Colonialismo e imperialismo: os dilemas históricos da soberania haitiana

Artigo perpassa brevemente por alguns dos principais períodos históricos da sociedade haitiana no enfrentamento ao modelo colonial e imperialista
Foto: Arquivo Brigada Dessalines

Por Brigada Internacionalista Jean-Jacques Dessalines – Haiti
Da Página do MST

Neste artigo, buscamos identificar os interesses do imperialismo norte americano no país no período contemporâneo, e abordar a resistência popular anti-imperialista e anticolonialista, na luta pela soberania nacional.

O país sofreu dois processos de colonização por grandes impérios: o Império Espanhol e o Francês. Depois entrou em um ciclo de Estado submisso ao imperialismo norte-americano, do qual caracteriza a fase mais recente da história do país.

Começamos o percurso histórico pelo Império Espanhol ao chegar nas Américas, em 1492, um período que vai até 1697, que como estratégia de expansão territorial, invade parte das ilhas do Caribe, uma delas a Ilha Espanhola, uma das maiores da região em dimensões territoriais. Nela viviam há séculos povos originários como os Taínos, que em condições desiguais de enfrentamento, embora resistindo, foram exterminados durante poucos anos.

Saint Domingue/Santo Domingo


Em 1665, os franceses começaram as primeiras iniciativas de ocupação no território da Espanhola, onde se estabelecem concretamente a partir de 1697. Esse é um período de duras batalhas na disputa pelo território entre o Império Espanhol e o Império Francês, que culminou na divisão da ilha em duas partes. Uma parte passa a se chamar Saint Domingue/Santo Domingo, sob o domínio do Império Francês e a outra parte de Espanhola, sob o domínio do Império Espanhol (o que depois vai se tornar República Dominicana).

O período da colonização francesa em Saint Domingue/Santo Domingo é marcado pela incrementação da lavoura açucareira e, em decorrência disso, o território foi considerado um dos mais ricos das colônias francesas; e pela intensificação do tráfico negreiro e extermínio dos escravos na colônia.

A partir de 1791, o período foi marcado pela intensificação das revoltas dos escravos, com a morte de Boukman (líder escravo). Desse processo, desencadeia-se uma série de rebeliões que desembocam na declaração da independência de 01 de janeiro de 1804, proclamada por Jean-Jacques Dessalines, do qual denominamos de Revolução Haitiana, a primeira revolução das Américas. Esse território, que antes se chamava Saint Domingue/Santo Domingo, passa a se chamar Haiti.

Divisão


Em 1806 com a morte de Dessalines, o país se divide em dois: Norte e Sul. Mesmo o país tendo conquistado sua independência, é somente em 1825, sob o período do presidente Jean-Pierre Boyer, que os franceses o reconheceram como tal. A partir desse momento, recomeça um novo ciclo de intervenções e invasões americanas contra a nação haitiana.

Esse ciclo inicia-se com a invasão norte-americana em 1915 e vai até 1934. Houve a transição do sistema colonial escravista até então vigente, para um reordenamento político, econômico e militar, impondo ao país uma relação de dependência de novo tipo; não houve desenvolvimento, ao contrário, houve uma intensificação das estruturas feudais mercantilistas de dependência agora para o imperialismo norte-americano.

Outro marco histórico-político no Haiti foi a longa ditadura dos Duvalier: François Duvalier e Jean Claude Duvalier. François Duvalier (1957-1971), mais conhecido como Papa Doc, apesar de ter sido eleito com promessas de governo populista, rapidamente manipula as eleições, muda a constituição, inclusive para tornar seu mandato vitalício. Ele perde apoio popular e busca se sustentar por meio de alianças com os EUA nas relações exteriores e instaura uma ditadura no país responsável por assassinar milhares de pessoas, em especial camponeses (as), por seu exército miliciano chamado “Tontons Macoute”. Ao morrer em 1971, assume com 19 anos de idade seu filho Jean-Claude Duvalier (1971-1986), chamado Baby Doc. Ele coloca o país em um agravamento de caos social e econômico, governando com um regime militar do terror à população.

Golpes


Haiti também tem uma história política marcada por golpes de Estado. Os mais contemporâneos foram o golpe militar de 1991 que depôs o presidente Jean Bertrand Aristide. Eleito por três vezes (1991, 1994 a 1996 e 2001 a 2004) como presidente, Aristide foi considerado o primeiro presidente da história do país a ter um amplo apoio popular, pois aplicava uma política em favor dos pobres. No entanto, em 2004 sofre um novo golpe, desta vez pelas forças militares norte-americanas, com apoio de militares brasileiros.

Esse é o contexto que dá origem a MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti) iniciada em 2004, indo até 2017. Uma “missão” em meio a uma grave crise de instabilidade política, justificada em nome da paz. Entretanto, suas consequências resultaram na desestabilização da sociedade haitiana por vários fatores: a militarização do país, aumento da violência, em especial nas periferias, violência sexual contra mulheres e crianças pelos militares, intensificação da crise econômica, introdução da cólera no país pelos soldados do Nepal, entre outras. Uma ocupação militar orquestrada em especial pelos Estados Unidos, França e Brasil.

