Por que precisamos entender a interseccionalidade?

A importância de (re)conhecer a si mesmo e ao outro em suas diferenças para uma sociedade mais igualitária
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Maysa Mathias, Erica Malunguinho, Bia Ferreira e Doralyce falam sobre interseccionalidade.
Arte: Yuri Simeon

 

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

 

Interseccionalidade. O termo é recente, acadêmico e um pouco difícil de pronunciar em voz alta. Ainda assim, é um dos assuntos mais importantes da nossa vida e da consciência das nossas lutas, presente em todas as esferas da identidade, do indivíduo e dos coletivos como um todo.

Uma forma simples, mas eficaz, para começar a entender a interseccionalidade é a expressão “uma coisa não excluí a outra” quando falamos sobre identidade. Existem inúmeras formas de relacionar questões como raça, classe, gênero, identidade sexual e uma série de outras categorizações sociais, que não são binárias e que na maioria das vezes são impostas por grupos para exercer poder sobre determinados sujeitos.

Questões sobre identidade e do autoconhecimento começaram a ganhar mais espaço na mídia esta semana a partir da chegada da Angela Davis, ativista e filósofa na luta pelas questões de raça, classe e gênero, e de Patricia Hill Collins, acadêmica que debate o feminismo negro. As duas ativistas participaram do “Seminário Democracia em Colapso?”, promovido pelo Sesc e a editora Boitempo. 

Com isso, algumas dúvidas surgem a partir do reconhecimento que estas lutas existem e fazem parte de quem somos, como pensamos e como agimos. Ainda hoje, muita gente confunde a ideia capitalista de identidade, que segrega e individualiza, com a real necessidade de conhecer-se a ponto de não alienar-se de nossas raízes, ancestralidades e cultura, princípios que os estudos de identidade defendem.

O trabalho de Patricia Hill Collins aponta que a interseccionalidade não se resume em definir e segregar, ou seja, dividir as pessoas em categorias, pelo contrário, interseccionalidade é entender-se como sujeito construído em vários sentidos. Como Sem Terra, somos ainda ao mesmo tempo mulheres, homens, negros, brancos e indígenas, que podem ser trans, cis. 

Mostrar estas várias perspectivas é, por exemplo, o motivo dos diversos Coletivos que o Movimento tem trabalhado e as frentes destas lutas por direitos. Segundo Collins, engajar-se politicamente é carregar a esperança na busca por questões existenciais que passam pela maneira como sobreviver a partir da cultura, do protesto, da política formal.

Já Angela Davis, mais conhecida por seu papel no partido Panteras Negras, tem participado de diversos espaços no Brasil para falar sobre feminismo negro e como as mudanças necessárias na sociedade são construídas a partir do reconhecimento destas lutas. “O direito à vida é um direito básico. E isso deve incluir a terra”, afirmou Davis em entrevista ao MST.

No sentido mais acadêmico, é importante entender que a palavra “interseccionalidade”, embora seja uma palavra nova, trabalha um conceito muito antigo, sobre a essência do ser humano e sua capacidade de se relacionar com o próximo. Foi o caso do Curso para Militantes LGBT Sem Terra realizado entre os dias 15 e 18 deste mês. O curso trouxe diferentes temáticas que passam pela questão de identidade e representatividade.

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Quando exaltamos estas diferenças, partimos da interpretação de que essas identidades somam muito mais quando colocadas coletivamente. “Na luta, é preciso entender o corpo como campo de batalha. Este corpo é atravessado pelas estruturas do racismo, do patriarcado, do capitalismo”, lembra Maysa Mathias, mulher, negra, lésbica e integrante do Coletivo LGBT Sem Terra.  

NA PRODUÇÃO: A voz da mulher negra LGBT Sem Terra

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Para Maysa Mathias, o corpo também
o corpo como campo de batalha.
Foto: Rafael Stedile

Agrônoma de formação, filha de trabalhadores, Maysa Mathias começou sua militância na causa LGBT. “Sou lésbica desde que me entendo por gente e enquanto mulher, negra e lésbica, sempre estive nas lutas por esta questão, tentando entender, a partir das vivências e dos espaços aos quais frequentei, como se davam estas dinâmicas e como a violência perpassava isso tudo. Inclusive, os afetos, as relações e a maneira como eu era vista em determinados espaços”.

