O homem que venceu a Monsanto: ‘eles têm de pagar por não serem honestos’

Johnson, que nunca imaginou que seria conhecido e apareceria em dezenas de manchetes como “o homem que contraiu câncer causado por herbicidas”, ainda está processando a vitória histórica.

Do Instituto Humanitas Unisinos*

Um júri determinou que a empresa agroquímica causou o câncer de Dewayne Johnson. Ele revela que quer usar a vitória para fazer a diferença enquanto ainda há tempo.

Dewayne Johnson tenta não pensar na morte.

Os médicos disseram que o paciente de 46 anos, que sofre de um câncer, poderia ter meses de vida, mas ele não gosta de pensar na morte. Hoje em dia, é fácil para ele se distrair: vendo a atenção internacional que atrai para sua vida.

O pai de três e ex-zelador de uma escola aprendeu a viver com a dor e a delícia de estar em voga durante o mês desde que um júri da Califórnia determinou que a Monsanto causou seu câncer terminal. A sentença histórica contra a empresa agroquímica, que incluiu uma indenização de US$ 289 milhões, disseminou preocupações com a saúde do herbicida mais conhecido do mundo e fomentou debates sobre a regulação no mundo inteiro.

Johnson, que nunca imaginou que seria conhecido e apareceria em dezenas de manchetes como “o homem que contraiu câncer causado por herbicidas”, ainda está processando a vitória histórica.

“Ir contra uma empresa como essa, tornar-se uma figura pública, é algo intenso”, disse ele ao The Guardian em uma rara entrevista desde a sentença, no dia 10 de agosto. “Senti uma responsabilidade enorme.”

Johnson foi a primeira pessoa a levar a Monsanto a tribunal por acusações de que a empresa global de sementes e pesticidas passou anos escondendo os riscos de contrair câncer oferecidos por seus produtos. Também foi o primeiro a vencer. A sentença pioneira declarava que a Monsanto “agiu de má-fé” e sabia ou deveria saber que as substâncias químicas usadas eram “perigosas”.

O legado da sentença extraordinária pode ser sentido por muitas gerações e Johnsondisse que está empenhado em fazer a vitória ter o maior impacto possível enquanto ainda tiver tempo.

Enquanto isso, a Monsanto se manifestou na semana passada para tentar rejeitar a sentença – e para que a família de Johnson não receba o dinheiro.

‘Seguro para beber’

A substância que mudou a vida de Johnson é o glifosato, que a Monsanto começou a divulgar como Roundup em 1974. A empresa apresentou o herbicida como um precursor tecnológico para matar quase todo tipo de erva daninha sem colocar em risco o meio ambiente nem as pessoas.

Os produtos Roundup estão hoje registrados em 130 países e aprovador para uso em mais de 100 plantações, e o glifosato pode ser encontrado nos alimentos, em fontes de água e na urina de agricultores.

No entanto, pesquisas realizadas ao longo dos anos reiteradamente levantaram questões sobre os possíveis danos associados ao herbicida, e em 2015 a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer da Organização Mundial da Saúde classificou o glifosato como “provavelmente carcinogênico para os seres humanos”.

Johnson disse que não sabia nada dos riscos em 2012, quando começou a trabalhar como zelador de uma escola pública em Benicia, uma pequena cidade a cerca de 50 km de São Francisco.

Johnson gostava do trabalho, que se localizada na sua cidade natal, Vallejo, onde nasceu, cresceu e ainda mora com a mulher, Araceli, e seus dois filhos. Num vídeo divulgado nas redes sociais, publicado no próprio local de trabalho, ele estava animado com seus afazeres, dizendo para os seguidores: “Como me sinto bem de ter um trabalho!” Disse, ainda, que uma ratoeira que tinha colocado tinha pegado um ratinho: “Peguei o Mickey!”

Ele atuava principalmente na área de proteção integrada de pesticidas e era responsável por pulverizar Roundup e Ranger Pro (outro herbicida da Monsanto baseado em glifosato) em várias escolas e campos esportivos da região. Em alguns dias, ele chegava a pulverizar mais de 560 litros de produto ao longo de diversas horas.

