é complacente com o agronegócio. O agronegócio está no governo. O agronegócio é o governo.”
Do IHU Online
O Diário Oficial da União publicou no dia 6 de novembro a liberação do Benzoato de Emamectina. A decisão causou estranhamento e protesto, porque este veneno, conforme Leonardo Melgarejo, não tem similares. “É o pior que pode ser oferecido”, resume. “A prioridade à morte das lagartas, a despeito das ameaças à saúde da população, é por demais desrespeitosa para ser aceita.” O especialista sustenta que a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa deve ser explicada para a sociedade.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Melgarejo afirma que não há como evidenciar que a liberação contemple o interesse das empresas e a pressão da bancada associada àqueles interesses, mas “o fato é que, em pouco tempo, a Anvisa realizou estudos adicionais, reavaliou sua decisão anterior e, após rápida consulta pública, tão rápida que poucos brasileiros tomaram conhecimento, emitiu novo parecer, autorizando o uso daquele veneno”.
A descrição dos danos que o Benzoato de Emamectina pode causar sugere gravidade. Anteriormente, quando a Anvisa havia proibido o uso, a agência apontou “danos importantes sobre o sistema nervoso central”. Melgarejo complementa que também “podem ocorrer problemas sutis, como dificuldade de aprendizado, elevação no índice de acidentes e quadros de depressão”.
O cenário não é nada alentador: “Podemos esperar alteração nos índices de acidentes e de tragédias entre as famílias de operadores rurais e mesmo de habitantes de regiões onde o veneno vier a ser aplicado”. Melgarejo garante que o interesse econômico está se sobrepondo a questões de saúde. “Isto decorre de um fundamento: as forças que dirigem e apoiam este governo não consideram os direitos humanos como mais relevantes do que os direitos ao lucro”.
Desde 2008, o Brasil está no topo do ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Melgarejo apresenta vários motivos que explicam esta posição e diz que, para resolver isso, o Brasil teria que mudar o modelo produtivo e reduzir o tamanho das lavouras. “Em outras palavras: reforma agrária e políticas de apoio à agroecologia.” Ele diz que quem ganha com o que hoje existe é a indústria química. “Ela é a base do agronegócio, deste modelo que domina nosso governo e nosso território.” Melgarejo resume assim a composição de forças e interesses: “O governo não é complacente com o agronegócio. O agronegócio está no governo. O agronegócio é o governo”.
Leonardo Melgarejo é engenheiro agrônomo e mestre em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. É vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia, para a região sul, e faz parte da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos. É professor colaborador do Mestrado Profissional em Agroecossistemas da UFSC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que danos o agrotóxico Benzoato de Emamectina, que é usado em culturas de algodão, feijão, milho e soja, pode causar para a saúde humana?
Leonardo Melgarejo – Estudos referidos pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], na ocasião em que ela proibiu o uso do veneno no Brasil, apontavam danos importantes sobre o sistema nervoso central. Isto significa tanto fragilidade na capacidade de julgamento como no controle das ações motoras e mesmo degeneração permanente em neurônios, nervos e músculos.
Estudos com ratos apresentaram sintomas que variavam desde tremores e convulsões até a morte. Os estudos mostravam desde lesões no cérebro, nos nervos ciático e óticos, até dificuldade de locomoção e perda de firmeza nos movimentos. Os mesmos sintomas também teriam sido observados em estudos com cães e coelhos para contatos com doses muito pequenas. Em alguns estudos, o contato com doses médias e altas estaria associado à presença de malformação fetal.
Em humanos, podemos esperar tudo isso, mas também podem ocorrer problemas sutis, como dificuldade de aprendizado, elevação no índice de acidentes e quadros de depressão. Também não se pode deixar de observar que a infelicidade associada a quadros de depressão e a disponibilidade de venenos extremamente tóxicos podem levar à expansão nos casos de suicídio. Enfim, podemos esperar alteração nos índices de acidentes e de tragédias entre as famílias de operadores rurais e mesmo de habitantes de regiões onde o veneno vier a ser aplicado. Imagine, por exemplo, o que poderá acontecer em regiões onde o veneno vier a ser aplicado de avião.