O convite para participar do Movimento veio a partir de sua formação técnica, para que integrasse o setor de produção do MST no estado de Minas Gerais. A partir deste perfil,  Maysa começou a entender a organicidade do Movimento, na regional do Quilombo Campo Grande. Sua participação contribuiu no pensar, a partir da perspectiva técnica e militante, a produção orgânica de alimentos.

Sua atuação no Coletivo LGBT Sem Terra começou no primeiro curso do Coletivo, acompanhando os desdobramentos dos estados e regiões. Maysa defende a importância de nos vermos como sujeitos políticos ao entender como estas diferenças nos atravessam. “As violências no campo se dão de forma diferenciada que na cidade, mas a origem é a mesma, a estrutura é a mesma, só os seus desdobramentos são diferenciados”.

E continua sobre a complexidade destas questões: “Historicamente, a esquerda e alguns movimentos entenderam estas pautas como processos identitários, como setorização das pautas, tipo ‘mulheres resolvam seus problemas de gênero ali’, ‘negros e negras aqui’, ‘LGBTs acolá’. Mas estas opressões são de ordem estrutural, não estão desvinculadas da estrutura. Pelo contrário, o capitalismo consegue se apropriar e pega na especifidade de cada um para operacionalizar.” 

Neste sentido, embora não endosse a palavra interseccionalidade academicamente, Maysa entende que, do ponto de vista pessoal, “antes de me entender mulher lésbica, o racismo já me atravessava. As vezes, quando a gente fala da sexualidade, nós nos esquecemos que são estes corpos que vivenciam a sexualidade. Eles são corpos que acessam as estruturas sociais.”

As estruturas que Maysa discute levam ao entendimento de que, mesmo que algumas delas se sobressaiam em determinados espaços e momentos, as opressão se revesam para reforçar o único objetivo do capitalismo: tirar a humanidade dos sujeitos, transformando-os em mercadoria. “A partir desta opressão e da separação de corpos, da biologização e do enquadramento de que tudo deve estar dentro de uma norma, que é eurocêntrica, branca, heteronormativa, a estrutura capitalista consegue explorar a divisão social, racial, sexual, tudo para o acúmulo de capital”, afirmou.

Parte desta arquitetura vem do Estado, que não dá as mínimas garantias de sobrevivência. “Precisamos entender que o estado me mata não só quando me tira a vida, mas também quando não me dá condições de vida, como acesso à moradia, à saúde, à educação pública de qualidade, quando retira políticas públicas e direitos constitucionais do povo. Precisamos entender como as lutas estão lado a lado. O estado nos mata não só quando mata a Marielle, ou a Agatha, ou a Luana Barbosa; mas cotidianamente, desde o agrotóxico liberado até a violência física”.

Pela perspectiva histórica, esta ideia de interseccionalidade vem como a união destes temas. Não basta apenas entender estas desigualdades, mas combatê-las de forma prática. Em uma de suas frases mais famosas, Angela Davis indica que “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista” e ocupar diversos espaços cotidianos. E um deles é o próprio Estado. 

NA POLÍTICA: a primeira deputada estadual transgênera de São Paulo

A deputada e educadora Erica Malunguinho foi a primeira mulher trans eleita deputada estadual em São Paulo pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e este marco por si mesmo já é indicativo de que ainda temos muito a conquistar como sociedade se queremos entender melhor a pluralidade das nossas representações.

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Malunguinho se tornou a primeira deputada
trans da Assembleia Legislativa de São Paulo.
Foto: BemTV/ Creative Commons

Mas não é só a identidade sexual que permeia o debate e a gestão pública de Erica Malunguinho na Câmara. Como nordestina de Recife (PE), Malunguinho enfrenta desafios quanto nesta vivência de quase duas décadas em São Paulo. Desde que chegou à capital paulista, a deputada dedicou-se à arte-educação, principalmente voltada às relações raciais. Por ter uma família, amigos, escola e professores negros, essas relações se davam diariamente, como a maioria de nós.

