“Em território Sem Terra não pode ter violência contra mulheres”, afirmam dirigentes do MST

Neste mês de abril, as Mulheres Sem Terra convocam todas e todos para defenderem a vida, na campanha “Mulheres Sem Terra: Contra os vírus e as violências”
“Nosso maior desafio é romper com o patriarcado, inclusive com os homens participando desta desconstrução” afirma dirigente. Foto: Janine Moraes

Por Janelson Ferreira
Da Página do MST

Lançada em meio a um cenário de pandemia, isolamento social, ações assassinas do governo Bolsonaro e aumento da violência doméstica, a campanha “Mulheres Sem Terra: Contra os vírus e as violências” surge com o intuito de combater todo tipo de violência praticada contra as pessoas mais vulneráveis. É o que contam Atiliana Brunetto e Sandra Cantanhede, da Direção Nacional do MST.

“Mulheres Sem Terra: Contra os vírus e as violências” foi apresentada pelas dirigentes em uma entrevista para a página do MST. Durante a conversa, Atiliana e Sandra também resgataram as discussões que levaram ao lançamento da campanha, além de compartilharem os objetivos e as ações que já estão sendo realizadas pelo movimento.

Para Brunetto, “Território Sem Terra não pode ter violência contra mulheres”. Já Cantanhede afirma que o maior desafio é romper com o patriarcado e ainda ressalta: “com os homens participando desta desconstrução”.

Confira a entrevista na íntegra.

Qual o propósito da campanha e em que contexto ela surge?

Atiliana: A violência contra as mulheres não é o caso de um só país, ela é uma constante no mundo. Isso ocorre justamente porque não é um problema somente de relação, mas baseado no patriarcado, alicerce dessa sociedade capitalista. Além disso, a crise estrutural do capital acirra ainda mais a violência no seu modo mais destrutivo, não só na perspectiva econômica, mas social e ambiental também. Neste cenário, as mulheres são as mais prejudicadas.

Desde 2014 temos percebido um avanço significativo da violência contra as mulheres, sinal do capital mostrando suas mazelas. Elas foram para o mercado de trabalho, mas não deixaram as tarefas de casa. Após o Golpe de 2016, o cenário se acentua. Naquele ano, ficou muito emblemática a reportagem da revista Veja [abril/16] que teve como capa Marcela Temer com a frase “Bela, recatada e do lar”, localizando as mulheres no período histórico no Brasil. Chegando em 2018, temos 107 feminicídios entre janeiro e março.

Em 2017, começamos a pensar o que fazer além das denúncias. Ouvimos muitas dores das companheiras, mas não tínhamos uma saída exata para este problema. O MST não está fora da sociedade, não é uma ilha protegida, tanto é que ele é resultado deste sistema. Enquanto mulheres do MST, queremos envolver o todo da organização e trazer essa campanha como forma de se pensar para além da violência física. Quando chegamos nela, já passamos por diversas outras formas de violência, que machucam e deixam marcas muito piores, como depressão e adoecimento.

Com a pandemia, percebemos que estavam chegando nos grupos [de whatsapp] muitas declarações do aumento da violência. Como estariam as mulheres Sem Terra nesse processo de pandemia e isolamento social? Sabemos que já é difícil o dia a dia de tempos “normais”, a vida nas casas, acampamentos e assentamentos, por conta deste sistema patriarcal que vivemos. As mulheres já se sentem exploradas e oprimidas. Então, após muitas discussões, pensou-se, de imediato, como tratar da violência olhando para o isolamento social e a vulnerabilidade das mulheres.

Sandra: Esta campanha não é pensada de agora. O tema da violência já é debatido há um longo período porque, infelizmente, está no nosso cotidiano. Agora se intensifica, pois vivemos sob um governo que fortalece o ódio e contribui com o aumento da violência. Além disso, com a pandemia da Covid-19, o isolamento social intensifica essa contradição.

Com a divisão social do trabalho, as mulheres sofrem uma sobrecarga. Tem que cuidar das crianças, da casa, dos idosos, e isso gera um acúmulo de carga de trabalho. É um processo violento e que está colocado para as mulheres. Certamente, é uma violência que acontece também com crianças, idosos, pessoas vulneráveis, mas, principalmente, com mulheres, que são muito impactadas no campo também pela dificuldade de acesso às instituições.

Quais são os objetivos de campanha?

Atiliana: A convivência durante a pandemia nos fez pensar que teríamos que interferir neste processo de debate e reflexão sobre o que é o capital e como ele age nesses momentos, pensando na vida que queremos e pela qual lutamos. À partir disso, elaboramos para a campanha três eixos. O primeiro é “Violência contra os sujeitos vulneráveis”, o segundo é “Autocuidado, trabalho e saúde, pensando corpo, mente e relações”, conversando sobre outras formas de violência. O terceiro é “O que é a resistência ativa neste momento de pandemia”, ou seja, como pensar produção, cooperação e autonomia das mulheres e do conjunto do movimento, pois ficaremos em casa, mas não em silêncio. Portanto, o combate à violência é o principal foco desta campanha. Queremos fazer com que o conjunto do MST se envolva nesse debate.

Um dos objetivos é ir construindo uma rede de solidariedade entre nós, para que possamos denunciar, garantindo o cuidado, acolhimento, ter onde buscar apoio e solidariedade internamente. Buscamos, ao menos nos territórios do MST, romper com esse ciclo de agressão. Em breve, em Território Sem Terra não haverá violência contra mulheres.