Com o terremoto em 2010, o país sofre uma das suas maiores tragédias, social, econômica e ambiental, onde milhares de pessoas foram mortas, ficaram com sequelas e outras tantas, em piores condições de vida. Essa catástrofe marca até os dias de atuais a memória do povo haitiano. Também foi o contexto onde se intensifica a atuação de ONGs milionárias no país, lucrando em nome de uma falsa ajuda humanitária.

Após 2017 a “missão” da ONU segue com outros nomes, passa e se chamar MINUJUSTH (Missão das Nações Unidas para o apoio a Justiça no Haiti) e atualmente segue com o nome de BINUH (Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti). Até os dias atuais não houve reparações pela ONU aos crimes cometidos e a “missão” segue com outros títulos, dando continuidade a intervenção imperialista.

Interesses imperialistas


Nesse percurso histórico podemos fazer um paralelo com a atualidade e nos perguntar: quais são os interesses imperialistas dos EUA no Haiti? Essa pergunta pode ser refletida a partir de algumas dimensões: a primeira, é pelo saque dos recursos naturais. O Haiti é um país rico em minérios, inclusive com uma grande reserva de ouro (principal minério do país), explorado por empresas transnacionais norte-americanas, saqueando a soberania mineral e expropriando populações de seus territórios.

O segundo, é pelo domínio do território marítimo, porque o país está localizado em uma zona estratégica do Caribe, fronteira com eixos de resistência como é o caso da Venezuela e Cuba. Ou seja, os EUA precisa controlar todo esse território através de desestabilizações econômicas e aventuras militares na região. O território do grande Caribe, do qual faz parte o Haiti é um dos pólos estratégicos da retomada da hegemonia americana na América Latina.

Um terceiro interesse é a manutenção de um governo e um Estado subserviente aos interesses norte-americano. Atualmente, os americanos patrocinam a manutenção de Jovenel Moïse (Partido Tèt Kale/Cabeças Raspadas do Haiti), um governo ultra neoliberal, eleito com fraudes eleitorais em 2016 e até então governa o país sem nenhum apoio popular.

O alinhamento ideológico e econômico de Jovenel Moïse ao projeto estadunidense, contribuiu para a destruição dos mecanismos de integração regional, como por exemplo, a CARICOM, assim como enfraquecer os pólos de resistência na região como é o caso da Venezuela, pois aqui lembramos que o governo de Jovenel Moise votou contra o governo de Maduro e o povo venezuelano na OEA (Organização de Estados Americanos) em 2019, traindo o povo haitiano e as relações históricas entre Haiti e Venezuela.

Por fim, como última dimensão dos interesses imperialistas, temos a subordinação econômica, manter o país em permanente caos para lucrar com a miséria do povo, seja através das falsas ajudas humanitárias dos organismos internacionais como a ONU ou através das ONGs milionárias que operam no país.

Eleições


O capítulo da história mais recente do Haiti pode ser caracterizado sobretudo a partir da eleição fraudulenta de Jovenel Moïse. Ele é eleito em 2016 e assume em 2017, com a falsa propaganda de jovem empresário que iria desenvolver o país. Porém, o que ocorre na sequência representa o contrário, o país entra em uma grave crise econômica piorando as condições de vida da população. É descoberto que o presidente está envolvido nos escândalos de corrupção do Petrocaribe (um programa de cooperação econômica sobretudo de petróleo, desenvolvido por Hugo Chávez da Venezuela para ajudar ao povo haitiano e os países do Caribe).

Nesse sentido, a partir de 2016 o povo haitiano inicia um ciclo de grandes mobilizações exigindo punições para os envolvidos nos roubos dos fundos do Petrocaribe; exigindo a renúncia do presidente, pois ele não tem nenhuma legitimidade; e lutando contra as ingerências do imperialismo norte-americano.

Podemos afirmar que não há um estado nacional no Haiti por duas razões históricas: um governo que desenvolve uma política completamente submissa aos americanos e uma sociedade completamente ausente de desenvolvimento nacional e políticas públicas na área da saúde, educação, saneamento, economia nacional, etc.

A história dessa pequena grande ilha é de um povo que sempre lutou contra o colonialismo e o imperialismo, desde os povos originários que habitavam na Ilha Espanhola, em sua resistência contra o império espanhol; perpassando pela história de luta dos escravos contra a colonização francesa; as resistências contra diversas ocupações militares norte-americanas; até as mobilizações atuais contra o regime do governo Jovenel Moïse. Um país que tem pelo menos duas grandes lutas históricas: a luta pela sobrevivência diária de seu povo e a luta permanente pela soberania nacional econômica, política e alimentar.

*Editado por Fernanda Alcântara