Johnson disse que não se preocupada com os riscos à saúde, pois os rótulos da Monsanto não continham nenhum aviso. Durante um treinamento, chegou a ouvir que era “seguro até para beber”. Ele também seguia as instruções do rótulo com cuidado, lendo-as a cada vez que fazia uso. Ele diz que o processo era como se estivesse seguindo uma receita, lembrando quando trabalhava num restaurante.

Além disso, usava o equipamento de proteção individual para ter um cuidado ainda maior. Mas às vezes o produto vazava, e ele chegou a borrifar na pele numa ocasião.

Em 2014, após cerca de dois anos de uso regular, ele começou a perceber irritação na pele e viu que havia algo errado.

“Antes, minha pele era impecável”, lembrou. “Era muito perceptível para mim e para outras pessoas. Não era normal.”

Logo, começaram a aparecer marcas no rosto e lesões assustadoras no corpo todo, e seus médicos tiveram dificuldades para entender o que se passava com ele num primeiro momento.

Depois, eles acabaram descobrindo: era câncer, e ele estava morrendo. Quando receberam a notícia, Araceli caiu em lágrimas e ele permaneceu paralisado, lembra.

“Não sou o tipo de pessoa que tem medo de morrer”, disse. Ele queria descobrir por que estava doente – e o que poderia fazer para combater a doença.

‘Me senti totalmente traído’

Johnson e Araceli se conheceram num curso introdutório de álgebra numa faculdade há cerca de 14 anos. Ela ficou imediatamente atraída, mas tinha muito medo de falar com ele. Sua irmã, que também era colega, acabou abordando Johnson por ela.

No julgamento em São Francisco, que atraiu muitas pessoas neste verão, marido e mulher testemunharam sobre seu casamento com muito amor. Mas também descreveram como tudo mudou com a chegada do câncer.

Johnson disse que fazia grande parte das tarefas domésticas, como cozinhar e fazer a limpeza, mas não conseguiu manter as atividades depois que ficou doente. Num determinado momento, ele estava tão doente que mal conseguiu sair da cama por um mês. Ele disse que perdeu muitas coisas em decorrência do câncer, como o velório de um tio e várias atividades com seus filhos, que têm 10 e 13 anos.

Johnson tem Linfoma não Hodgkin, um tipo de leucemia que afeta o sistema imunológico e causou as lesões de pele. Por vezes, o câncer era tão doloroso e incapacitante que ele não conseguia andar ou ficar exposto ao sol. E às vezes o tecido machucava ao entrar em contato com a pele, mencionou. Houve períodos em que não era possível ter relações mais íntimas com sua esposa. No júri, ele disse estar grato por ela ter ficado a seu lado durante todo esse período de sofrimento.

Araceli teve de começar a trabalhar em dois empregos, numa escola e numa clínica de idosos, muitas vezes trabalhando 14h por dia, observou ela. Por vezes, Johnson chorava a noite toda quando achava que ela estava dormindo, também relevou Araceli.

Kahli, o filho de 10 anos, quer ser químico, diz Johnson, e já fez uma “poção” para tentar curar o pai. Ele juntou uns ingredientes da cozinha numa garrafinha azul.

“Era uma limonada doce e salgada”, conta Johnson. “Não era gostosa.”

Em determinada altura, quando a pele estava piorando, Johnson ligou para o atendimento da Monsanto para falar sobre sua doença. Ele falou com uma mulher, que parecia estar lendo um script e disse que alguém entraria em contato, o que nunca aconteceu. Por algum tempo, ele continuou usando o herbicida no trabalho.

Mas ele próprio começou a pesquisar: “Eu queria saber os fatos.” Por fim, descobriu que havia estudos que associavam o glifosato ao câncer: fato que um colega supervisor mencionou um tempo depois.

“Me senti totalmente traído”, disse. “Perdi tudo. Cheguei no fundo do poço.”

Johnson chegou a um ponto em que sentia que entrar com um processo judicial era a única esperança. E a única forma de revelar a verdade.

