Turma de Direito do Pronera se formará em 2019

Em 20 anos, programa levou ensino superior a 5,9 mil no país

 

Do Portal da Universidade Federal do Paraná 

Criado por uma portaria do governo federal em 1998, o Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária (Pronera), do governo federal, terá seus primeiros formandos em Direito pela UFPR em 2019 — ou seja, no ano seguinte ao seu aniversário de 20 anos. São 47 alunos selecionados em 2014 pelo Sistema de Seleção Unificada (SiSU), que usa a nota do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), para vagas suplementares no curso de Direito.

Esses novos formandos se somarão aos cerca de 5,9 mil que acessaram o ensino superior (graduação e pós-graduação) devido ao Pronera no país, segundo dados recentes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Pelo menos 49 instituições públicas de ensino superior já abrigaram turmas de educação superior amparadas no programa, em diversas áreas de conhecimento. 

Prédio Histórico, na Praça Santos Andrade, foi o principal local de aulas da turma do Pronera. Foto: Paulo Camargo/Sucom-UFPR, 2/2/2012

A turma do Pronera no Direito da UFPR é composta por estudantes vindos de 15 estados além do Paraná, mas todos têm em comum o fato de possuírem vínculos com as comunidades tradicionais do campo — elas são o foco do programa, voltado a reduzir o déficit educacional dessas populações. Essas comunidades são formadas por assentados pela reforma agrária e seus filhos, pequenos agricultores, beneficiários de crédito fundiário e quilombolas. Para participar do processo seletivo, foi necessário comprovar o vínculo por meio da inscrição no Incra.

Acesso

Para a maioria dos alunos, a turma do Pronera na UFPR foi a primeira oportunidade de acesso à educação superior dentro da família. Um exemplo: na casa de Jaqueline Pereira de Andrade, de 22 anos, apenas uma prima está em vias de ter um diploma universitário — também em Direito, dessa vez por uma turma do Pronera na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Jaqueline cresceu na comunidade de Monte Santo, na Bahia, onde vivem cerca de 180 famílias produtoras de alimentos orgânicos, entre eles milho, feijão e mandioca. O incentivo para se inscrever na seleção da UFPR via SiSU partiu da Pastoral da Juventude Rural (PJR) que atua na região.

Depois de se formar Jaqueline pretende ser advogada de causas populares e, depois do mestrado, se “desafiar a saltos mais longos”. Ela classifica a graduação na UFPR como uma experiência transformadora. “Poder ter acesso à universidade pública, a uma faculdade de direito, é uma vitória para nós, camponeses, porque sempre nos foi negado esse espaço. Nunca tivemos acesso a uma educação de qualidade. Como dizemos, é o ‘latifúndio do conhecimento’”, compara.

Trâmite

A decisão da UFPR pela turma especial do Pronera foi um processo que começou em 2011, a partir de um projeto que surgiu com base em uma experiência do Pronera com uma turma de Direito na Universidade Federal de Goiás (UFG). Para avaliar a sugestão, foi criada uma comissão de trabalho formada pelos professores José Antonio Peres Gediel, Luiz Edson Fachin e Manoel Caetano Ferreira Filho. A aprovação do plano de trabalho pelo Departamento de Direito Civil e Processual Civil, onde a proposta nasceu, ocorreu em 2012.

Depois desse primeiro passo, foram realizadas discussões nas instâncias internas do curso de Direito (entre elas, o colegiado setorial). Nessa esfera foram levantadas questões relacionadas à infraestrutura do curso e a disponibilidade dos professores em ampliar o número de aulas. A professora Vera Karam de Chueiri (hoje diretora do Setor de Ciências Jurídicas e, na época, vice-diretora) afirma que a abertura manifestada pela maioria dos docentes permitiu que a adesão ao Pronera ocorresse sem sobressaltos, apesar das várias oportunidades de discussão.

Após isso houve a deliberação pelas pró-reitorias envolvidas e em audiências no Conselho de Planejamento e Administração (Coplad) e no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), até a aprovação e o lançamento do edital de seleção para vagas suplementares (ou seja, extras, não cotas), em outubro de 2014. O conteúdo programático e os professores são iguais aos das turmas regulares do Direito, com a exceção da inclusão de disciplinas relacionadas ao campo — fundiárias e de meio ambiente, por exemplo.

“Foi interessante porque aconteceu no tempo em que tinha que acontecer. Houve uma discussão bastante intensa e plural”, conta Vera. “Tanto que poderíamos ter aprovado a turma um ano antes [para ingresso em 2014], mas optamos por aprofundar o debate, escutar as instituições envolvidas”.

A professora avalia que a convivência com a turma enriqueceu o debate acadêmico e serviu para desmistificar preconceitos relacionados às políticas de acesso ao ensino superior. “Os alunos participaram do cotidiano da universidade muito intensamente, com dedicação e crítica. Tiveram desempenho exatamente dentro da média das demais turmas. Uma faculdade de direito deve se sentir afortunada por ter alunos que se dedicam de corpo e alma à educação, não importa a origem deles”.