O Diário Oficial da União publicou no dia 6 de novembro a aprovação do Benzoato de Emamectina. Em que contexto isso ocorreu? O que antecedeu esta medida?
Alguns acontecimentos merecem registro. Em 2013, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa decretou situação de emergência fitossanitária, autorizando a importação e recomendando o uso do Benzoato de Emamectina para controle da lagarta Helicoverpa armigera, que não era afetada pelas proteínas tóxicas presentes nas plantas transgênicas com propriedades inseticidas. Como a Anvisa havia proibido o uso daquele veneno no Brasil, a sociedade se manifestou. O próprio Ministério Público entrou em ação. Alguns secretários estaduais de Saúde não autorizaram o uso. Outros autorizaram, mas foram impedidos de aplicar
É exemplar o caso descrito pelo procurador federal do Ministério do Trabalho Leomar Daroncho no livro Direito e agrotóxico: reflexões críticas sobre o sistema normativo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017), relativamente ao ocorrido no estado do Mato Grosso. Ali, em consequência de ação civil pública, o Instituto de Defesa Agropecuária – Indea foi proibido de emitir autorização para aplicações de agrotóxicos contendo o Benzoato de Emamectina. Isto porque o Ministério Público do Trabalho – MPT demonstrou em juízo que inexistiam condições práticas para “rigoroso controle” do uso, ou mesmo para “adequada fiscalização” do trato com embalagens vazias.
Aliás, chamou atenção nos argumentos do MPT o fato de que 73 dos 99 municípios incluídos na relação de áreas em situação de emergência fitossanitária, para uso do veneno no controle da lagarta, não solicitaram autorização para uso do Benzoato, indicando suspeitas de manipulação nas informações e mistificação da crise. Desta ação, resultou que o Indea não pode autorizar “a manipulação, a produção, a pesquisa, a experimentação, o transporte o armazenamento, a comercialização e a utilização de agrotóxicos não registrados e não cadastrados nos órgãos competentes e que utilizem a substância Benzoato de Emamectina, devendo indeferir a emissão do termo de autorização do termo de aplicação, inclusive quanto aos pedidos já feitos” (DARONCHO, 2017. P. 107).
Como as importações já haviam sido autorizadas, se torna claro que as empresas envolvidas passaram a agir no sentido de resolver o que para elas se tornou um problema. Assim, embora não se possa demonstrar que tenha acontecido em resposta ao interesse das empresas e às pressões da bancada associada àqueles interesses, o fato é que, em pouco tempo, a Anvisa realizou estudos adicionais, reavaliou sua decisão anterior e, após rápida consulta pública, tão rápida que poucos brasileiros tomaram conhecimento, emitiu novo parecer, autorizando o uso daquele veneno.
A ação judicial ganha em Mato Grosso pela ação do Ministério Público, relatada pelo procurador Leomar Daroncho, poderia ser estendida ao Brasil, proibindo-se o uso do Benzoato em todo o território nacional. Mas como ela impede o uso do Benzoato porque ele não era autorizado pela agência avaliadora (Anvisa), e agora passou a ser de uso autorizado, ao invés de podermos estender a proibição de uso a todo Brasil, ele será liberado também em Mato Grosso. Mas a questão está em disputa.
Talvez no futuro se faça possível identificar os motivos e os caminhos que determinaram fatos incomuns, registrados nesta decisão da Anvisa. Por exemplo, na reavaliação do Carbofurano, a Anvisa realizou consulta pública que se desenvolveu ao longo de 60 dias e emitiu seu parecer 20 meses após. No caso do Benzoato, a consulta se encerrou em 30 dias, e a resposta foi anunciada em apenas três semanas. Se observarmos que para a decisão de proibição do Paraquat – que, como o Benzoato de Emamectina, também não possui antídoto – a Anvisa demorou dez anos, a rapidez neste caso passa a ser escandalosa. Para liberar o uso, mesmo quando isso significa alterar conclusões já adotadas, a Anvisa é muito mais rápida do que para impedir o uso de venenos, o que deve ser interpretado como no mínimo estranho, em se tratando de agência responsável pela proteção da saúde da população.
Por que esta liberação em especial causou tanta rejeição e polêmica? O que este produto tem de agravante em relação a outros similares?