‘Espero que seja uma bola de neve’

Independentemente do resultado, o processo de Johnson contra a Monsanto vai ser sempre digno de notícia, porque o juiz permitiu que a equipe jurídica do paciente usasse argumentos científicos em tribunal. O processo também esclareceu alguns e-mails internos da Monsanto ao longo dos anos que, segundo os advogados de Johnson, demonstravam que a empresa havia rejeitado pesquisas importantes e avisos de especialistas por diversas vezes.

Evidências sugeriram que a Monsanto tinha traçado planos estratégicos para escrever pesquisas favoráveis forjadas.

Monsanto, que foi comprada pelo gigante da indústria farmacêutica Bayer no início deste ano, continuou defendendo que o Roundup não causa câncer e que os críticos estão exagerando os estudos e ignorando pesquisas que mostram que os produtos eram seguros.

O júri discordou e determinou que Johnson também deveria receber US$ 250 milhões por danos punitivos e US$ 39,2 milhões por outros danos.

Quando a sentença foi anunciada, Johnson disse que seu corpo entrou rapidamente entrou em uma espécie de choque.

“Senti como se todos os fluidos tivessem saído e voltado para o meu corpo”, lembrou.

A decisão unânime do júri determinou que os produtos da Monsanto apresentam um “grave perigo” às pessoas e que a empresa não avisou os consumidores dos riscos.

“Por anos eles se esconderam e se safaram”, disse Johnson. “Eles têm de pagar o preço por não terem sido honestos e por colocar em risco a saúde das pessoas em nome do lucro.”

Antes da decisão, Johnson disse que não tinha expectativas sobre o resultado.

“Eu nunca discuti de verdade sobre vencer, receber dinheiro nem valores com o pessoal do jurídico”, disse, acrescentando que tinha medo das implicações de uma vitória da Monsanto: “Se perdermos, os fatos não vão mais aparecer. Isso seria a pior parte.”

Pedram Esfandiary, um dos advogados de Johnson, disse que ficou muito impressionado com o quanto o cliente conseguiu permanecer otimista e focado em expor os fatos e proteger os outros dos perigos do Roundup.

“O cara está lidando com a realidade de sua própria morte”, disse. “A vida dele está em perigo por causa do que aconteceu… Ele estava preocupado em fazer a verdade vir à tona.”

Johnson disse que queria usar a plataforma que recebeu para continuar conscientizando sobre o glifosato. Agora, ele está lutando para tirar o produto de todas as escolas e playgrounds da Califórnia. A escola de Benicia, segundo o ex-funcionário, já disse que vai parar de usar glifosato. Para ele, já é um começo.

O caso incentivaria consumidores a mudar os hábitos e explorar formas alternativas de cuidar das ervas daninhas: “Espero que seja uma bola de neve, que as pessoas realmente entendam o cenário e comecem a decidir sobre o que comem e o que pulverizam na lavoura.”

Johnson passa por sessões de quimioterapia regularmente e disse que está se sentindo bem melhor. Os médicos disseram que ele teria no máximo dois anos de vida. Ele também está se dedicando à música e planeja lançar um EP de rap, com a música “Not My Time” (em português, Não é a minha hora), que conta sua luta contra o câncer e fala sobre seguir em frente apesar da “precoce sentença de morte”.

Para Johnson, nunca se tratou de “destruir uma empresa ou derruba rum império”. “Espero que [a Monsanto] entenda a mensagem de que as pessoas nos Estados Unidos e no mundo todo não são ignorantes”, observou. “Elas já pesquisaram.”

Agora, ele gostaria que a Monsanto colocasse avisos sobre o risco de contrair câncer nos rótulos, para que as pessoas possam tomar decisões informadas. Ele também espera que o processo não demore muitos anos, e confessa que a Monsanto deve continuar lutando com violência até o fim. “É assim que agem grandes empresas como essa.”

Ele tinha um último pedido à Monsanto – algo que sabe que nunca receberá: um pedido de desculpas.

 

*A reportagem é de Sam Levin, publicada por The Guardian, 26-09-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.