Sandra: A campanha é permanente, pensada em curto, médio e longo prazo e várias ações já estão ocorrendo. Por isso, ela não é só para período de isolamento social. Propomos que ela seja ampla, massiva, que passe pela militância, mas alcance, principalmente, todas nossas famílias acampadas e assentadas e as mulheres que estão nestes locais. Queremos aproveitar o trabalho de base que foi feito para o Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra, dando continuidade àquela mística criada. Vamos mostrar que março não acabou, está em nós e é uma luta constante. E não é papel só das mulheres se envolver nela. As mulheres acolhem, mas o compromisso e a responsabilidade do enfrentamento à violência contra as mulheres são de todas e todos da organização.

Estamos trabalhando, principalmente, à partir das redes sociais, com produção de vídeos, áudios, cards e utilizando nossas rádios. É um período em que buscamos potencializar muito as ações de comunicação. Nossas mulheres, apesar do isolamento, estão em movimento, à partir de cada local em que vivem, com as hortas e as roças.

Neste período de quarentena, que ações as Mulheres Sem Terra têm construído em seus territórios?

Atiliana: É responsabilidade das mulheres buscarem formas de enfrentar e resistir neste momento. Além disso, temos que usar as ferramentas da tecnologia, o que ainda é muito desafiador. Neste momento de coronavírus, estamos desenvolvendo uma resistência que diz para ficar em casa, mas não em silêncio. Nossa resistência é falando, mostrando a realidade para a classe e provocando ações. Estamos enfrentando o desafio da comunicação, o desafio de falar. Uma mulher falando é diferente de um companheiro, vivemos a realidade da casa, as mulheres confiam nas mulheres, isso acaba se tornando um processo formativo também. Estamos com um grupo de estudo das mulheres, para compreender a nossa realidade. Estudando vamos enfrentar toda e qualquer situação que o capital nos coloca. O vírus é resultado de um processo de muita violência do capital, para garantir toda perspectiva de lucro.

As mulheres é que estão mais no cotidiano dos quintais., então são elas as principais responsáveis pela garantia das hortaliças. Assim vamos resistindo produzindo alimentos em torno da casa, remédios nas hortas medicinais, garantindo uma alimentação de qualidade para nossos territórios e poder contribuir com a periferia das cidades onde estamos.

As mulheres estão também se mobilizando na animação, para que possamos permanecer na luta, na Resistência Ativa e para enfrentar esse processo difícil de isolamento social. Desta forma nos desafiamos a trazer o amor, carinho, solidariedade e cuidados através de contos, musicas, poesias, vídeos mostrando nosso fazer diários nos lotes. Desta forma vamos mobilizando, estimulando e incentivando as mulheres neste cenário.

Sandra: Em todos os estados as mulheres estão usando das ferramentas que dispõe para superarem da melhor forma este período. Desde a produção de alimentos até ações de autoestima. Alguns estados lançaram a proposta: “Mulheres Movimentam a Quarentena”. Temos também processos de solidariedade e autocuidado, com reuniões virtuais para se encontrar, conversar, se escutar, para não deixar este momento nos derrubar. Criamos resistência a partir de uma rede de solidariedade, cuidado psicológico, para além do corpo. Este não é para nós somente um momento de ficar em casa, mas de se movimentar neste espaço.

Que desafios históricos estão apontados para as mulheres Sem Terra?

Sandra: Os desafios que já encaramos vão continuar, como o enfrentamento à violência e o aumento da autonomia das mulheres, dentro e fora do Movimento, com participação política efetiva. Temos o desafio também de realizar uma tomada da comunicação, entendendo a tecnologia e enfrentando o desafio de se colocar para os debates, discussões, análises. Porém, o nosso maior desafio é romper com o patriarcado, inclusive com os homens participando desta desconstrução, pois só assim teremos um enfrentamento na sua totalidade da violência doméstica.

Que elementos o Feminismo Camponês Popular e a Reforma Agrária Popular apresentam para enfrentamento e superação deste período?

Atiliana: Jamais podemos esquecer que sem feminismo não há socialismo. Então, não há Reforma Agrária Popular se não entendermos o debate da participação das mulheres, o feminismo tem que estar intrínseco na construção da Reforma Agrária. Neste sentido, estamos rompendo com vários desafios e a perspectiva da cooperação é um deles. Inclusive, esta é a única forma que temos para podermos enfrentar a pandemia. Dialogando com a cooperação, temos a agroecologia. Ela é a saída para uma vida mais saudável. Não se trata só de plantar, mas se relacionar com a natureza, os seres humanos, os animais. Este sentido da agroecologia nos ajuda a crescer neste momento.

Junto de tudo isto, temos que romper com o patriarcado. Não teremos uma sociedade diferente se não rompermos com o machismo e também o racismo. Quem diz “fica com seu feminismo, que sou machista, sim”, não está preparado e nem contribui para a construção do Socialismo. Falar de Feminismo Camponês Popular é falar de uma sociedade diferente, que traz práticas com valores que respeitam as vidas, mostrando a solidariedade, a coletividade, o respeito e o amor como ações concretas de uma certeza da possibilidade de transformação, rumo a uma Revolução. Dizer e praticar a frase “não há alimentação saudável em relação violenta”, nesse período, é garantir um caminho para a sociedade que queremos.

*Editado por Luciana Console