Seu potencial neurotóxico, mesmo a doses extremamente baixas, não permite dúvidas. Assim, qualquer nível de exposição trará danos relevantes para a saúde das pessoas. E sabemos que as hipóteses de que os aplicadores serão protegidos pelo uso de equipamentos, de que as embalagens vazias não terão resíduos e serão destruídas, de que não haverá derivas [aplicação de defensivo agrícola que não atinge o local desejado] nem aplicações aéreas etc. fazem parte de uma mitologia criada para acelerar lucros das multinacionais e interesses associados.
Sob o ponto de vista dos problemas, este veneno não tem similares. É o pior que pode ser oferecido. A prioridade à morte das lagartas, a despeito das ameaças à saúde da população, é por demais desrespeitosa para ser aceita. A polêmica em torno do fato é mínima, quase insignificante em relação aos dramas que se anunciam com esta liberação.
A Anvisa havia negado o registro desta substância em 2010, alegando suspeita de que ele causa malformações e tem elevada neurotoxicidade. O que mudou desde então? A agência afrouxou os protocolos?
Nada mudou. O veneno continua causando os problemas que demonstra serem causados por ele. A decisão da Anvisa deve ser explicada para a sociedade. Infelizmente vivemos um contexto vergonhoso, de completa subordinação dos interesses da sociedade, da população e da nação aos desejos de grupos econômicos com capacidade de interferência em todos os campos da vida nacional. As alterações no papel de agências públicas, em normativas, procedimentos e na própria Constituição, são parte triste da nossa história atual.
A aprovação ocorreu em tempo recorde. Para ser desta forma, que etapas do processo foram atropeladas?
Acelerou-se a decisão final, evitando manifestações da sociedade. A consulta pública acelerada impediu a disseminação de conhecimentos a respeito do que estava em andamento e não permitiu a qualificação dos argumentos levados em conta. O próprio IHU, fonte de informações de conhecida respeitabilidade, não teve tempo de contribuir para o debate, em tempo de auxiliar na configuração de decisões robustas. Isto se deu também no âmbito de universidades e grupos de estudo. O número de contribuições recebidas pela Anvisa foi ínfimo e enviesado a favor dos interesses empresariais.
A Anvisa, na divulgação da liberação, informou que este produto tem registro em vários países, incluindo Estados Unidos, Austrália, Japão e Comunidade Europeia. Isso é relevante?
Não seria interessante se a Anvisa atribuísse relevância ao fato que outros países não atribuem registro a boa parte dos venenos que são de uso autorizado no Brasil? Por que a Anvisa considera que as opiniões externas são irrelevantes quando a sociedade pede que produtos banidos nos países de origem tenham seu uso proibido no Brasil, e agora usa o argumento de que devemos seguir exemplos, para liberar?
Mas esta pergunta pode ser respondida de outra maneira, levando em conta que os Estados Unidos, a Austrália, o Japão, a Comunidade Europeia e mesmo outros, de economias menos desenvolvidas, têm sistemas de controle mais responsáveis e eficientes do que o Brasil. Contam com equipes maiores, mais bem equipadas e mais rigorosas na fiscalização, controle e penalização dos responsáveis por danos à saúde da população e do ambiente.
Ou poderíamos dizer, simplesmente, que é tão irrelevante o fato de que outros países tomem determinadas decisões que nos convêm, como deve ser irrelevante que tomem outras que não nos convenham.
Agora, em se tratando de saúde, os organismos são os mesmos: se a exposição causa danos, e em nosso país não dispomos das condições que outros países dispõem para evitar a exposição, com certeza devemos tomar medidas mais rigorosas, preventivas, antecipatória aos problemas. Citando mais uma vez Leomar Daroncho, cabe aos poderes públicos adotar mecanismos de tutela inibitória, visando evitar os problemas. E outros, de tutela ressarcitória, que permitam compensar danos e minimizar a necessidade de adequações de conduta, a posteriori. Tudo isso tem um caráter pedagógico, que reforça o papel da sociedade na construção da sociabilidade.
A melhor maneira de evitar os problemas com o Benzoato de Emamectina, no interesse da população brasileira, é proibindo seu uso em todo o território nacional e informando a todos os motivos que tornam necessária esta medida.
