Precarização entre os assalariados do campo, uma disparidade histórica

Acompanhe o último de uma série de três artigos o impacto do governo Temer no campo e o rastro destrutivo do agronegócio

42667166200_32114ba0d4_b.jpg

 

Por Kelli Mafort*
Especial para a Página do MST

 

As relações de trabalho no campo, são as mais precarizadas com pouca ou nenhuma proteção de direitos trabalhistas, predominância de contratos precários e permanência de situações de trabalho análoga à escravidão Existe uma associação perversa entre a sazonalidade de trabalho na agricultura com a falta de direitos na contratação, disseminando o entendimento de que por ser de curta duração, não precisa deste tipo de “proteção legal”. A tragédia atual, com a aprovação geral da terceirização e da reforma trabalhista, é o desaparecimento quase total de qualquer proteção legal para atividades rurais, independente de sua duração. A situação das mulheres negras no campo é ainda mais desigual, o que explicita os aspectos nefastos de uma sociedade patriarcal, machista e racista, elementos centrais para compreender a dinâmica da classe trabalhadora na atualidade.

A juventude do campo, está cada vez mais empobrecida e com pouca expectativa quanto à garantia de emprego, são eles e elas os mais expostos às expropriações do trabalho e consequente migração forçada. Das medidas impostas pela reestruturação produtiva, a partir dos anos de 1990, especialmente aos setores urbanos, a terceirização tem lugar de destaque, com vínculos empregatícios fragilizados e fundamentados na flexibilização das leis trabalhistas, retirando a responsabilidade das empresas sobre os trabalhadores, e repassando-a para empresas terceiras, contratadas para prestação de serviços. No campo, a terceirização é uma forma antiga de exploração do trabalho e sua modalidade mais conhecida é a figura do “gato”, um aliciador (agenciador) de trabalhadores. Desde 1973, há uma brecha jurídica de interpretação acerca da liberação da atividade fim da terceirização, principalmente nos chamados contratos de safra, o que vem sendo sistematicamente questionado na justiça do trabalho. Mas a aprovação da lei 13.429/2017, e a recente votação no STF, resolvem a questão pendendo para o lado do capital, ao liberar a terceirização em todas as fases do processo produtivo, o que no campo, já ocorre na prática há muitos anos, mas antes isso era ilegal, ou, pelo menos, os empresários tinham que enfrentar uma batalha jurídica, que agora foi dramaticamente superada.

Importante salientar que a esmagadora maioria dos trabalhadores resgatados em situações análogas à escravidão, são contratados por empresas terceirizadas. Outro fator importante é a relação entre terceirização, trabalho escravo e imigração estrangeira, pois essa força de trabalho interessa muito os empresários, por estarem em lugar desconhecido, com pouca ou nenhuma rede de contatos e mais suscetíveis. Com a aprovação da reforma trabalhista, os empregadores não são mais obrigados a remunerar pelo tempo do deslocamento da/do trabalhador/a até o local de trabalho, mesmo que o transporte seja de sua responsabilidade. Além disso, prêmios e gratificações não integram mais o salário. Isso aprofunda a desigualdade social existente e torna insuportáveis as condições básicas de sobrevivência, num universo onde 78% dos trabalhadores são informais, têm rendimento médio de menos de um salário mínimo e destes, cerca de um terço recebe menos de um salário mínimo. Diante da condição imposta pelo capital de que a única forma de sobrevida é através da venda da força de trabalho, o desemprego se torna uma ameaça constante, que dita a vida do trabalhador ocupado ou daquele que está desempregado, pois ao lutarem por conservar seus empregos, ou se lançarem no mercado numa violenta concorrência entre si, acabam por reduzir o valor da força de trabalho, dividindo-se entre os que conseguem e os que não conseguem vender sua força de trabalho.

Outra evidência da precarização do trabalho no campo, diz respeito à questão da saúde do trabalhador. Como exemplo podemos citar as situações alarmantes de intoxicações humanas por agrotóxicos e com o aumento crescente da utilização do pacote agroquímico, as intoxicações dos trabalhadores tendem a aumentar. Segundo o INCA, em 2016, foram registrados 600 mil novos casos de câncer; destes, 15% têm origem em fatores genéticos e 85% em fatores ambientais. Outro fator de precarização no campo é o excessivo dispêndio de esforço físico, causador de acidentes, doenças e mortes.

 

A própria condição de aprofundamento e generalização de precarização e proletarização à classe trabalhadora no campo – assalariados (com carteira assinada ou não) e desempregados, pequenos agricultores, assentados, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e outros – impõe novos desafios às organizações de trabalhadores, sejam elas sindicais ou de movimentos populares de luta por Reforma Agrária. Ainda na linha das perversas medidas do golpe para o campo, em 2016 foi sancionada pelo presidente Michel Temer, a lei 13.288/16, que dispõe sobre os contratos de integração, obrigações e responsabilidades nas relações contratuais entre produtores integrados e integradores.

