Para combater a “pandemia da fome”, MST já doou mais de 600 toneladas de alimentos

Dirigente do movimento, Kelli Mafort reforça importância da solidariedade para salvar vidas e possibilitar quarentena
A campanha “Vamos precisar de todo mundo”, da qual o MST participa, já distribuiu mais de 40 mil cestas para bairros periféricos – Periferia Viva

Por Lu Sudré
Do Brasil de Fato

As ações de solidariedade protagonizadas por movimentos populares em todo o país desde o início da pandemia, além de ajudar a população mais vulnerável durante a quarentena, são também formas de denunciar a ausência do poder público.

Assim como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que já doou mais de 600 toneladas de alimentos para as famílias mais pobres de diferentes partes do país, dezenas de organizações que integram a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo têm mostrado a importância de olhar para o próximo, principalmente em tempos tão difíceis.

Em entrevista ao programa Bem Viver desta segunda-feira (11), Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, deu detalhes das iniciativas populares e explicou que, em meio à especulação do preço dos alimentos industrializados, os brasileiros não conseguem comprar suprimentos e muito menos ter acesso à alimentação saudável.

Nos últimos anos, segundo Mafort, o desmonte das políticas da reforma agrária, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), impede que alimentos sem agrotóxicos e saudáveis cheguem às famílias, aprofundando ainda mais a ameaça da fome sobre as populações vulneráveis neste momento.

Para além da doação de alimentos, a Campanha Periferia Viva, por exemplo, tem feito mutirões para auxiliar mulheres vítimas de violência durante o isolamento social, assim como orientado trabalhadores sobre como acessar o auxílio emergencial de R$ 600 disponibilizado pelo governo.

A integrante do MST ressalta ainda a importância da população continuar colaborando com as iniciativas solidárias. “As pessoas não podem desistir. Precisamos muito que compartilhem diariamente e se engajem em ações urgentes de solidariedade, porque a fome tem muita pressa”.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: Como estão acontecendo essas ações de solidariedade que o MST participa?

Kelli Mafort: A solidariedade é um pilar fundamental, um princípio dos movimentos populares. A maioria deles nasce fruto da solidariedade feita por outras pessoas, pela sociedade, por sindicatos e outros movimentos. No caso do movimento sem-terra, que já vai para 37 anos de existência, desde o início dos acampamentos, tivemos muita solidariedade.

O que o MST faz hoje é devolver pra sociedade a solidariedade que recebemos desde a origem do nosso movimento. E essa solidariedade desse momento tão difícil, em que a pandemia do vírus mas é também uma pandemia de fome.

A pandemia do vírus aqui no Brasil se encontra com uma desigualdade social que é histórica, fundante da sociedade brasileira, resultante da sociedade que conviveu mais de 200 anos com escravidão e tem processos de trabalho tão precarizados com o latifúndio.

Tudo isso faz com que, aqui no Brasil, o vírus tenha uma letalidade ainda maior por conta da desigualdade social, que na verdade é um privilégio de classe. As ações de solidariedade que ajudamos a construir estão organizadas em duas iniciativas principais. 

Uma é a iniciativa “Vamos precisar de todo mundo”, da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo. Ela está presente em todo o país, com ações do movimentos que compõe essas frentes. São diversas organizações urbanas e no campo, que estão tanto arrecadando alimentos e levando para as periferias.

No 1º de maio divulgamos um dado de que já foram distribuídas, só na “Vamos precisar de todo mundo”, 1,5 mil toneladas de alimentos para bairros periféricos e mais de 40 mil cestas.

Além disso, temos outra iniciativa no campo popular, que chama “Periferia Viva”. Ela também está na frente da doação de alimentos, mas junto com isso, estamos fazendo um processo organizativo da batalha das ideias nos bairros e nas periferias onde estamos alcançando a distribuição da alimentação.

E também um processo muito ativo de luta por direitos, organizando redes para que mais gente possa acessar o auxílio emergencial. Seja distribuindo sopas, como fez o pessoal lá do Rio Grande do Norte na fila da Caixa Econômica Federal durante a madrugada, ou concretamente levando computadores para as periferias, ajudando as pessoas a acessar o auxílio emergencial, com plantão de orientações com advogados e pessoas da sociedade civil que estão ajudando.

