Terra, Raça e Classe: A classe trabalhadora é negra

Qual a relação da luta do MST pela Reforma Agrária com o debate sobre a questão racial? Para compreender esse contexto se fez necessário entender que a terra se configura como um fator estruturante

Por Raumi de Souza*
Da Página do MST

A cor majoritária da classe trabalhadora brasileira é negra e as desigualdades sociais e territoriais no campo estão intrinsecamente ligadas às desigualdades raciais. Na nossa experiência de militância do MST, percebemos que a maioria das pessoas que compõe os assentamentos e acampamentos é afro-brasileira e consequentemente vítima do racismo, ora camuflado, ora revelado e combinado com o preconceito de classe. 

Por esse nexo, nos perguntamos: qual a relação da luta do MST pela Reforma Agrária com o debate sobre a questão racial? Para compreender esse contexto se fez necessário entender que a terra se configura como um fator estruturante, pois no Brasil quem tem o seu controle possui também a concentração do poder. 

A disputa pelo poder por meio do controle da terra surgiu no período colonial em que foi instituída a propriedade privada com a Lei de Terras de 1850. A terra passa a ser acessível somente pela compra direta impossibilitando sua posse à população negra escravizada então “liberta” e os imigrantes camponeses europeus e asiáticos que vieram para o Brasil no fim do século XIX e no princípio do século XX. Portanto, a lei não permitiu a democratização da estrutura fundiária. Assim a propriedade privada da terra passa ao controle dos latifundiários.

Por meio da apropriação latifundiária e da concentração da terra pelos colonizadores através da repressão, tortura e morte, o índio e o negro foram excluídos social e territorialmente, ficando marginalizados sem direito à terra muito menos a condições financeiras dignas. Portanto, a luta pela terra no Brasil tem historicamente um vínculo com a questão racial e gera uma luta de classes. Aqui a questão da colonização do território aconteceu a partir da questão racial, o sistema de colonização manteve estruturas econômicas, políticas e culturais que foram capazes de perpetuar territorialmente a divisão sócio-racial da população.

De acordo ao sociólogo Florestan Fernandes, classe e raça combinam forças essenciais para contrapor à ordem existente e fortalecem reciprocamente, “que só podem se recompor em uma unidade mais complexa, uma sociedade nova, por exemplo”. A luta negra e a luta agrária fazem parte de uma luta da classe trabalhadora “aí está o busílis da questão no plano político revolucionário”. Desta maneira, a raça também é um fator revolucionário específico. De acordo com ele, classe e raça são duas polaridades, que não se contrapõem, mas se interpenetram como elementos explosivos. Classe e raça é unidade do diverso, são dilemas interligados (uma não esgota a outra e, tampouco, uma não se esgota na outra). 

Assim entendemos que o chamado ‘problema do negro’ vem a ser o problema da viabilidade do Brasil como Nação. Como diz Florestan: “não haverá Nação enquanto as sequelas do escravismo, que afetaram os antigos agentes do trabalho escravo e seus descendentes ou os ditos brancos pobres livres, não forem definitivamente superadas e absorvidas”.

De acordo a militante negra baiana Vera Lúcia Barbosa (Lucinha), o MST ao construir a luta pela Reforma Agrária, faz também a luta racial na prática, pois, no Estado da Bahia, por exemplo, a estética das pessoas que formam os assentamentos e acampamentos é negra. “A gente faz a luta racial na prática quando fazemos um acampamento, um assentamento, na cidade onde aquelas pessoas se surgem como sujeitos. Então você resgata a autoestima da pessoa como pessoa, enquanto trabalhador rural negro e negra porque eles se impõem”.

Ao afirmar que a luta do MST pela Reforma Agrária é por si só uma luta pela superação do racismo, Lucinha reitera, porém, que o que falta no Movimento é um avanço na estruturação da temática racial de modo que esteja inserida em torno dos eventos. Segundo ela, essa é a diferença dos quilombos para os assentamentos do MST: “Você vai visitar os quilombos, é um espaço aonde as pessoas se organizam e se definem como negros e negras, se organizam com tal, o que a gente ainda não conseguiu foi chegar nesse estágio”.

Encontramos no MST uma abertura para a temática, porém, o Movimento não desenvolveu ainda um debate sobre as desigualdades raciais e a pauta racial não está na estratégia de luta do MST como por exemplo, a questão de gênero e recentemente a questão LGBT. Inclusive os militantes negros bem como os demais discutem essas temáticas, mas ainda não adentraram na questão racial da mesma maneira. 

Portanto, de acordo com Florestan Fernandes, a luta negra dissociada de um pensamento e uma articulação com a classe, seria um erro – o que acontece com diversos movimentos negros -, pois não completa a transformação social e por outro lado, a luta pela terra sem um olhar para a questão racial configura-se também como um vacilo, pois, o negro historicamente compõe a maior parte dos mais segregados socialmente. Consequentemente os movimentos que compõem a luta pela Reforma Agrária – que historicamente já se configura como uma luta da classe trabalhadora – necessitam instituir como pauta a temática racial e por outro lado os movimentos negros precisam articular as suas lutas raciais também como uma luta de classe e olhar para a questão agrária como embrionária, pois ela é elementar no tocante as desigualdades sócio-raciais no Brasil.

*Raumi é militante do MST e mestre em geografia