Crise ambiental no Brasil é marcada por avanço do desmatamento e conflitos no campo
Por Luciana G. Console
Da Página do MST
O desmatamento no Brasil está com os maiores índices dos últimos anos, é o que apontam inúmeros documentos. Só de acordo com o Relatório Anual do Desmatamento do Brasil – 2019, que mostra a perda de vegetação nativa detectada em todos os biomas do país no ano passado, o Brasil perdeu área equivalente a oito vezes o município de São Paulo, totalizando 1.218.708 hectares. Deste valor, mais de 60% de área desmatada está no bioma Amazônia, que é seguido pelo Cerrado na classificação de biomas que mais sofreram com o avanço do desmatamento.
Além da perda da floresta, a crise ambiental também mostra outra face. Em meio à derrubada da vegetação, as comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas são colocadas no centro de disputas de território, onde a violência impera. De acordo com o mais recente levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conflitos no Campo Brasil 2019, no primeiro do governo Bolsonaro, o número de conflitos rurais foi o maior dos últimos dez anos, chegando a 1833 casos.
Para falar sobre o assunto, entrevistamos Ayala Ferreira, do Coletivo Nacional de Direitos Humanos do MST, e também Dione Torquato, secretário geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), organização criada em 1985 na Amazônia como resultado da luta contra a expulsão da terra e a devastação da floresta. Confira!
Página do MST: A criação do CNS tem como origem a da luta do grande ativista Chico Mendes pela defesa da floresta. Como vocês enxergam o contexto desta luta naquela época e hoje? As demandas continuam as mesmas?
Dione Torquato (DT): Nossa luta nos anos 80 se deu pela reforma agrária ecológica, contra o modelo de ocupação que ameaça a vida da floresta e do seu povo. Nossas principais bandeiras estão baseadas na defesa dos territórios de uso coletivo, na conservação dos recursos naturais, desenvolvimento sustentável, por meio do manejo sustentável dos recursos naturais, e no fortalecimento da organização social comunitária. Hoje, cerca de 60 milhões de hectares, ou mais de 10 da área amazônica, estão em territórios de uso comum e comunidades extrativistas e agricultores familiares em modalidades, divididos da seguinte forma: 75 Reservas Extrativistas Federais e Estaduais, sendo 28 Marinhas; 21 Reservas Extrativistas de Desenvolvimento Sustentável; 37 Florestas Nacionais e Estaduais e 506 Projetos de Assentamentos diferenciados. Uma demonstração da importância do papel das florestas tropicais e das populações que nelas vivem é o equilíbrio climático global. Só nos territórios protegidos pelas comunidades extrativistas são mais de 2 bilhões de toneladas de estoque de carbono, conforme estudos científicos.
A luta pela garantia do direito dos povos e comunidades tradicionais nunca foi fácil. Vale lembrar que das décadas de 70, 80 e 90, a pressão sobre a Amazônia se intensificou e com isso, vieram as ameaças aos povos da floresta. Como forma de resistir, índios e seringueiros formaram uma aliança pela defesa dos seus territórios: “Aliança dos Povos da Floresta”, que existe até hoje. Desde a formação da Aliança muitos índios e seringueiros tiveram seus territórios criados, demarcados e reconhecidos. Outras conquistas também aconteceram, como a garantia de algumas políticas públicas importantes para os povos da floresta.
Porém, a luta pela Reforma Agrária ainda permanece. Mesmo diante de todas as conquistas nos tempos atuais, muitos conflitos pela disputa da Amazônia ainda ocorrem, causando morte na floresta. Ainda há áreas que precisam ser reconhecidas, homologadas ou criadas pelo governo. Também é perceptível ver que a pressão sobre a Amazônia cresce, sobretudo nos últimos anos com as mudanças de governo e principalmente com o atual governo Bolsonaro, que é um governo que incentiva o desmatamento e a grilagem de terra na Amazônia, ignora o direitos dos povos e comunidades tradicionais, criminaliza as forma de organizações e os movimentos de luta em defesa da Amazônia e que desconsidera as relações socioeconômicas e políticas da região. Os dados do avanço do desmatamento e aumentos dos conflitos fundiários na Amazônia é uma fotografia da atuação política desse governo.
A Amazônia é um dos biomas mais devastados do último ano. Qual o impacto se continuar neste ritmo?