Assim, no âmbito de sua vida profissional, Malunguinho sempre esteve ligada a projetos que  relacionassem artes, cultura e política a partir de integrações de raça e de gênero que fossem além da norma binária homem-mulher. Essa lógica vigente, chamada de heteronormatividade, está ligada ao  conceito de que apenas os relacionamentos entre pessoas de sexos opostos ou heterossexuais são normais ou corretos.

A iniciativa de representação política da deputada é muito mais do que não ser mais uma voz cisgênero dentro da Assembleia Legislativa. A proposta da deputada inclui inserir a mulher negra em posições diferentes da sociedade, o que pode ser comprovado na composição de sua assessoria, onde a maioria é feminina e negra, e a construção do que chama de “Mandata Quilombo de Erica Malunguinho”.

Dentro da Assembleia, a luta da deputada se faz presente em todas as instâncias. No início do ano, foi ofendida pelo também deputado Douglas Garcia (PSL), que a ameaçou diante da Câmara dizendo que “expulsaria uma transexual do banheiro debaixo de tapa”. A deputada esteve presente no Curso para Militantes LGBT Sem Terra e falou sobre a interseccionalidade entre raça, gênero, classe e diversidade sexual, a partir da sua própria experiência no âmbito Sem Terra, desde pequena.

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“Grande parte das famílias pretas e indígenas deste país tiveram o acesso à terra negado, mas sempre foram lutadores. Minha mãe foi batizada por Francisco Julião, liderança das Ligas Camponesas. Essa pauta acompanha minha vida, acompanha a vida da minha mãe, dos irmãos dela, acompanha a vida dos meus avós”, lembrou Malunguinho, ressaltando a importância do pensamento que vai além de um tema. “Isso quer dizer que essa é nossa luta histórica. A luta do povo negro, do povo indígena e do povo pobre é lutar pela terra”, concluiu.

NA MÚSICA: Bia Ferreira, Doralyce e a poética da música negra

Independente de qual face da identidade observemos, uma coisa é certa: ao longo dos séculos, a música tem sido usada para traduzir e conferir sentido ao sofrimento e a resistência. E na perspectiva da interseccionalidade e da maior representatividade, não faltam exemplos de vozes e sons que surgem contra o racismo, machismo, sexismo e a LGBTfobia.

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Bia Ferreira e Doralyce traduzem a poética da luta a partir de suas músicas.
Foto: Dowglas Silva

No MST, por exemplo, são inúmeras as canções sobre a luta da classe trabalhadora, sobre a relação do humano com a terra, trazendo o sujeito Sem Terra como protagonista da sua história a partir das músicas, questionando as matrizes de dominação a partir da raça, gênero e demais lutas que perpassam estas dores e amores do povo do campo.

Bia Ferreira e Doralyce traduzem a poética da luta a partir de suas músicas, um sentimento em prol da igualdade que transpassa o corpo e evocam uma ancestralidade. E é disso que se trata a interseccionalidade também. 

Atração cultural do Curso LGBT Sem Terra, as duas jovens cantoras levam a vivência negra de uma juventude que traz a essência e experimentações que há 500 anos povoam esta pátria.

Na atual conjuntura, muitas vezes a esperança parece enfraquecida diante de uma sociedade capitalista que sufoca. Afinal, vivemos em um momento crucial histórico, e toda vez que o capital entra em crise, ele aumenta a sua exploração da terra, dos corpos e da vida, a qualquer custo. Os encarceramentos em massa, o feminicídio, o genocídio da população negra, os desastres ecológicos, tudo está ligado ao avanço deste conservadorismo. Tudo está interligado.

Essas lutas, simbolizadas aqui pela força da mulher negra, nos ensinam que sobreviver não é uma opção – é obrigação-. E que não nos contentamos com qualquer noção de igualdade, ou pelo menos não com esta ideia pseudo democrática branca, hétero, masculina. Cada mulher aqui citada traz uma perspectiva de igualdade que não exclui, sobrepõe ou tenta substituir estes espaços dos homens brancos. A luta pela interseccinalidade é por uma voz que já temos, uma identidade que existe e que está presente em todos nós no dia a dia. 

 

*Editado por Wesley Lima