Entre o sonho e a ousadia: a ocupação das mulheres na Literatura
Por Frente de Literatura Palavras Rebeldes
Da Página do MST
Mais um golpe seco que percorria o braço até o cotovelo. Nem percebia, nem dava tempo, já a mão agarrava outra cana, e mais cana e mais cana, quantas o punho fechado abarcava. E o facão descia seguro, dançando naquela coordenação perfeita entre pernas, braços, cabeça… facão e cana, facão e cana tombando. Alguma abelha vinha cantar, atraída pelo melaço que grudava na roupa e na pele, juntando com o carvão da palha queimada. Chegava ao canavial as seis da manhã, aproveitava o sol ameno pra cortar rápido e muito. Lá pelo meio dia caçava um trechinho de sombra por perto de Margarida e, agarrando a marmita de comida fria, esperava pela melhor hora do dia.
Qual a melhor hora do dia para uma mulher? Para as mulheres? Com suas tantas realidades diferenciadas, é difícil, de primeira, responder que a melhor hora do dia de Joanas e Margaridas seria aquela de sentar-se,
concentrar-se, sob as condições possíveis, e dedicarem-se à escrita.
A ocupação das mulheres na literatura é um ato histórico de transgressão e ousadia justamente pelo fato de que elas, por muitos fatores sociais e políticos, compõem um extrato da classe trabalhadora que menos têm condições de exercerem o direito à literatura, seja pela leitura, pelo acesso à produção abundante da humanidade, seja pelo exercício criativo de escrever.
Que condições sociais e políticas são essas? Ora, as de sempre há muito tempo. Em primeiro lugar, as funções designadas para homens e mulheres sempre privilegiaram homens como os dotados de superpoderes como “dons de força intelectual e física”. Por quanto tempo a sabedoria das mulheres não foi ameaçada pela ideia de que estava restrita aos cuidados da família, à educação dos filhos e filhas para a sociedade?
Mesmo na intelectualidade, quais eram, e são, os assuntos cabíveis aos interesses de pesquisadoras e cientistas? Ainda dentro das atribuições sociais desiguais entre homens e mulheres, há a carga de trabalho muito mais extensa para as mulheres, que são responsáveis pela ordem da casa, pelo cuidado dos filhos, pela sustentação econômica da família e da sua autonomia, quando isso é possível. Lhe resta ainda menos tempo do que os homens dispõem e muito mais cansaço para driblar.
Em segundo lugar, há o permanente conflito entre classes sociais. O acesso às políticas públicas, aos espaços e experiências culturais, as condições de formação mais sólida do hábito de leitura e da perspectiva de literatura como direito básico, são muito diferentes no contexto de vida das camadas populares mais empobrecidas. Num país como o Brasil, onde 13,2 milhões de pessoas estão na pobreza extrema (2019, IBGE), com seus 11,3 milhões de analfabetos (2019, IBGE), o direito à literatura é um desafio que representa luta, pois a privatização destas condições é empecilho para a dignidade e o bem viver.
A barriga se revolvia, os ombros se agitavam, aquele sorriso bobo e largo, até os dedos dos pés arrulhavam. Espiava Margarida meio de lado. A tranquilidade da amiga, seus gestos lentos com as mãos pesando de sessenta anos vividos, remexiam mais com seus desejos. Queria já, queria agora! Cadê, Margarida, cadê? E a preta Marga tirava da bolsinha feita de plástico aquela fonte de felicidade. Ajeitava os óculos, buscava a página, lembra onde paramo onde? Lembro. Tá, vamos lá. E Margarida, Suzana, Leide, Marcileia, Joana, esqueciam o canavial, o calor, o bagaço virado em corpo, a fome, e se acompanhavam livro adentro.
Mas as mulheres, ah, as mulheres! Elas conseguem proezas inimagináveis e vêm nos dando exemplos de coragem quem merecem ser seguidos e multiplicados. O primeiro livro conhecido escrito por uma mulher data de 1007, escrito por uma japonesa da nobreza, chamada Murasaki Shikibu. Desde lá foram muitas as mulheres ousando espaço, tais como Jane Austin, uma inglesa do século XVIII. Ou mesmo a Amandibe Duphin, escritora do século XIX que para publicar suas obras adotou o pseudônimo masculino de George Sands.
