Mulheres trans Sem Terra e a participação política

Andrade e Lins falam sobre a construção de suas sexualidades e a participação na luta pela reforma agrária
Elas relatam que a participação na luta é fundamental. Foto_Sarah Teodósio.JPG
“Na luta pela terra cabem todas”, afirmam Andrade e Lins. Foto:Sarah Teodósio

Por Wesley Lima
Da Página do MST

“Na luta pela terra cabem todas”. Essa frase repetiu-se diversas vezes por Jhennyffer Lins (23) e Jhennyfer Andrade (20). Mulheres trans e acampadas no estado do Rio Grande do Norte, elas falam sobre o processo de construção de suas identidades de gênero e a inserção na luta pela terra protagonizada pelo MST no estado. 

Lins vive na Comuna Fidel Castro do Centro de Formação Patativa do Assaré, localizada no município de Ceará Mirim, e Andrade reside na Comuna Terra Prometida, na cidade de Rio do Fogo. Ambas relatam que a participação na luta, junto à comunidade, aconteceu de maneira não planejada e passaram diversas dificuldades, pois essa relação foi construída também através da aceitação da família e da comunidade. 

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“Me descobri trans aos 11 anos”

Andrade tem seis irmãos e hoje mora com sua mãe na Comuna Terra Prometida. A mãe vive há quatro anos na comunidade e ela chegou recentemente, há quatro meses. Há um mês, mais ou menos, ela começa a participar das atividades do MST.

 

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Jhennyfer Andrade. Foto: Sarah Teodósio

Antes de ir para Comuna, Andrade morava na cidade de Santa Maria, no interior do RN. 
Ela relembra que a construção de sua identidade de gênero se deu bem cedo. “Desde os meus 11 anos eu já me identificava como uma pessoa da sexualidade diferente. Eu sempre fui criada com a minha mãe dizendo que meu pai preferiria ter um filho marginal, traficante, do que chegar em casa e ter um filho gay, pois faria ele ter vergonha na rua”, conta. 

Nesse momento, sentimentos como medo, angustia e solidão se fizeram presentes na vida de Andrade. “Chegou um momento que estava muito sufocada e numa noite eu disse para minha mãe que iria para casa de um primo, que é travesti, e ela me disse que não era para ir por conta da sexualidade dele. Depois, eu disse que se fosse por isso eu ficaria em casa mesmo porque sou igual a ele”. 

Ela comenta que naquele momento a mãe dela tinha entendido que sua filha estava se “assumindo”. “Na noite, minha mãe me bateu e por isso eu fui para casa de uma amiga. Depois disso eu fui para Santa Maria e fiquei na casa da minha prima por um mês. Logo depois, ela [mãe] ligou para mim pedindo para voltar para casa e eu disse que não voltaria. Mas voltei.” 

“Quando eu voltei para casa, minha mãe disse que eu precisava aprender a ser o que eu sou. Então eu cresci com isso. Mas, com o passar do tempo voltei para Santa Maria.
Hoje, ao olhar para seu corpo, ela diz que não se identifica com o gênero que foi atribuído a ela quando nasceu e por isso se identifica como uma mulher trans”. 

A inserção de Andrade na Comuna se deu a partir da necessidade de ter um lugar para morar e, como sua mãe já estava envolvida nas atividades do espaço, foi morar com ela. “No início para mim foi muito difícil, porque eu não quis estar ali. A princípio eu não aceitei. Eu disse para minha mãe que iria morar na rua, tudo isso para não ficar na comunidade. Minha mãe me disse que não aceitaria que eu fosse morar na rua e que eu tinha que ficar por lá […]. Então eu aceitei e hoje estou me envolvendo cada vez mais”, relata. 

“Não vou me esconder de mim mesma”

 

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Jhennyffer Lins. Foto: Sarah Teodósio

A construção da identidade de gênero da Lins se deu de maneira mais “tranquila” que a de Andrade. Ela conta que a “aceitação” da família “foi boa”. “Minha mãe, meu pai, meus irmãos super me aceitaram. Porque antes de mim tive mais dois irmãos que também são gays lá em casa”. 

Lins recorda que nunca sofreu nenhum tipo de violência em família. “Hoje, meu pai me chama de filha e acompanha as atividades que faço, como capoeira.” 

Aos 14 anos, Lins começa a identificar-se enquanto trans, a vestir roupas “de mulher” e defende: “Não vou me esconder de mim mesma. Eu tenho que mostrar o que eu sou e isso para mim foi ótimo”.

Para além disso, ela conta que conhecer o MST foi o segundo maior desafio de sua vida e que tem rendido muitos aprendizados. 

“Minha vizinha, que morou no interior do município de Gravatá, já morava na Comuna Fidel Castro. Nesse período eu morava com a minha mãe em uma outra cidade do interior. Essa vizinha começou a falar que era bom morar na Comuna e eu não tinha condições de comprar uma casa. Eu já passei algumas vezes pela comunidade, mas não me interessei, até porque eu não gostava do MST. Mas eu fui parar lá. Conversei com minha mãe e ela pediu apenas para eu ter cuidado. Cheguei lá sozinha e continuo morando sozinha.”

Sobre a participação nas atividades na Comuna, ela relata que está sendo “normal e muito tranquilo” e acrescenta: “Todo mundo me respeita e as pessoas no meu dia a dia me tratam normalmente. Mas, eu sei que fora do MST é totalmente diferente e, sei também, que dentro do MST muita gente não gosta de quem eu sou, mas me respeitam.”

Na luta pela terra

Tanto Lins quanto Andrade não faziam muita ideia do que significava estarem inseridas em um movimento popular como o MST, mas hoje, apesar do pouco tempo, perceberam que enquanto mulheres trans possuem uma tarefa importante: ajudar a pensar e construir o debate da diversidade sexual para dentro da organização.

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Nesse sentido, Andrade acredita que o MST tem muito que avançar nessas discussões e, principalmente, na superação do preconceito. “Dizem que não tem preconceito dentro do movimento, mas até que tem. Conheço histórias de pessoas que não conseguem assumir a sexualidade deles por conta disso”. “A nossa organização precisa prestar mais atenção nisso”, alerta.

Sobre o Coletivo LGBT Sem Terra, Lins afirma que é muito importante ter um espaço organizativo para discutir e estudar o patriarcado, o heterossexismo, a transfobia, pois só assim é possível avançar na luta contra a LGBTfobia. Por isso, ela propõe: “Nós temos que avançar mais.
 

Ter mais cursos, mais atividades de formação com as LGBT e as famílias assentadas e acampadas. Além disso, precisamos avançar na compreensão da diversidade humana. Eu acho tudo isso muito importante”, conclui.

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*Editado por Fernanda Alcântara