Revisitando lições da primeira Greve Geral de julho de 1917

Revisitar os 102 anos da primeira greve geral é também revisitar a pauta da época e os patamares de exploração da classe trabalhadora

 

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Por Eliane de Moura Martins*

O conjunto de métodos de organização e lutas por melhores condições de vida, são formas de estabelecer os patamares aceitáveis da exploração da força de trabalho em cada época ou conjuntura histórica. 

 

Elevar esse nível da luta cotidiana para patamares superiores, capazes de superar as condições objetivas e estruturais da exploração e da opressão é uma tarefa dos militantes, de grupos e setores da classe trabalhadora, que sempre existiram e devemos render nossas homenagens e respeito. 

 

Revisitar os 102 anos da primeira greve geral é também revisitar a pauta da época e os patamares da exploração, que estavam sendo negociados. Assim como os custos da reprodução social, inteiramente recobrada sobre a classe trabalhadora e dentro desta, sobretudo, recaindo seu peso e ônus sobre os corpos das mulheres.

 

Revisitar esse conflito de classes é também se perguntar sobre a naturalização das origens das nossas lutas urbano operárias, datadas a grosso modo, como emergentes após o processo de industrialização dos anos de 1930. É, ao mesmo tempo, se questionar e olhar sobre a forma original à brasileira da luta popular, baseada em uma espécie de inquietação com resistência, com solidariedade organizada nos territórios da reprodução social. 

 

O sentido de mobilizar estas questões é para que nos vejamos como um povo, capaz de encontrarmos e forjarmos nossas próprias ferramentas – primeiro para sobrevivermos, e segundo para avançar no próprio conflito odioso entre o modo de vida social ainda vigente, centrado na senzala versus a casa grande.

 

Quanto às origens da luta de classes no Brasil, está longe de ter emergido no início do século XX, sob a direção política do anarco-sindicalismo, vindo da Europa junto a corrente imigratória dos italianos para São Paulo, embora estes tenham sido muito importantes, a luta de classes não se iniciou a cerca de cem anos. A formação da sociedade do trabalho, cindida em classes é parte de toda a nossa história, sendo a alma e a natureza do trabalho escravo, baseado na extrema violência, sem espaços de negociação das condições de extrema exploração.

 

Sob este regime, nossos antepassados trabalhadores escravizados só poderiam enfrentar o conflito da exploração e da opressão com o método de luta do boicote de trabalho, através por exemplo da quebra da enxada, do fogo no canavial, ou então da fuga, para o quilombo. Por quatro séculos esse tipo de relação não permitiu negociar as condições de existência, simplesmente a classe dominante tinha poder de vida e de morte sobre o trabalhador escravo, coisificado, mercantilizado e brutalizado sem rosto. Destes corpos moídos de tanto trabalhar, restava e resta até hoje a cor da pele, sempre associada ao rebaixamento e a desqualificação.

 

Os legados dessa forma de organização da exploração do trabalho, seguiu-se após o fim da escravidão, perpassando o século XX e seguindo até hoje. Alguns destes legados passam por uma espécie de ética degradada do trabalho manual, associada à uma parcela da classe trabalhadora, vinculada ao trabalho braçal, como a construção civil, agricultura, as empregadas domésticas e até mesmo a terceirização, palatável para atividades não fins. Ou seja, para as atividades de suporte, manutenção, segurança, limpeza, era admissível rebaixar os direitos e aceitar a instabilidade. 

 

O velho legado da imagem depreciativa do povo, associado à indiferença moral das elites em relação as imensas carências da maioria, sob uma hierarquia social rígida e devastadora, em termos de desigualdade social, aliada à formação de um Estado nacional com instituições fracas para mediar os conflitos de classes, mas forte em aparato de força, força bruta para conter os transbordamentos de revoltas e necessidades de seu próprio povo.

 

Com estes legados arrastados na longa transição do trabalho escravo para o trabalho livre o método de organização, das classes populares deu-se basicamente sob a forma da resistência com solidariedade, expressas nas organizações do movimento de Auxílio Mútuo, ou Sociedades de Socorro Mútuo. 

