A luta dos movimentos sociais haitianos em busca da soberania alimentar

Solidariedade entre povos faz parte da história de infortúnios do Haiti
A distribuição de mudas é uma das formas de atuação da Brigada. Foto: Brigada Dessalines

Por Brigada Internacionalista Jean Jaques Dessalines *
Da Página do MST

A nova pandemia ainda emergente a nível mundial eleva os desafios já impostos à humanidade. Partindo dessa premissa, quando nos voltamos a pensar tais questões e relacioná-las aos países com mais vulnerabilidade, os infortúnios tornam-se quase imensuráveis.

Inserido neste contexto encontra-se o Haiti, território caribenho que de longa data ocupa o posto de país mais pobre das Américas. Somente nestas duas últimas décadas, este povo enfrentou graves problemas como o terremoto de 2010, seguido de uma epidemia de cólera, furacões e intervenção militar (ONU- MINUSTAH), que se seguem com as dificuldades socioeconômicas estruturais ligadas ao desgoverno do atual presidente Jovenel Moïse. 

Pode-se dizer que neste microcosmo haitiano, os desafios de alimentar seu povo são os que expressam significantes números quando colocados na balança. A história dá conta de reforçar o quanto esse solo já foi produtivo, mesmo em um tempo em que o saqueio internacional era menos descarado e esbanjava para o mundo tais informações.

O país possui uma população de aproximadamente 12 milhões de pessoas, sendo que em torno de 60 a 65% reside no meio rural. O território haitiano é de 27.000 km², mas somente 35% de suas terras são propícias à agricultura ou a criação de animais. Os números são ainda menores quando é analisada a possibilidade de irrigação das áreas de cultivos, que representa nada mais que 2,5 % do território agricultável. 

Com isso, justificam-se algumas outras informações, como a de que cerca de 40% dos alimentos consumidos no país precisa ser importado da República Dominicana ou Estados Unidos. Atrelado à falta de soberania alimentar do país, está a falta de apoio governamental para estruturação da agricultura camponesa. No entanto, apesar de as dificuldades estarem colocadas há muito tempo, gigantes são os esforços deste povo na luta diária pela garantia do pão. 

Durante a ditadura dos Duvalier, que teve início em 1957 com Papa Doc (François Duvalier) e continuou de 1971 até 1986 sob o comando de Baby Doc (Jean-Claude Duvalier, o filho), surgiu o “Ti Komite Legliz”, ainda na década de 70. Traduzido como “Pequeno Comitê da Igreja”, foi um tipo de Comunidade Eclesial de Base, encabeçado por um sacerdote progressista chamado Jamay Ressan. Para além de atividades religiosas, ele passou a pensar processos organizativos na área da produção de alimentos como forma de enfrentamento a mais um período crítico da história.

O comitê passou a ser bem aceito pela população, a tal ponto que nos momentos dos mutirões de trabalho coletivo, chamados de “konbit”, os povos passaram a usar técnicas de alfabetização, ensinando uns aos outros. Assim, desencadeou-se também a conscientização política e uma pequena chama se acendeu na busca por direitos campesinos no Haiti. 

Então, o pequeno comitê, que até o momento se restringia a região “nord ouest”, usou de seu “carácter religioso” para realizar missões em outros departamentos, criando novos grupos, alfabetizando mais pessoas e reunindo mais massa para as lutas.

Já nos anos 80, a partir da consolidação dos comitês nas diversas regiões do país, foi fundado o movimento Camponês “Tèt Kole Ti Peyizan Aisyen”, que em tradução do idioma criolo para o português significa “cabeças unidas de pequenos camponeses haitianos”.

“[…] Sua reivindicação é buscar garantir para seu povo o acesso à terra, água, sementes e ferramentas. Até o momento, o movimento luta para que os camponeses tenham direitos e assim segue a luta”. Assim, afirmou um dos militantes do movimento, Tèt Kole, durante encontro de formação relacionado à produção agroecológica coordenado pela Brigada Dessalines.

Neste mesmo contexto de lutas por direitos dos povos encontra-se a Brigada de Solidariedade Internacional Dessalines, atuante no país desde o ano de 2009. A Brigada é composta por militantes de diversos movimentos sociais da América Latina, com maior participação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST- Brasil) e Pátria Grande (Argentina). Tem como objetivo compartilhar experiencias em diversas áreas como: educação, formação política, comunicação, gênero, produção de alimentos e reflorestamento.

Após o terremoto de 2010 e a análise de alguns fatores, a Brigada define por auxiliar com mais proximidade o Movimento Tèt Kole. Com isso, iniciou-se a reestruturação do Centro Nacional de Formação e Experimentação Agroecológica.

Foto: Brigada Dessalines

Diversas eram as demandas estruturais naquele momento, como a construção de espaço para moradia e cercas para delimitação de terreno. Mas encontrou-se como maior necessidade a implantação de um sistema hidráulico para canalizar a água que nasce da montanha até a área do centro. Sem dúvidas, este último foi o trabalho que mais beneficiou e beneficia a comunidade local até os dias de hoje.

Foram cerca de 10 km de rede de abastecimento que permitiu a água para cozinhar e a produção de alimentos em quantidade e qualidade para as demandas do centro e para comercialização.

Ademais, com boa parte das expectativas cumpridas, foram desenvolvidas atividades no centro de criação de caprinos, sementeiras coletivas, recuperação da área a partir da produção de alimentos em sistemas agroflorestais, produção de mudas para distribuição para a comunidade e trocas de experiencias a partir de formações técnicas.

A fim de fortalecer ainda mais este elo de solidariedade entre os povos, paira o desafio de se seguir produzindo alimentos de qualidade, ampliar a produção de mudas e sementes a fim de beneficiar mais famílias na comunidade, lutar pelo acesso à terra e água de qualidade. Porque como já nos dizia o comandante Fidel Castro: “Solidariedade não é dar o que sobra e sim repartir aquilo que temos”.

* Com contribuição das campesinas e campesinos do Movimento Tèt Kole
**Editado por Luciana Console