Coronavírus, meio ambiente e o capitalismo

Cada vez que um governante descumpre as orientações de saúde no combate ao Covid-19, o capital triunfa sobre a vida humana

Por Alecsandra Santos da Cunha*
Para Página do MST

Você pode não acreditar na ciência, mas isso não impede que ela não tenha razão e a realidade deixe de estar posta.Em Geografia, a Biogeografia se dedica à compreensão de como ocorre a distribuição dos seres vivos no espaço mundial a partir de características de clima, solo, relevo, entre outras. Com isso, entendemos como as características físicas e sociais afetam as populações animais e vegetais.

Sou pesquisadora da Geografia Agrária, isso significa entender os conflitos territoriais a partir da atuação do capital nos territórios rurais. No cerne das minhas pesquisas está a Agroecologia que, de maneira simplista, pode ser explicada como a construção de uma forma contra-hegemônica de viver e ser no/do mundo, a partir de outros modos de produção agropecuária, cadeias curtas de comercialização, valorização de saberes tradicionais, solidariedade, coletivização e respeito à natureza, traduzido no uso sustentável dos recursos naturais. Baseada nesse arcabouço teórico-conceitual e experimentado, procuro entender como as ações humanas estão impactando a capacidade do planeta em sustentar a nossa civilização.

Compreendo que o modo de produção capitalista está no cerne das mazelas pelas quais o ser humano vem sendo exposto, tanto no âmbito socioeconômico quanto ambiental, político, cultural, da saúde e da ética. Pandemias e epidemias decorrem, em grande medida, de tais ações humanas sobre o meio. Contudo, não devem ser responsabilizadas nações e/ou etnias, pois isso só intensifica a xenofobia, como já aconteceu em nossa história. No século XIV, por exemplo, os judeus foram considerados culpados pela Peste Negra, porém, ela era transmitida por pulgas que colonizavam os ratos, muito presentes na época, principalmente, pela falta de higiene e saneamento básico.

A forma com que o ser humano atua no mundo está diretamente ligada ao surgimento das pandemias. A devastação dos ecossistemas tem, muitas vezes, ligação direta com a origem e a disseminação das doenças pandêmicas.

Com o aumento da população mundial, a partir do término do ciclo de caçadores/coletores (pré-história), os vírus passam a se disseminar entre as populações que se aglomeram em determinados territórios, passando para o regime de sedentarismo. Um agravante sobre essa realidade é a capacidade de mutação dos vírus (processo natural), que pode ser acelerada pelas atividades antrópicas (que resulta da ação humana), disseminando muitas e perigosas doenças infecciosas.

Nesses contextos, a resistência ambiental – que ocorre por meio de parasitismo, doenças contagiosas, predação, entre outros, é considerada um mecanismo natural e começa a atuar buscando um controle sobre a dinâmica populacional. Ou seja, é o ponto de saturação no qual a natureza passa a agir como resistência na defesa de seus recursos naturais.

Baseados nas transformações que ocorrem no planeta, principalmente, no último século, cientistas passam a entender o período em que vivemos como “Antropoceno”, ou seja, uma era baseada nas ações humanas. E o que isso tem a ver com o Coronavírus?

Entre outras coisas, a redução e/ou paralização de boa parte das atividades econômicas em âmbito mundial, nesse momento, já vêm apresentando um rearranjo ambiental. Na China, por exemplo, a poluição atmosférica apresenta índices bem mais baixos que aqueles encontrados cotidianamente. A redução de emissão de gases na atmosfera tem diminuído também em outros grandes centros urbanos ao redor do mundo. Temos céus mais claros e azuis. Em praias brasileiras, tartarugas estão desovando com maior frequência e quantidade. Na Índia, macacos tomam as ruas de algumas cidades. Ganhos ambientais estão ocorrendo pelo mundo em função do afastamento social, provocado pela pandemia de Covid-19.

Quando se derruba uma floresta para implantar uma monocultura, por exemplo, não é dada a devida importância aos impactos ali causados. Populações animais e vegetais são expulsas de seus habitats naturais. Os agrotóxicos utilizados, além dos danos provocados aos solos, recursos hídricos e trabalhadores, quebram a cadeia natural, provocando, assim, a super população de determinadas espécies. Dentre essas espécies poderão ocorrer a disseminação de vírus, que alcançam os seres humanos.

O comércio ilegal de animais silvestres também pode contribuir para circulação de diversos tipos de doenças. Assim como, cientistas do mundo inteiro alertam para o derretimento das geleiras e o que pode estar ali escondido por milhões de anos, sendo novamente disponibilizado no ambiente. Quando o habitat de um morcego é destruído, ele tende a buscar outras formas de sobrevivência e, por isso, entra em contato com o ser humano e a transmissão entre espécies pode acontecer.

Com relação ao novo Coronavirus, ainda estão em curso os estudos que buscam sua origem e solução. Mas parece certo que a transmissão entre espécies, chegando ao ser humano, está intrinsecamente relacionada à essa ótica da atuação do capitalismo no mundo. Uma ótica egoísta e individualista, que prioriza o acúmulo de capital em detrimento dos processos sustentáveis de uso dos recursos naturais para atender as demandas humanas.