A decisão da Anvisa, alterando seu pronunciamento anterior e liberando o uso deste veneno, compromete a credibilidade da agência e ameaça a confiança que todos devemos ter nas instituições públicas. Infelizmente, se soma a tantas outras que estão acontecendo neste período de exceção e comprometimento da democracia.
O Ministério Público Federal – MPF e o Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos devem questionar a liberação do Benzoato de Emamectina. Quais as expectativas de reverter a decisão?
A possibilidade existe. Os argumentos são consistentes. Alguns grupos estão mobilizados. O fórum nacional e os fóruns estaduais, assim como a Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva] e a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, estão atentos e contribuirão de forma decisiva neste sentido. Porém, estamos diante de um fato consumado, e o momento em que vivemos não permite grandes otimismos no sentido de sua reversão. Dependerá da conscientização e da mobilização da sociedade. Dependerá de inciativas e de agências de comunicação. Acredito que o IHU tem papel relevante e está contribuindo nesta direção, ao trabalhar o tema. A questão é claramente socioambiental, de modo que tanto as entidades que atuam em defesa da natureza, lato sensu, assim como aquelas que lutam em defesa dos direitos humanos, stricto sensu, precisam mobilizar seus componentes. Isto vale também para outros eventos que caracterizam o atual desmonte da Constituição Cidadã.
O setor ruralista tem forte influência tanto no Congresso quanto na presidência da República. Por outro lado, a indústria química exerce muita pressão por conta do poderio econômico que detém. A liberação do Benzoato de Emamectina é reflexo da força desses agentes?
Sim. As pressões dos grupos interessados, a enorme impopularidade e a clara disposição do Executivo em aceitar e oferecer mecanismos de troca em apoio à sobrevida, somadas à pressa de todos aqueles que sabem ter pouco tempo para fazer valer seus interesses, estabeleceram esta época de vale tudo.
A alteração de normas, de critérios e mesmo de pessoas em postos-chave se associam a isso. A liberação do Benzoato de Emamectina, a provável criação da CTNFito [Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários], a possível colocação no mercado de terras de áreas ocupadas por assentamentos de reforma agrária, quilombos e indígenas, as alterações na legislação trabalhista e previdenciária, tudo isso responde a um mesmo e único movimento de subordinação a interesses econômicos do grande capital internacional e seus negócios locais.
A bancada ruralista, os formadores de opinião com acesso à grande mídia e muitas figuras públicas em cargos de decisão são agentes locais, peças menores, a serviço daqueles interesses. A coerência entre todos os seus movimentos é reveladora de que não estamos diante de mero somatório de decisões isoladas, que possam ser interpretadas como erros ou fragilidades individuais.
Em fevereiro, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, comandado por Blairo Maggi – apelidado de o Rei da Soja –, assumiu o controle das informações sobre venenos já registrados. Isso atendeu a que interesses? Quais as consequências desse ato?
A colocação do Ministério da Agricultura em posição de primazia sobre temas afeitos a outros ministérios, como os da Saúde e do Meio Ambiente – neste caso do controle das informações sobre venenos – caracteriza a maior influência da bancada que defende interesses do agronegócio, em relação a outras, que defendem os interesses da saúde humana e ambiental. Caracteriza também pouco caso com a população e enorme desrespeito aos profissionais de carreira das áreas da saúde e do meio ambiente, estabelecidos naqueles outros ministérios. Permitirá a institucionalização do que está proposto no Pacote do Veneno, atribuindo aos interesses do agronegócio poder de determinação sobre o uso de venenos, relegando aos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente a condição de entidades consultivas.
Isto agrava um fato perverso, que na prática estenderá indefinidamente a autorização para uso para venenos agrícolas com registros já liberados. Na medida em que a ciência avança e novos conhecimentos são disponibilizados, caberia aos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente reavaliar suas decisões anteriores e retirar do mercado produtos que no passado não se sabia perigosos, mas que hoje se configuram como tal.
A maior importância atribuída pelo Mapa ao controle da Helicoverpa armigera em uma safra, do que à saúde da população das áreas de monocultivo por gerações, ilustra o que devemos esperar daqui para a frente. Para garantir os negócios do agronegócio, para manter o país na condição de colônia exportadora da própria natureza, estamos vendo estas e outras alterações no contrato social que nos une. O caso do Benzoato de Emamectina é a ponta de um iceberg, ele ilustra o universo de consequências que devemos esperar.
