As mulheres na Guerrilha do Araguaia

Mais de 40 anos se passaram desde o fim da guerrilha do Araguaia e muitas histórias continuam não-contadas
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Peça Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos – Foto: Luara Del Chiavon

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

 

Hoje, 12 de abril, completam-se 47 anos do início da guerrilha do Araguaia, data marcada pelo ataque ao “Peazão”, o ponto do PCdoB mais próximo a Marabá, no Pará. A ofensiva aconteceu no  início  do  ingresso  dos  militares, em 1972, quando a construção da Transamazônica deixou exposta  essa  área  antigamente  escondida  pela  selva.  

Nesse cenário, as mulheres tiveram um papel fundamental entre um grupo de estudantes, operários e camponeses fizeram oposição ao governo vigente, no episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia. A história delas foi representada de forma poética e documental em músicas, danças, livros e apresentações, como na peça &”39;Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos&”39;.

Trazer a perspectiva feminina em episódios que envolvem tantas cicatrizes emocionais na história não é uma tarefa fácil, principalmente em tempos sombrios. Por isso, a peça &”39;Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos&”39; é uma peça única dentre os espetáculo.
 

Ao levar para o palco a história de mulheres que lutaram e morreram na guerrilha do Araguaia, a apresentação traz uma nova perspectiva histórica. A peça foi escrita por Gabriela Carneiro da Cunha e dirigido por Georgette Fadel, que conversou conosco sobre a montagem.

 

Confira

 

Por que contar a história das mulheres na guerrilha do Araguaia?
 

O debate sobre ‘a mulher’ é sempre muito importante para mim, porque sabemos do massacre intelectual, moral e físico aos quais somos submetidas desde sempre. As mulheres pobres, negras, e também mulheres burguesas, dentro alguma instância, são vítimas de opressão, do silenciamento, do esquecimento.
 

Eu tenho um grande prazer em estudar e trazer, na medida do possível, o mínimo de justiça para essas mulheres silenciadas em suas lutas. Faço isso a partir da minha arte, das minhas ações, dos meus textos e das direções que possam abarcar esse sentimento, sempre trabalhando o ativismo feminino e as lutas pela libertação da mulher.
 

Essas guerrilheiras foram pessoas muito humanas, mulheres muito interessantes. Elas foram jovens, muitas delas de classe média e universitárias, estavam ali com grande coragem ao lado dos homens numa luta utópica e cheia de idiossincrasia. Eram mulheres de grande integridade, de grande vontade de entender novas possibilidades de organização social e, por isso, comunistas, inspiradas por experiências comunistas no mundo inteiro. Essas mulheres puderam ter contato direto com o povo de outras classes, com a base brasileira verdadeira, que é o ribeirinho, o camponês, o proletariado, enfim, as classes esmagadas, uma experiência que só essa proximidade mínima poderia dar.
 

Muitos criticam a postura dos atuantes na Guerrilha do Araguaia. Isso se deve a falta de conhecimento histórico? 
 

Acho importante que a gente reflita justamente sobre violência, sobre o que é ‘ser’ violento. Para mim, a opressão das classes altas sobre as classes baixas é violenta e opressiva, mas violência das classes baixas quando se erguem são lutas de libertação. Essas diferenciações são importantes para pensar nas mulheres do Araguaia, porque elas foram assassinadas e até hoje não foram encontradas.  Essas mulheres mereciam o mínimo de reconhecimento sobre essas mortes  absolutamente cruéis por parte de um Estado violento. E esse reconhecimento é que me levou, a priori, a aceitar vontade o projeto: era a oportunidade de estudar, vontade de entender e colocar a minha arte nesse estudo e disponibilizar esse olhar para essas lutas, para essa história, para esse roubo da história.
 

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Diretora Georgette Fadel “É sempre muito fácil ser pacifista quando não se tem a vida em risco – Foto: Luara Del Chiavon

 

Como você vê que esta peça se encaixa na atual conjuntura?
 

De alguma maneira, mesmo diante dos governos anteriores, as oligarquias e outros poderes reacionários, de direita, vinculados ao Capital, sempre estiveram rondando fortemente os governos, impedindo inclusive o avanço da reforma agrária e da justiça para essas histórias e de tantas outras. Nós não somos um país, nunca tivemos autonomia real, nunca tivemos autonomia política verdadeira, então a ditadura brasileira nunca foi reconhecida como em outros países da América Latina, tanto é que agora permite-se essa possibilidade de chamar revolução aquilo que foi um golpe tenebroso.
 

O espetáculo busca fazer esta crítica de forma muito localizada, não se pretende uma aula de história. Ela não é nada além que uma homenagem, um lembrete, uma afirmação de que exigimos  o reconhecimento da ditadura militar e a política de extermínio. Exigimos que essas vozes sejam ouvidas, que esses corpos sejam encontrados, que as mulheres e guerreiros do Araguaia sejam reconhecidos como guerreiros. A partir dos gestos, cenas, imagens e depoimentos de camponeses, reivindicamos a libertação de povos oprimidos, de populações minorizadas, todos temos que espaço na memória e nas aulas de história e no imaginário das nossas crianças e do nosso povo.
 

Esse seria o objetivo da peça?
 

O objetivo do espetáculo é trazer novamente essas cenas, esses corpos cuja voz ainda ecoa fortemente exigindo reconhecimento do período como sendo um golpe de estado e não uma revolução, que se assuma que a ditadura cometeu violências e mortes com uma política de extermínio e, por tanto, merece as devidas punições. A peça traz de volta essas discussões, desta vez com foco específico nas mulheres, em razão da própria luta feminista presente em momentos cruciais da história do Brasil, definindo quadros a própria história das mulheres.
 

É importante ressaltar que o espetáculo não tem pretensões de aula, mas toca em pontos nevrálgicos e faz a defesa destas mulheres. Elas eram cidadãs que não eram criminosas, não eram pessoas de má índole. Eram pessoas que não eram violentas por natureza, mas tinham ideais legítimos, ideais de  aproximação, e de trabalho de base com populações brasileiras. A peça traz as intenções delas, o questionamento entre os caminhos escolhidos em um ou outro momento, mas sempre com muito respeito por essa história.  
 

E quais as dificuldades vocês enfrentaram para contar esta história?

A guerrilha do Araguaia é uma história muito complexa, e hoje, no Brasil, é muito difícil abordar certos assuntos e termos. A palavra “comunismo”, “socialismo” ou a expressão “luta armada”, por exemplo,  enfrentam preconceitos que rondam todo o tipo de fala. A violência como atitude necessária para se abrir caminhos é um posicionamento polêmico, e sentimos em vários momentos preciso estudar bastante. Em alguns momentos eu quis que apresentações se tornassem aulas sobre comunismo, sobre liberdade, sobre luta de classe, analisando profundamente como estas palavras podem se encaixar em uma sociedade como a nossa.

Acabamos optando por uma linguagem mais poética que pudesse trazer beleza e não só o discurso. Quando finalmente afinamos a linguagem, foram em 4 meses pra que conseguíssemos informar o suficiente para passar o cerne da questão. Obviamente cada membro da equipe já tinha seu próprio engajamento pessoal, essa vontade de trazer ideais, e isso foi bem importante para nós essa certeza de que lado estamos.