DT: A perda dos territórios tem impactos irreversíveis, não apenas para os povos da floresta, mas para o Brasil e toda a humanidade. Não podemos esquecer da importância do bioma Amazônia para regulação do clima do planeta e não podemos esquecer que o Brasil é o país com a maior biodiversidade do mundo. O aumento dos desmatamentos na Amazônia nos empurra para o colapso ambiental, que atingirá de imediato as populações em situações de maior vulnerabilidade social como os povos da floresta, do campo e das águas, as populações que vivem nas periferias e, por fim, toda população em geral. Não podemos esquecer que estamos vivendo em um único planeta e que as consequências causadas pelas mudanças climáticas devem atingir a todos. Cedo ou tarde isso vai acontecer se a gente não se preocupar agora.
Quais medidas do governo seriam importantes para barrar a degradação ambiental no Brasil?
DT: Num país com tamanha riqueza ambiental, diversidade social e cultural como o Brasil, a pauta ambiental e agrária deveria estar no centro da política de Estado. O governo deveria tomar uma série de medidas ordenadas como fazer a Reforma Agrária justa para os povos do campo, das florestas e das águas, investir em políticas públicas ambientais e sociais, fazer a regularização fundiária, garantir infraestrutura adequada à realidade da Amazônia, realizar ações de investimentos adequados ao desenvolvimentos sustentável da região e ter na esfera institucional uma estrutura que atenda as necessidades da Amazônia.
Como os cidadãos brasileiros podem atuar nessa questão?
DT: O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem assegurado pela nossa Constituição e o dever de proteger o meio ambiente também. Portanto, a luta em defesa da Amazônia não pode ser uma luta só dos povos da floresta, mas de toda sociedade, porque Amazônia é um bem de toda a humanidade. No caso da sociedade brasileira, uma forma concreta de ajudar na luta dos povos da floresta é apoiando a causa, sendo contra as ações criminosas do governo e individualmente cada um também fazer a sua parte de cuidado com o seu ambiente. Porque o espaço que você vive faz parte de um ambiente maior e ações que você faz pode ter grandes efeitos quando somado a outros “esforços”.
Há esperança para a floresta?
DT: A esperança da floresta está nos seus guardiões das florestas, sobretudo nas mãos das mulheres e da juventude, no modelo de desenvolvimento que o país adotar, no modelo econômico que o mundo seguir e no comportamento da humanidade. Sem uma visão integrada da importância do homem com a natureza, a vida ou fim da floresta depende do rumo que a humanidade vai tomar.
Quando o assunto é violência no campo, há diferença em relação aos governos? Qual a percepção da situação hoje?
Ayala Ferreira (AF): Em função desse contexto de negação histórica da democratização do acesso à terra e do reconhecimento de áreas historicamente pertencentes às comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas, o processo de organização e luta dos trabalhadores do campo se coloca de forma extremamente violenta. Essa construção histórica aliada à determinados governos que são contrários à efetivação desse direito garantido na Constituição, faz com que essa violência se exacerba e amplie, afetando diretamente a vida daqueles que lutam pela efetivação desse direito à terra e ao reconhecimento da sua cultura e seus territórios.
Ao longo dos anos, nós fomos encontrando distintas formas de atuação dos governos na questão da violência no campo. Porém, é notório, quando olhamos do ponto de vista histórico e do levantamento de dados, que foram se ampliando os conflitos, ameaças, mortes e perseguições no campo. Em abril, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), lançou a edição 2019 do caderno de “Conflitos no Campo”, que desde 1995 tem feito esse trabalho sistemático no levantamento desses dados.
É interessante observar que ano passado, primeiro ano de governo do atual presidente Bolsonaro, foi um ano extremamente violento para com os trabalhadores do campo, sejam camponeses Sem Terra, assentados da Reforma Agrária, indígenas e quilombolas. Nos últimos 15 anos não presenciamos uma violência tão grande quanto 2019. Além disso, é importante também que analisemos os dados pela simbologia que eles representam. Então, a CPT apresentou 1800 conflitos no campo, vitimando 859 mil famílias. Em média, tivemos 5 conflitos por dia, alguns vinculados a luta pela terra, outros pela água e outros pelo enfrentamento trabalhista e pela prática do trabalho escravo. Lamentavelmente foram 32 pessoas assassinadas no campo, metade eram lideranças referências.