Nessa rede por direitos, também fizemos rede de apoio às pessoas vítimas de violência doméstica, que lamentavelmente tem aumentado durante o período do isolamento social. Além de atender as mulheres, é prestado também um atendimento para crianças e adolescentes, idosos e LGBTs, que fazem parte da população que sofre mais violência durante esse período de distanciamento social.

No Periferia Viva, foram muitas doações. No âmbito do movimento sem-terra, já contabilizamos perto de 600 toneladas de alimentos doados de acampamentos e assentamentos da reforma agrária, para as populações que mais precisam, e principalmente que mais estão morrendo. 

O vírus chegou com força nas periferias do país e agora há uma proliferação muito grande em relação ao interior do país, o que nos preocupa muito porque há muita dificuldade de infraestrutura para receber e tratar todas as pessoas que estão infectadas pela covid-19.

O que essas ações, principalmente do MST, mostram em relação à importância da agricultura familiar no combate à fome?

Não há falta de alimento, nem agora na pandemia temos problemas de desabastecimento. O que vivemos é uma especulação sobre o preço dos alimentos no qual eles são considerados mercadorias e as pessoas mais pobres, que são a grande maioria do nosso país, não têm acesso aos alimentos.

Enquanto a alimentação for uma mercadoria, as pessoas não vão ter acesso a alimentos. Agora, na pandemia, vemos o quanto o sistema do capital expõe suas vísceras. Com o auxílio emergencial de R$ 600, que foi acessado apenas por uma parte da população, não é possível comprar todos os itens de uma cesta básica, haja vista que temos uma especulação muito grande, os preços dos principais alimentos e itens que compõe a cesta básica aumentaram nesses meses da pandemia.

A rede de supermercados e distribuição estão lucrando muito com a fome das pessoas. Precisamos denunciar isso e fazer com que os alimentos cheguem até pessoas. Por isso é importante fortalecer a agricultura familiar e camponesa, a reforma agrária, a produção nas comunidades tradicionais e quilombolas. E fortalecer o projeto de campo.

Há todo um desgaste em relação à política da reforma agrária e essas políticas públicas voltadas para a pequena agricultura. Nesses tempos de solidariedade, não estamos entregando o que está “sobrando” nos assentamentos porque também estamos com dificuldade na produção. Estamos dividindo o que temos. 

Se houvesse uma política de Estado de apoio efetivo à reforma agrária e aos pequenos agricultores, com certeza as ações de solidariedade poderiam ser muito maiores. Existe uma política que foi sucateada no governo Temer e agora com mais intensidade no governo Bolsonaro, que é a política de Aquisição de Alimentos (PAA), que poderia, efetivamente, comprar alimentação a preço justo dos agricultores e agricultoras, e entregar gratuitamente para as populações nas cidades. 

Isso é uma política de Estado, que existe desde 2003, que foi sucateada nesses anos de golpe. Precisamos denunciar isso, é um problema histórico do nosso país. A desnutrição e a obesidade são duas pontas de um mesmo problema, que mostra que a maioria do povo brasileiro não tem acesso à comidade de verdade.

E esse desmonte também atingiu o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Qual seria a relevância desse programa estar fortalecido como resposta à pandemia?

O Pnae é lei, uma política aprovada na qual os municípios são obrigados a comprar pelo menos 30% da alimentação escolar advinda de assentamentos da reforma agrária, áreas indígenas, quilombolas, e da agricultura familiar. Muitos municípios não cumprem essa lei, mas ela existe. Agora, na pandemia, o que fez muitos governos, inclusive o de São Paulo, assim como a prefeitura: Implantaram a regra do cartão para a alimentação.

Esse cartão-alimentação que é na faixa de R$52, mais ou menos, é dado para as famílias, que compram a comida no supermercado e deixa de ter acesso à alimentação de verdade que vem da agricultura familiar. Muitos contratos com produtores foram suspensos pelas prefeituras que adotaram essa regra do cartão. Mas com R$52 se compra o que?

As crianças do nosso país estão descobertas pelo Pnae. Elas tinham acesso à comida de verdade nos municípios que cumpriam a lei, se alimentavam com comida da agricultura familiar e isso agora está sendo relativizado em um momento em que as crianças mais precisam estar fortalecidas em sua imunidade, alimentando-se de frutas, verduras, legumes. Comida da roça e principalmente comida sem veneno, que através da agroecologia podemos entregar nas escolas do nosso país.