Quando Blairo Maggi estava no Senado, propôs o Projeto de Lei 6.299/2002, que altera regras para pesquisa, experimentação, produção, embalagem, rotulagem, transporte, armazenamento, comercialização, propaganda, utilização, importação, exportação, destino final dos resíduos e embalagens, registro, classificação, controle, inspeção e fiscalização de agrotóxicos. Caso seja aprovado, uma das consequências é que as embalagens de agroquímicos deixam de ter impressa a caveira, que em todo o mundo é conhecido como um símbolo de veneno. Não é incongruente que o autor deste projeto seja hoje ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento?
O ministro da Agricultura atende aos interesses da bancada ruralista. Não há contradição nisto. Aliás, ele segue a pauta da ex-ministra Kátia Abreu que, com toda a sua arrogância, deve ser vista como tímida, em relação aos desastres em andamento desde o golpe que a substituiu no Mapa. Todas as medidas dos ministros da Agricultura são coerentes com a acumulação de lucros que convergem para pequeno grupo de transnacionais, que fizeram valer sua capacidade de influência econômica na configuração do atual Congresso, na ocupação de postos no Executivo e na seleção de formadores de opinião com acesso à grande mídia.
Vivemos tempo de pobreza maior, com Maggi, porque não há mais espaços para contradição e resistências nem em outros ministérios, nem no centro de governo. Isto já não ocorre sequer em grande parte das ONGs ambientalistas, atualmente tímidas quanto à necessidade de vincular suas pautas à questão mais ampla, que é política e que se agrava desde o golpe que depôs a presidente eleita. E sim, com a aprovação do Pacote do Veneno, capitaneado pelo projeto de lei do ministro da Agricultura, e que avança sem manifestações de resistência por parte dos ministros da Saúde e do Meio Ambiente, em contexto de apatia de boa parte das organizações ambientalistas, a situação concreta, vivenciada pela nação, tende a piorar.
O que caracteriza o chamado Pacote do Veneno?
Ele estabelece novo contrato social, no trato com venenos agrícolas. Soma-se a outros pacotes, que tratam da ocupação dos territórios, dos direitos trabalhistas, da rotulagem de alimentos.
Enfraquecerá a cidadania e esconderá perigos. Facilitará a aprovação e a utilização de agrotóxicos perigosos. Reduzirá o poder de intervenção dos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente e ampliará a margem de risco que hoje ameaça trabalhadores rurais e os consumidores urbanos. Ampliará os perigos de intoxicação, de ameaças de traumas, de alterações reprodutivas e genéticas, para todos os seres que transitem nas áreas de monocultivo dos territórios dominados pelo agronegócio. Comprometerá o uso futuro daqueles ambientes. Aumentará a contaminação das águas e dos solos, contribuirá para erosão da biodiversidade e para a redução gradativa da fertilidade. Empobrecerá e esvaziará o campo, a cultura e a qualidade de vida dos territórios rurais brasileiros. Cada um destes pontos poderia ser desenvolvido com exemplos, e todos eles poderiam ser evitados, com estímulo à participação cidadã e com apoio à política nacional de agroecologia, que restará ferida de morte, se o pacote do veneno vier a ser aprovado.
O interesse econômico está se sobrepondo a questões de saúde? Qual a consequência disso?
Sim, está se sobrepondo. Isto decorre de um fundamento: as forças que dirigem e apoiam este governo não consideram os direitos humanos como mais relevantes do que os direitos ao lucro. O atual governo abandonou seus compromissos com uma política de Estado, orientada pelos direitos de cidadania da população e de autonomia da nação. Ele apressa-se em mudar todas as normas constitucionais que eventualmente constranjam ou restrinjam a exploração e a ganância. Assume-se, no fundo, que o livre exercício da atividade econômica, os direitos de propriedade e de exploração dos recursos naturais e dos trabalhadores estão acima de todos os direitos.
Na verdade, nos faltam servidores públicos, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, que atuem no sentido de limitar o exercício das atividades econômicas a espaços que respeitem os direitos do cidadão, os direitos do consumidor, os direitos mínimos afeitos à dignidade humana. O direito a trabalho digno, à alimentação e a ambiente saudáveis, para todos, não pode ser desprezado em favor dos interesses econômicos de poucos.