Quando nós falamos em Reforma Agrária ou demarcação de terras para comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, nós estamos nos referindo à uma política de Estado. Ou seja, governos teriam a obrigatoriedade de implementar e fazer valer o que está nos preceitos da Constituição Federal de 88.
É claro que o Brasil é uma realidade que demanda com que esses setores que lutam pela Reforma Agrária e pelo reconhecimento histórico dos seus territórios, se organizem e busquem mecanismos de pressionar o Estado para que isso possa ser concretizado. A pressão é necessária por uma razão fundamental: nós somos uma sociedade que se formou sob a lógica do sistema capitalista, que legitimou a propriedade privada, do latifúndio e que estava, em uma construção histórica, nas mãos de setores que eram, majoritariamente, compostos por homens brancos europeus ou descendentes de europeus.
Além disso, setores que se utilizaram do trabalho escravo indígena e negro para formar o que nós chamamos das riquezas que se instituíram no nosso país, formando uma elite branca, com resquícios escravocratas e que assume na sua prática cotidiana seu caráter anti popular. Então, nós temos essa realidade histórica que legitima uma realidade que nos impulsiona a fazer um processo mais permanente de luta para efetivar a democratização do acesso à terra, da Reforma Agrária e para reconhecer esses territórios tradicionais das comunidades indígenas e quilombolas.
Como podemos relacionar a violência no campo com a crise ambiental?
AF: Primeiro, temos e devemos reconhecer, que o governo Bolsonaro assumiu para si uma agenda extremamente ruim para os trabalhadores das cidades e do campo, de caráter efetivamente neoliberal e de afirmação de um discurso da violência, autoritário e conservador. Então, é um governo que tem a narrativa do ódio e de busca de criminalizar e eliminar fisicamente aqueles que ele considera inimigos dele e do governo dele. No caso, trabalhadores que se organizam em movimentos populares e comunitários para lutar por seus direitos mais elementares de garantir a sua existência.
A liberação das armas por determinados setores é um exemplo concreto dessa prática de incentivo à violência contra determinados sujeitos da nossa sociedade. É um governo que tem compromisso com a bancada ruralista e o agronegócio e foi, em 17 meses de governo, implementando um conjunto de ações que fortalece esse compromisso que ele tem com os ruralistas Brasil. Então temos a liberação cada vez mais intensiva do uso de agrotóxicos, a flexibilização na pauta ambiental, o corte no orçamento para agricultura camponesa e familiar e o corte de programas importantes para o desenvolvimento dos territórios tradicionais e camponeses no nosso país e que não afeta só os sujeitos do campo. Afeta também a sociedade de forma geral porque, todos os dias, os que estão na cidade precisam se alimentar e todos nós sabemos que o que o povo brasileiro consome na sua mesa vem da agricultura familiar, é 70%. A ausência dessas políticas inviabiliza a soberania alimentar de todos.
As tragédias na pauta ambiental que nós temos enfrentado são elementos que tem a ver com esse comportamento do Bolsonaro no poder. Então, o incentivo à mineração provocou tragédias como Brumadinho, onde mais de 200 pessoas morreram, traumatizando uma região inteira e o país como um todo. O incentivo à grilagem e ao desmatamento por parte de grupos. Aqui na Amazônia foi um elemento muito forte que demarca o que tem sido a prática deste governo quando nos referimos ao campo, pauta agrária e ambiental. O “Dia do Fogo”, em agosto do ano passado, foi uma expressão concreta da resposta dos ruralistas e dos grileiros a um governo legitima esse tipo de prática.
Como os trabalhadores do campo tem feito para se proteger? Quais medidas seriam importantes para a diminuição da violência?
AF: É importante que se diga que, apesar de um contexto extremamente desfavorável para quem luta pela terra e para quem defende o reconhecimento dos seus territórios tradicionais, os trabalhadores do campo, indígenas, quilombolas e trabalhadores Sem Terra seguem num processo cada vez mais constante de organização e afirmação dessas bandeiras. Por uma razão fundamental, essa é a única maneira com que esses sujeitos podem efetivamente conseguir garantir a sua existência no nosso país. Sem a terra, sem o território, esses sujeitos não se realizam, é questão de vida ou morte seguir fazendo esses processos de luta neste contexto atual.