Enquanto o governo defende a reabertura dos comércios e o relaxamento do isolamento social em nome da economia, os movimentos sociais colocam outra perspectiva, que o que importa mais é a vida. O que isso significa para nós enquanto Brasil e até mesmo pra sociedade pós-pandemia?

Nossa solidariedade é muito diferente da solidariedade S.A, do Jornal Nacional, da Globo, que é uma divulgação das empresas. Uma publicidade gratuita. Empresas tiveram a cara de pau de ir na televisão dizer que estão doando 10 toneladas, 500 cestas, sendo que são empresas gigantes, que exploram. Empresas do capital poderiam estar doando muito mais. Quase não ouvimos notícias de doação do agronegócio porque ele não produz comida e portanto não pode doar. São commodities agrícolas para exportação.

Nossa solidariedade é distinta de um assistencialismo. Não estamos só doando alimentos. Ao doá-los, estamos nos confrontando com necessidades muito concretas da luta por moradia, da luta por terra, por reforma agrária. Da necessidade de organização da juventude e é isso que estamos encontrando nas periferias.

Com certeza, os movimentos populares tendem a crescer muito depois da pandemia porque os movimentos populares são referências importantes e estão na periferia onde o Estado só chega para reprimir.

Essas ações de solidariedade com certeza vão se traduzir em um processo maior, mais denso, de organização e de luta tão necessária que o Brasil precisa. A solidariedade tende a se intensificar, mas é uma solidariedade que denuncia. Denuncia um Estado que manda despejar pessoas sem-teto em plena pandemia, como aconteceu na semana passada, no município de Piracicaba, onde 50 famílias sem-teto foram despejadas. Acordadas 6h da manhã com tratores passando em cima de suas casas, destruindo tudo, a mando do governador Doria. Como essas pessoas vão praticar o “fica em casa”, o direito à quarentena, se elas não tem teto? Forma jogadas na rua sem nenhum apoio.

Estamos ajudando também essas famílias. Mas é essa solidariedade com o tom de denúncia em relação à omissão do Estado e política genocida que temos, principalmente em relação ao governo federal.

Como nossos leitores e ouvintes podem ajudar?

Temos alguns meios de comunicação com a sociedade por meio da divulgação das iniciativas nas redes sociais. Então, a “Vamos precisar de todo mundo” tem um site, que é o todomundo.org, em que as pessoas pode acessar e ver as iniciativas que estão sendo tomadas em todo o país e também podem se engajar em doações financeiras, de alimentos. Ali tem o “Como ajudar”.

O Periferia Viva está no Instagram e no Facebook. Nos sigam e compartilhem as notícias, é muito importante que divulguemos as iniciativas de solidariedade. Não pode ser só uma ou duas vezes. Tem que ser práticas constantes porque a fome tem pressa. Estamos com marmitas solidárias entregues diariamente nos estados do Pernambuco, no Maranhão, em Minas Gerais e São Paulo.

Em São Paulo, por exemplo, estamos atendendo um prédio de ocupação sem-teto mas com várias pessoas estrangeiras e de diferentes nacionalidades, principalmente do continente africano, que estavam trabalhando em postos precarizados no Brasil, e que logo na primeira semana da pandemia foram mandados pro olho da rua, sem nenhum direito.

Essas pessoas estão sem condição de preparar o próprio alimento porque sequer tem eletrodomésticos. São ações concretas. As pessoas não podem desistir. Precisamos muito que compartilhem diariamente e se engajem em ações urgentes da solidariedade porque a fome tem muita pressa.

Precisamos proteger o nosso povo. É um ato de amor que está envolvido nisso mas é um ato de amor completamente comprometido com as mudanças que nosso país precisa.

Temos dito que pra defender nosso povo e lutar pela nossa imunidade, temos que disseminar ações que ajudem fortalecer a nossa humanidade. São duas dimensões muito importante. Quem doa, fortalece sua humanidade, seu projeto de país.

A doação e a solidariedade faz muito bem pra quem recebe mas principalmente pra quem doa. Precisamos fortalecer os dois elos da mesma corrente e entender que, se não for pela solidariedade, teremos um número de mortandade ainda maior no nosso país.

Temos que ter clareza que não queremos morrer nem de vírus e nem de fome. É uma tristeza que está acontecendo no nosso país e está só no começo, infelizmente. Precisamos nos engajar cada vez mais.

Edição: Rodrigo Chagas