A Lei da Integração tem sido utilizada principalmente pelo agronegócio como medida protetiva aos seus interesses e mecanismo de segurança jurídica. Importante salientar o grau de dependência que os agricultores têm em relação à agroindústria, seja quanto ao fornecimento dos insumos – em 2016, somente numa propriedade no município de Cascavel/PR, cerca de 34 mil frangos morreram de fome, pois não houve o fornecimento da ração por parte da empresa integradora que alegou preço alto do milho – ou de recebimento das peças para processamento. Entre os aviários e a agroindústria, subsiste uma relação de trabalho ainda mais degradante que é a “apanha das aves”, feita por trabalhador que recolhe o frango vivo nos aviários, os coloca em caixas a serem transportadas até a agroindústria, e depois os descarrega para linha de abate e processamento.

Em geral são trabalhadores terceirizados, aliciados por um “gato” (intermediário na contratação), a serviço das grandes empresas como a BRF e a JBS, que se esquivam de qualquer responsabilidade trabalhista. Em suma, uma das faces do golpe no campo é a intensificação da exploração do trabalho, com a aprovação da reforma trabalhista e com a liberação total da terceirização. As referidas leis extraem o que há de pior das relações trabalhistas mais ultrajantes e transformam isso em regra, eliminando qualquer resquício positivo e civilizatório de proteção social, por meio judicial. Ao contrário, a atual legislação do golpe, além de regulamentar a barbárie, ainda expurga do sistema judiciário, o direito de contestação das próprias vítimas.

Mas a reforma trabalhista no Brasil, deve ser entendida sob um contexto mundial mais amplo de reordenamento jurídico e institucional, imposto pelo capital. Vários países – com governos eleitos ou resultantes de golpe de Estado, como o atual presidente do Brasil, Michel Temer – estão operando tais mudanças. Estudo da OIT – Labour market reforms since the crisis: Drivers and consequences – realizado em 110 (cento e dez) países, analisando 642 (seiscentas e quarenta e duas) mudanças laborais em países desenvolvidos e em desenvolvimento, aponta para a desregulação generalizada, principalmente em países com aumento no índice de desemprego ou diminuição do PIB. Os objetivos alardeados pelo capital, e serviçais governos de plantão, tem sido: aumento na competitividade (com redução do custo trabalho), criação de postos de trabalho (por meio da flexibilização e proliferação de contratos precários) e reestruturação dos canais de negociação coletiva (destruindo e/ou neutralizando os sindicatos).

O estudo demonstra ainda que tais medidas tiveram efeitos reativos de curta duração e causaram aumento do desemprego e grande rotatividade entre os trabalhadores em diferentes funções, todas elas precárias. Apesar do efeito reativo de tais mudanças sobre os supostos objetivos alardeados pelo capital, as consequências para a classe trabalhadora serão sentidas por longo período, pois trata-se de um projeto político de intensificação da dominação do capital transnacional de longo prazo. Importante salientar ainda que no Brasil a reforma trabalhista está articulada a um arcabouço jurídico de dragagem na retirada de legítimos direitos dos trabalhadores, numa completa naturalização da barbárie, onde qualquer argumento legalista de defesa dos direitos instituídos não têm a menor relevância, devido à inexistência de uma pretendida legislação protetiva, com algum resquício civilizatório.

É o caso do projeto da reforma da previdência, que privatiza o sistema público, incentivando o deslocamento para as empresas previdenciárias privadas, por meio da quase total inviabilização da possibilidade de aposentadoria pública, provocada pelo aumento do tempo de contribuição e da idade mínima. Note-se que a reforma da previdência somente será possível, pois a própria reforma trabalhista promoveu uma exclusão previdenciária massiva, por meio da redução drástica dos empregos com direitos. Por fim, importante atentar que o golpe sempre pode ir mais longe, como foi a tentativa de Michel Temer com a portaria 1129/17, que pretendia alterar a conceituação acerca do que pode ser considerado como trabalho análogo à escravidão.

No Brasil, o trabalho escravo é definido pelo Artigo 149 do Código Penal e prevê o enquadramento como crime nas seguintes situações: trabalho forçado, jornada exaustiva, condição degradante de trabalho, restrição de locomoção por dívida e retenção no local de trabalho; a referida portaria propunha que em todos estes itens, fosse acrescentada uma redação que explicitasse o cerceamento da liberdade ou situações em que o trabalhador é forçado ao trabalho.

A proposição de tal conceituação não deixa dúvidas de que para as elites brasileiras, os trabalhadores somente poderiam ser considerados escravos caso estivessem em situação extrema, presos à correntes. Tal portaria vergonhosa foi derrubada na justiça, mas expõe a mentalidade escravocrata predominante no país, que em nada tem a ver com o atraso, mas ao contrário, é justamente resultante de um modelo de sociedade fracassada, sob uma profunda crise estrutural, que de maneira aviltante avança sobre as relações de trabalho, da natureza e do próprio sentido de humanidade.

Por tudo isso há que resistir, contra o golpe e sua natureza perversa. A história mostra que sempre é possível virar a pedra. Avancemos!

 

* Kelli Mafort é integrante da coordenação nacional do MST