 

O mutualismo não foi a pré-história do sindicalismo e sim uma forma peculiar de associação das classes populares cuja sobrevivência ultrapassou os anos de 1930 e pode-se dizer que, de certo modo é o avô das sociedades de Amigos de Bairro, que é pai das atuais associações de moradores. Era um movimento voltado para assegurar a sobrevivência dos novos e pobres assalariados, sem recursos nem para custear o enterro de seus familiares. Um movimento que construiu casas, abrigos, hospitais, antecedeu toda a política de previdência e saúde públicas, tendo como base a solidariedade. Este também cuidou de aspectos culturais, como o acesso aos livros e a instrução.

 

É nesse contexto de invenção das formas de sobreviver e de lutar, junto com uma espécie de aprendizado das maneiras de negociar com uma classe dominante, intransigente e intolerante onde ocorre um longo ciclo de greves, desde meados do século XIX até o fim da República Velha em 1930. Porém a greve geral de meados de julho de 1917, teve o caráter nacional por se irradiar pelo estado de São Paulo, Rio de Janeiro, por cidades como Recife, Porto Alegre, Salvador e unificar a pauta de reivindicações que cobrava uma jornada de trabalho de oito horas, quinze dias de férias, pautava a diminuição dos preços dos alimentos e dos aluguéis.

 

Foi uma greve calcada sob as precárias condições de vida das classes populares. Diante da carência e ausência de infraestrutura urbana desencadearam-se diversos surtos de epidemias, desde febre amarela, varíola e peste bubônica. 

 

As respostas dos governos como da capital, o Rio de Janeiro, era a política de limpeza sanitária e a contratação de urbanistas franceses para após a “limpeza” dos pobres do centro da cidade, embelezá-la, como cartão de visitas, para os estrangeiros. Já a política no estado de São Paulo era abrir estradas e substituir as ferrovias. As respostas parciais dos patrões a este momento do conflito social passava pela construção das vilas operárias, para através destas exercer o controle sobre sua força de trabalho.

 

A classe dominante, juntamente com o Estado tratavam e tratam as demandas sociais, os esforços de negociação por melhores condições de existência como uma questão de polícia. Isso também esteve presente na greve geral de 1917. Porém, o que não está tão vivo em nossa memória é o quanto já exercitamos em nossas formas de resistência e de combatividade a perspectiva horizontal, espraiada em nossos territórios de moradia, onde compartilhamos juntos além da experiência da exploração, também as formas da espoliação urbana. 

 

A educação burguesa e a propaganda ideológica neoliberal promovem todos os dias o esquecimento de quem somos, de onde viemos, do quanto já lutamos juntos, do quanto conquistamos direitos mediante muitas lutas, tantas pessoas valorosas que ofereceram suas vidas pelos direitos que hoje estamos perdendo. 

 

A história e a memória são nossas aliadas, precisamos beber nas fontes dos diferentes métodos de lutas de cada tempo, nos apoiar nas fundamentações teóricas que ensinam o quanto as categorias de análise da realidade como a luta de classes, a revolução e o socialismo seguem vivas e necessárias. 

 

Olhando o passado, poderemos reforçar nossas “greves gerais” de hoje, para projetarmos nosso futuro. Sem um projeto de futuro, não faz sentido ter esperanças. E sem esperanças, a vida não tem cores, graça e sentido e uma vida sem sentido é tudo o que o ultra-neoliberalismo precisa para sobreviver. 

 

Nós não queremos apenas sobreviver, queremos viver e desfrutar dos frutos do nosso trabalho, dos frutos da riqueza que nós trabalhadores e trabalhadoras produzimos e recolar este horizonte em nosso cotidiano é uma grande e bela tarefa, recheada de cores e sentidos, capaz de colocar em movimento nossas melhores capacidades.

 

*Militante da Consulta Popular, do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos – MTD e CPP da ENFF 

 

_Editado por Solange Engelmann