Experiência

Além de ajudar a reduzir a carência educacional no campo, a experiência da UFPR com a turma de Direito do Pronera contribuiu para diversificar a produção científica no curso. O professor Manoel Caetano Ferreira Filho, que coordena o projeto até hoje, conta que os alunos trouxeram ao ambiente acadêmico da UFPR uma nova visão sobre áreas do Direito então abordadas com menos frequência, como o Direito Agrário e os direitos sociais e humanos referentes a questões do interior do país, como acesso à alimentação e à moradia.

Segundo Manoel Caetano, essas contribuições foram incentivadas pelo conteúdo programático da turma, que prevê aplicação dos conhecimentos na comunidade de origem fora do calendário letivo. Isso porque uma das características das turmas do Pronera é conciliar o chamado “tempo universidade” com o “tempo comunidade”. “É um compromisso de férias de todos eles realizar atividades complementares nas comunidades, portanto eles estudam o ano todo”, explica o professor. Com a formatura, marcada para dezembro, devem ser lançados dois volumes de trabalhos científicos elaborados pelos alunos da turma.

Um desses trabalhos teve como base relatos da comunidade acadêmica envolvida com turmas de Direito do Pronera no país. Os autores Jeferson da Silva Pereira e Rafaela Miranda Santos também contextualizaram o impacto, para as comunidades, da existência de operadores do Direito sensibilizados pelas questões desses grupos sociais, não raramente vítimas de violência.

Histórias

Criado no quilombo Águas do Velho Chico, no sertão pernambucano, Jeferson viu a turma do Pronera na UFPR como uma oportunidade de ingressar em um ramo que, para ele, parecia impeditivo. “Foi uma forma de ocupar um espaço elitizado e difícil. A política do Pronera me abriu um leque de possibilidades. Sem ela, seria impossível eu estar aqui, em uma das mais importantes faculdades de Direito do país”, diz ele, que tem 30 anos e já é formado em Pedagogia.

Empenhado em projetos de iniciação científica, Jeferson colabora com o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab), por meio do qual produz trabalhos científicos sobre Direito com recorte em questões raciais. A pesquisa é uma das carreiras que ele vislumbra. “Sempre tive a perspectiva de continuar colaborando com minha comunidade, seja advogando lá, prestando concurso para carreiras jurídicas ou fazendo mestrado e doutorado trabalhando com temas importantes para ela”.

O vínculo com a comunidade de origem é o que move Isabela Cruz, de 29 anos, que cresceu na comunidade quilombola Paiol de Telha Guarapuava, no Paraná. “Soube através de um amigo que existia uma política pública para cursar Direito sob a perspectiva da educação do campo, e me interessei pela proposta metodológica que o programa oferece”, lembra. “Tem sido uma experiência sociológica muito importante, tomar contato com mundos e pessoas tão diversas”.

Aos 31 anos, Rafael de Jesus se recorda do senso de “dever” que veio com o ingresso no curso superior. “A primeira experiência foi de deslumbre ao entrar naquele prédio com colunas brancas, escadarias de mármore. Mas, além disso, vem a responsabilidade de saber que se é negro, pobre, camponês ou filho de camponeses, e agora tem a missão de melhorar a vida da sua família e da sua comunidade”.

Jesus foi criado em Maiquinique, município de 10 mil habitantes no interior da Bahia, onde a maioria das famílias vive da agricultura de subsistência. É o primeiro da família a entrar na faculdade. Apesar de ter sido mais incentivado a estudar do que seus pais, na infância muitas vezes teve que optar entre educação e trabalho.

“Antes do Pronera eu não tinha muita perspectiva. Tinha ensino médio completo, trabalhava na comunidade nos fins de semana e, nos dias úteis, trabalhava na Prefeitura e ganhava salário mínimo. Achava que era aquilo ali mesmo”, conta. Sua perspectiva agora é ganhar experiência na área de formação e voltar à comunidade. “Quero contribuir como a gente pode, sabe e faz todos os dias. Tentar melhorar um pouco o nosso quadro social”.

Sobre o Pronera

Segundo o Incra, o Pronera tem como público alvo jovens e adultos dos projetos de assentamento criados e reconhecidos pelo instituto, quilombolas e trabalhadores acampados cadastrados na autarquia, bem como beneficiários do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNFC).

Por meio do Pronera, é oferecido acesso a diversas modalidades da educação, da alfabetização à pós-graduação.

No caso da graduação, turmas foram abertas em diversas universidades estaduais e federais. Além das seis turmas de Direito em todo o Brasil, já foram criadas turmas de Pedagogia, Administração, Agronomia, Serviço Social, História, Geografia, Agroecologia, Zootecnia, Letras, Enfermagem, Ciências Sociais e Medicina Veterinária.

No Paraná, de acordo com o Incra, houve turmas na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e na Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro), ambas em cursos de Pedagogia; e no Instituto Federal do Paraná (IFPR), no curso de Tecnologia em Agroecologia.

Além da turma de Direito, a UFPR participa do Pronera por meio de uma turma de licenciatura em Educação do Campo com habilitação em Ciências da Natureza, no Setor Litoral.