Sabemos que o momento não é favorável, a negação desses direitos impõe sérios limites para os trabalhadores e a gente sente isso no cotidiano, quando vemos as dificuldades concretas de reprodução na existência em territórios que não tem o minimo, do ponto de vista de política pública e melhoria ao acesso a direitos como moradia, educação, saúde, as estradas, os créditos, enfim. Um conjunto de medidas necessárias para que as pessoas possam ter vida digna no campo. Então acho que é uma realidade que está colocada e os trabalhadores tentam, à duras penas, se manter em pé.
Uma das ações que têm sido fundamentais para que os trabalhadores sigam nesse processo de organização e de resistência e luta é o diálogo com a sociedade brasileira. O reconhecimento de territórios tradicionais significa a garantia diária de conservação e preservação da natureza para as futuras gerações. A conquista e a democratização do acesso à terra, a implementação da Reforma Agrária significa, a produção de alimentos para a sociedade de forma geral. Então, é esse mecanismo de convencimento e de diálogo com a sociedade que tem sido um dos principais instrumentos adotados neste contexto desfavorável para esses trabalhadores e de afirmação da sua agenda. Essa busca de apoio que se materializa nas ações de pressão ao Congresso Nacional, que assumidamente tem tido um compromisso com a bancada ruralista e com o agronegócio no nosso país e na pressão ao governo Bolsonaro, aos estados e municípios. É o esforço de apresentar a importância da nossa existência para os setores que diretamente serão beneficiários da plena realização dos sujeitos do campo tendo acesso às condições mínimas de existência. É responsabilidade do governo implementar essas ações porque está previsto na Constituição Brasileira. E essa precisa ser a nossa afirmação até o último momento, sobretudo em um contexto como esse de pandemia.
O MST lançou o Plano Nacional Plantar Árvores Produzir Alimentos Saudáveis. Em que consiste a iniciativa? O que é esperado?
AF: Acho que é importante a gente reafirmar que o Plano é um posicionamento político e produtivo do MST resultado direto de uma leitura que temos tido de que o atual estágio de desenvolvimento do sistema capitalista, que está em profunda crise, e não é uma crise cíclica como compõe e faz parte do desenvolvimento do capital, e sim uma crise mais aprofundada. É uma crise sistêmica que tem afetado as múltiplas dimensões de nossa vida em sociedade. É uma crise econômica, mas que se estendeu para uma crise política, social e ambiental. A leitura que nós temos tido é que a forma cada vez mais intensiva de exploração dos trabalhadores e dos bens da natureza fez com que a sociedade brasileira e mundial chegasse à um cenário de limite extremo, onde a gente já sente no nosso cotidiano com as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade como elemento que poderá impor sérios limites para a nossa existência enquanto seres humanos.
Essa preocupação fez nós assumirmos que o desafio dos camponeses Sem Terra é seguir produzindo comida suficiente e necessária para as necessidades da sociedade brasileira. E aí não é qualquer comida, tem que ser comida saudável, porque o nosso projeto de Reforma Agrária Popular rivaliza com a hegemonia do agronegócio no campo. É alimento diverso, livre de agrotóxicos, que respeita a existência da família camponesa, então todos tem função no trabalho produtivo da comunidade, é uma alimentação que fortaleça e viva os princípios da agroecologia. Produzir alimentos que estejam acessíveis às pessoas, em função de que hoje o agronegócio deixa muito caro a comida e as pessoas cada vez mais tem perdido o direito de se alimentar de forma diversa porque o custo está caro.
Atrelado a este processo de produção, temos o desafio de preservar o que ainda temos de florestas no nosso país e ampliar e recuperar o que outrora foi desmatado pela sanha do capital, materializado pela expansão do agronegócio e latifúndio. O plano se coloca nesse desafio. Nós, camponeses Sem Terra, pelo controle dos territórios que hoje nós já temos em nosso país, e pela expansão na busca de conquistar novos e fazermos deles lugares bons de se viver. Para isso, ele precisa se recuperar para recompor um ecossistema outrora destruído. Nossa meta é, em 10 anos, plantar 100 milhões de árvores nativas e frutíferas por todo o país, para que sejam usufruídas pelas próximas gerações, filhos e filhas da Reforma Agrária e da classe trabalhadora como um todo.
*Editado por Fernanda Alcântara