No Brasil são, apesar de muitos pesares, inúmeras as grandes escritoras, que sofreram e ainda sofrem da mesma invisibilidade. A começar pela Academia Brasileira de Letras (ABL). A pioneira a romper esse círculo foi a Nísia Floresta Brasileira Augusta, nascida no Rio Grande do Norte, uma das primeiras mulheres a penetrar o cerco do espaço particular dos homens na literatura e publicar textos em jornais. Seu livro, “Direitos das mulheres e injustiça dos homens” (de 1932), é o primeiro a tratar dos direitos das mulheres à instrução e ao trabalho no Brasil. Também desafiaram o mundo literário brasileiro, a Ana Eurídice Eufrosina Barandas, considerada a primeira cronista do país; Raquel de Queiroz, primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras; Clarice Lispector, uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX e que nunca foi aceita na Academia; e Nélida Piñon, primeira mulher a ser Presidente da Academia Brasileira de Letras. Além de Rachel de Queiroz, a partir dos anos setenta, outras mulheres ocuparam cadeiras na ABL. Em 1980, foi a vez de Dinah Silveira de Queiroz, que já tinha sido candidata anteriormente.
A terceira mulher a ser membro, foi a escritora Lygia Fagundes Telles, em 1985; Nélida Piñon, em 1989; Zélia Gattai, em 2001; Ana Maria Machado, em 2003; Cleonice Berardinelli, em 2009; e, por fim, Rosiska Darcy, em 2013. Nenhuma negra. E foi com muita tristeza que vimos a grande poeta Conceição Evaristo ser rejeitada para a Academia em favor de um homem branco.
Percorria os olhos numa página já suja e riscada do livro. No sábado a escola abria a biblioteca pra todo mundo e emprestava livros à comunidade. Sentia a vista doendo, mas dava satisfação grande quando ia acompanhando, devagar, no seu tempo, as leituras. Às vezes nem conseguia ler tudo, mais ia no sábado mesmo assim, pra ouvir dos que leram. Professores e crianças organizaram uma exposição de fotos com várias escritoras do mundo todinho. Ver o rosto delas dava uma sensação engraçada. Uma sensação de que, se não fosse isso e aquilo outro, podia bem ser o rosto dela Margarida e dela Joana. O rosto dela com o rosto delas.
A ocupação das mulheres na literatura também foi um desafio encarado com ousadia pelas mulheres Sem Terra, que no cotidiano da luta pela terra e da construção de nossos territórios e de nossa luta por direitos,
fazem poesia e fazem literatura, contam a nossa história. A força de nossas mulheres ao longo da história imprime marcas profundas em sua obra literária e assim erguem sua poesia, como erguem barracos e
bandeiras, como quem sobrevive na teimosia, todo dia, numa vida que as exclui do direito de viver.
A luta pela terra pariu Divinas, Luanas, Julianas, Aracys, Anas, Marias, Jades, Julias, Leandras, Josianes, Renatas, Janaínas, Dandaras… Poetisas que partilham rebeldia e a capacidade de sonhar sempre a reinvenção do mundo.
As palavras delas embalam marchas e enternecem nossas noites de partilha e festa. Também elas gritam pela poesia as nossas fúrias. Elas e nós sonhamos e vivemos.
Ela batia o pé na parede com leveza, pra embalar rede. A neta começava a dormir, já tarde da noite. A rede embalava, embalava. E o corpo lembrava do embalo da cana. Rede, cana. Os olhos fechando. Rede, cana… os olhos fechando. Nem bem fechou os olhos e já os abria para o sonho. Uma grande confusão no barracão de festas. Gargalhadas. O furdunço eram gargalhadas! O barracão tava cheio de mulheres de todas as cores, de tudo que era jeito. Ela não conhecia nenhuma. Que diacho era aquilo? Tinha bebida, algumas fumavam, e tinha muitos livros e mais livros abertos. E elas escreviam em tudo, no chão, nas árvores, no próprio corpo… Sem aviso, elas começaram a escrever por toda parte e saíram pela comunidade escrevendo coisas, um milhão de coisas, nas portas das casas, nas calçadas e postes, nos muros e rindo tanto que era uma coisa até estranha. Demorou a perceber que era o rosto delas. Que era ela, mais a Margarida… junto com elas! Todas elas! Escrevendo no mundo inteiro.