As primeiras evidências da cadeia de transmissão do Covid-19 aparecem a partir de morcegos, que teriam transmitido o vírus para os pangolins (mamíferos encontrados na Ásia e África tropicais, geralmente consumidos como alimento em algumas partes do mundo), ou ainda, que uma transmissão direta entre morcegos e humanos teria acontecido. No entanto, as pesquisas ainda são muito incipientes, comprovar algo nesse sentido.

O que podemos refletir a partir disso é que a forma como o ser humano vem atuando sobre os recursos naturais em busca do “crescimento econômico” – assim mesmo, entre aspas, porque tal crescimento está colocado para uma mínima parte da população, enquanto massas humanas vivem sob o spectro da fome e da indignidade – também pode ser a origem da futura destruição da humanidade.

Quando se acusa a população chinesa de ser a culpada por essa pandemia, há de se pensar, para além da questão cultural daquele país, que há bilhares de pessoas que precisam ser alimentadas, em um contexto no qual se produz alimento suficiente para a população mundial, mas que sua distribuição é restringida a quem pode pagar mais caro por esse alimento. Enquanto isso, a massa popular se coloca em situação de risco ao se alimentar de animais silvestres (que passam por processos evolutivos a partir da destruição dos ecossistemas) para sua sobrevivência.

Essa é uma questão de base material, que transcende a cultura. Ou seja, comer, beber água e dormir, está no fundamento da sobrevivência humana, água, alimento e abrigo gera e mantém a vida. E, em um mundo no qual comer, beber e morar com dignidade é somente para aqueles que podem pagar por isso, uma pandemia diretamente relacionada aos impactos causados na natureza, pode eliminar grande parte da população, aquela mesma que não acessa também a educação, a cultura, a política, a saúde, o lazer.

Além de elucidar a relação da origem do novo Coronavírus com o capitalismo, não podemos deixar de pensar sobre quais pilares o capital se relaciona com a disseminação do vírus, tornando-o a grande pandemia que vivemos nesse início da década de 2020.

Diante de um vírus de tamanha capacidade de contaminação, o capital, mais uma vez, mostra suas garras: evidenciando sinais de sua disseminação em massa na China, onde o vírus explodiu, e em cidades como Milão na Itália e Madri na Espanha que não se detiveram em priorizar a economia em detrimento à saúde e segurança de sua população. Em consequência desse tipo de posicionamento, as mortes chegam a números exorbitantes em diversas partes do mundo. O povo de Nova Iorque, por exemplo, enterra seus entes queridos em valas coletivas. No Equador, os mortos são deixados pelas ruas. Em Três Rios, interior do Rio de Janeiro, o prefeito publicou um vídeo mostrando um ofício enviado pelo Exército Brasileiro, pedindo informações sobre a capacidade de seus cemitérios. Em Mariana, Minas Gerais, as empresas de mineração não pararam um dia sequer suas atividades. O Brasil já passa dos 13 mil mortos.

Assim, regendo a orquestra, o capital vai tirando vidas ao redor do mundo. A cada vez que um governante local, regional ou nacional, descumpre as orientações das autoridades mundiais em saúde acerca das ações de redução e/ou paralização das atividades econômicas e afastamento social no combate à disseminação do Covid-19, o capital triunfa sobre a dignidade humana.

O capital opera em diversas frentes. Quando são alterados os cursos dos rios, pavimentando-os para a utilização do espaço para formas urbanas hegemônicas, são provocadas enchentes que destroem vidas e sonhos. Quando uma cava é aberta em uma montanha para exploração do minério, perde-se o equilíbrio do ecossistema local e, também, vidas e sonhos são levados lama abaixo, por erros de base econômica que culminam em grandes crimes contra a vida e o meio ambiente. Na transformação da natureza, a ganância é a atriz principal.

O modo de produção capitalista, atualmente em sua fase neoliberal, está saturando o planeta e esse, por sua vez, vem devolvendo para a humanidade suas formas de controle em defesa de si próprio.

Até quando o ser humano seguirá nessa cultura de consumo desenfreado, de transformações radicais dos ambientes naturais, de acúmulo de riquezas para uma ínfima parte da população enquanto os outros morrem pela falta das necessidades básicas à vida humana?

Como será o mundo pós-pandemia? Há que se ter esperança de uma conscientização coletiva?

A humanidade entenderá que pode produzir alimentos saudáveis e suficientes, que dão trabalho e sustento para famílias, cumprindo a terra sua função social de forma mais harmoniosa com a natureza?

A humanidade entenderá que a exploração mineral poderia ser diminuída a uma fração de 1/10 e, ainda assim, as necessidades básicas seriam sanadas?

A humanidade entenderá, enfim, que somos parte da natureza, somos causa e efeito e que, o planeta é resiliente, mas que talvez nós não sejamos?

Entre a certeza de que outras formas de viver e ser no/do mundo são possíveis e a esperança que a humanidade, diante da sua existência colocada à prova, repense seus padrões hegemônicos, deixo aqui um fraterno abraço e #ficaemcasa, se puder.

*Doutora em Geografia, é Assessora Técnica das famílias atingidas pela barragem em Mariana/MG. Especialista em Educação Ambiental, Agricultura Familiar Camponesa e Educação do Campo
**Editado por Solange Engelmann