Marighella e o novembro negro: parem de nos matar!

50 anos após assassinato de Marighella, o que avançamos e o que retrocedemos historicamente
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Marighella com a bancada comunista Constituinte, 1946. Foto: Arquivo Público

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

“Não tive tempo para ter medo”, disse Carlos Marighella, assassinado há 50 anos pela Estado Brasileiro em plena ditadura militar. Político, escritor e guerrilheiro, Marighella entrou para a história por sua postura comunista marxista-leninista e sua luta constante diante destes ideais.
 

Com o passar dos anos, Carlos Marighella se tornou símbolo de resistência por sua coragem e luta. Entrou para o imaginário nacional como um personagem oculto, inteligente e combativo. A vida na  clandestinidade foi retratada em diversos filmes e imagens que representam os anos de chumbo, formando uma espécie de mosaico desta importante figura da luta contra a ditadura militar. 
 

Sua defesa pelo combate ativo contra as atrocidades cometidas pela ditadura militar causa até hoje certos desconfortos e debates em todos os espectros políticos. Em 2012, sua figura foi resgatada graças à bibliografia homônima, escrita pelo Mário Magalhães, e atualmente volta a ser discutida pelo filme Marighella, dirigido por Wagner Moura.
 

Um resgate histórico
 

“Cuidado, que o Marighella é valente”, disse Cecil Borer, diretor do Dops do Rio, antes de uma equipe para capturá-lo após o golpe de 64. É impossível falar sobre a relação entre a questão racial de Marighella sem passar por seus feitos e como o racismo sofrido por ele está relacionado ao assassinato e tentativas de apagamento histórico dos negros no Brasil.
 

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Carlos Marighella / Crédito: Reprodução

Nascido em 1911 em Salvador (BA), Marighella se tornou oficialmente comunista aos dezoito anos.  A vida, a obra e a militância do “mulato baiano” (como era chamado pelos seus companheiros) inclui passagens pela prisão, resistência à tortura, assaltos a bancos e a um trem pagador, tiroteios. 

Falar sobre Marighella é rever a história política do Brasil e do mundo entre as décadas de 1930 e 60, como o nazismo, o Estado Novo de Vargas,  o stalinismo, a II Guerra Mundial, a vitória de Stalin sobre Hitler, a redemocratização do país no pós-45, a Guerra Fria, a Revolução Chinesa, a ofensiva imperialista no Vietnã, a Revolução Cubana, o golpe militar e  as guerrilhas latino-americanas, apenas para citar alguns destes momentos.
 

Ainda assim, conseguiu se manter vivo e ativo ao longo de quase quarenta anos de militância, mesmo com  a perseguição nacional e no exterior. Ele, preto, nordestino e pobre, chegou a ser considerado inimigo  número 1 do Estado, além de vigiado pela CIA e monitorado pelo KGB. 
 

Em paralelo às suas atividades de campo, publicou livros e textos que se tornaram clássicos em dezenas de idiomas, como o Minimanual do guerrilheiro urbano. Foi considerado pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre “uma figura excepcional”. Deputado federal, poeta e estrategista da guerrilha, Marighella viu em vida os principais acontecimentos históricos do século passado. 

Marielle e Marighella vivem

A comparação com o caso Marielle, vereadora do PSOL assassinada a 600 dias, veio do diretor Wagner Moura durante a estreia do filme no Festival de Berlim, em fevereiro deste ano. Ao lado do cantor e ator Seu Jorge, que interpreta Marighella, Moura ressaltou o racismo do Estado brasileiro. “Marighella, negro, revolucionário, foi assassinado por forças do Estado em 1969 no seu carro e, 50 anos mais tarde, uma vereadora negra morreu da mesma forma nas mãos, provavelmente, de agentes do Estado”, disse Moura. 
 

A afirmação de Wagner Mouta, assim como a escolha de Seu Jorge como protagonista, fez com que a racialidade do ativista se tornasse pauta entre os internautas, principalmente com base em um crítica alemã que afirmou que “[colocar] uma frase como ‘matar um negro significa matar um vermelho’— é sair do conflito político e transformá-lo num conflito racista”. 
 

Mas até onde estas interseccionalidades não se cruzam?
 

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Poster oficial do filme Marighella, ainda sem
data de estreia no Brasil.

Uma vez inspirado na biografia de Magalhães, o filme de Marighella, que  retrata os últimos cinco anos de vida do militante, se coloca na posição de expor os dilemas de uma pessoa complexa em suas definições para uma sociedade, e este debate passa pela questão da raça e da etnia. 
 

A comparação entre as bibiografias de Marighella e Marielle passam por uma polícia brasileira que não é treinada para proteger seus cidadãos e, ao mesmo tempo, um Estado que escolhe seus inimigos, segundo o jornalista Mário Magalhães.
 

O  autor da bibliografia de Marighella defendeu o olhar de Moura quanto à questão que envolve o debate racial em suas redes sociais, afirmando que Carlos Marighella não era branco e sofria racismo. 
 

“Inimigos de Marighella sabiam que ele não era branco. Em 1947, o deputado Marighella criticou colega que levara um carro (a “Baronesa”) da Câmara para a Bahia. Altamirando Requião reagiu: “Não permito que elementos de cor, como V. Ex.ª, se intrometam no meu discurso. A fonte da notícia é o jornal carioca “Tribuna Popular”, de 27.dez.1947. A passagem consta da biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo” (@cialetras), pág. 188. Houve muitos episódios em que Marighella foi alvo de racismo.”

Lançamento do filme

Ainda assim, a cinebiografia, que estreou entre aplausos da imprensa estrangeira e declarações contrárias ao governo Jair Bolsonaro, ainda não tem data de exibição por aqui depois do cancelamento do lançamento previsto anteriormente para 20 de novembro.

Em nota, a produtora do longa, O2, informou que não conseguiu cumprir “todos os trâmites” exigidos pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). O que se percebe, a partir desta ação, é certa censura contra o filme, diante de um cenário em que a própria Ancine passa por uma crise, com o afastamento do diretor-presidente, Christian de Castro, funcionários sobrecarregados, cortes orçamentários e revisão de procedimentos para atender às demandas do TCU (Tribunal de Contas da União). 

Tanto Marielle quanto Marighella devem ser lembrados por representarem a luta dos negros neste país, o povo que “não teve tempo para ter medo”. Porém não há intenção nenhuma por parte deste governo, que promove tão gratuitamente a violência contra a sua população, que um personagem como Marighella seja enaltecido, uma vez que há suspeitas de pessoas envolvidas com o presidente estarem diretamente ligadas ao assassinato de Marielle. 

A história de ambos, assim, está ligada: quem mandou matar Marielle e quem mandou matar Margihella partem de um mesmo ódio estrutural contra militantes que ousam levantar-se diante de um sistema genocida. Falar de Marighella é lembrar da presença destas lutas todos os dias, não somente no novembro, mês da consciência negra, mas de um ano inteiro em que nos matam.