A consequência maior disso tudo é a deformação da sociedade, o acirramento das disputas, o esfacelamento de laços de solidariedade. Como escreveu o ex-governador Tarso Genro, a consequência será a barbárie. E ela já está se revelando nos gabinetes, assim como nas ruas.
Desde 2008, o Brasil está no topo do ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Como isso é possível? Complacência dos governos com o agronegócio e com a indústria química?
A extensão territorial do país, a fertilidade dos solos, a generosidade do clima, a possibilidade de duas safras ao ano e as opções equivocadas de modelo agrícola nos trouxeram a isto. A aventura da transgenia, com suas plantas inseticidas e tolerantes a herbicidas, levaram ao surgimento e à multiplicação de insetos e plantas mais poderosas, que simplesmente não morrem com os tratamentos convencionais. Na luta contra eles e elas, os agricultores ampliam as doses de agrotóxicos, passam a usar venenos mais poderosos, fazem misturas gerando coquetéis desconhecidos. Aplicam inseticidas e biocidas sobre lavouras que já contêm proteínas inseticidas em cada célula de cada planta. Isto acelera a seleção negativa que amplia a capacidade de multiplicação de insetos e plantas que não morrem com os tratamentos, e eleva os custos de produção. O crescimento dos custos supera os ganhos de produtividade, e isso reduz a lucratividade das lavouras por hectare cultivado. Os agricultores ampliam a área ou abandonam o campo. As grandes lavouras crescem, as pequenas somem. As grandes não podem ser monitoradas em detalhes, porque não há tempo nem pessoal para caminhar entre as plantas buscando identificar indícios de problemas em seu nascedouro. Deixam de acontecer os tratamentos tópicos, que poderiam solucionar os problemas antes de se tornarem relevantes. Estas grandes áreas de monocultivo passam a receber tratamentos “no todo”, com base em situações médias. Assim, nas grandes lavouras os venenos acabam sendo aplicados de avião, com caráter preventivo, quase que “por via das dúvidas”. Sendo jogado de avião, quase 70% do veneno não atinge o alvo e se perde, contaminando o solo, as águas etc. Tudo isso, mais os estímulos a um agronegócio predatório, com crédito subsidiado, perdões e rolagens de dívidas, ocultação de crimes ambientais e de desrespeito à legislação, nos trouxe a esta condição de nação suicida, ambientalmente predatória, maior consumidora global de venenos que, para perplexidade de todos, são jogados sobre nós mesmos.
Como resolver isso? Mudando o modelo produtivo e reduzindo o tamanho das lavouras. Em outras palavras: reforma agrária e políticas de apoio à agroecologia.
Quem ganha com o que temos aí? Certamente a indústria química ganha com isso. Ela é a base do agronegócio, deste modelo que domina nosso governo e nosso território. O governo não é complacente com o agronegócio. O agronegócio está no governo. O agronegócio é o governo.
Pode-se falar em retrocesso? Qual o tamanho dos estragos provocados pelas medidas em curso?
Vivemos um período de retrocesso em todas as áreas. Não é possível dimensionar o tamanho do estrago. Não sabemos o que está acontecendo com a base da vida do solo, com comunidades de fungos e bactérias responsáveis por processos de fertilização. Não sabemos o que está acontecendo com a água, com os alimentos, com as possibilidades de recuperação da solidariedade e da sociabilidade entre as comunidades rurais. A capacidade de resiliência das condições dos agroecossistemas está ameaçada, mas não será superada. A confiança na democracia talvez já tenha sido destruída, mas pode ser refeita.
Deseja acrescentar algo?
Não há mal que não acabe. A participação social é o caminho para reconstrução e fortalecimento da cidadania, e ela começa no bairro, na cidade, na escola, na roda de amigos. O desafio é grande, mas o interesse é de todos. Seguramente esta crise é passageira, e, ao terminar, restabeleceremos as condições para construção de uma nação soberana, com práticas econômicas amigáveis em relação às leis da natureza e respeitosas em relação aos direitos humanos. Não está morto quem peleia.