A “Velha” grilagem no MT; Grileiro segue ocupando terras da União e ameaça famílias

Comissão Pastoral da Terra e Le Monde Diplomatique Brasil publicam série de reportagens sobre grilagem no Mato Grosso. Primeiro capítulo mostra situação do Acampamento Boa Esperança, em Novo Mundo
Porteira da Fazenda Araúna que serve como segurança para as famílias. Foto: CPT/MT

Por Caio Barbosa
Para Le Monde Diplomatique Brasil

São quase duas décadas de resistência, esperança e luta pelo seu pedaço de terra. Mais de 100 famílias do Acampamento Boa Esperança, localizado na Gleba Nhandú, no município de Novo Mundo (780 km de Cuiabá), ainda sonham com um “mundo novo”. Mesmo com o direito à terra garantido pelo Constituição Federal, as famílias seguem aguardando, acampadas, pela aplicação da política pública de Reforma Agrária e para que as sentenças da Justiça Federal sejam cumpridas pelas autoridades públicas.

A Justiça Federal de Sinop (MT) já reconheceu e declarou que as terras são da União. Mesmo assim, as famílias foram novamente ameaçadas a tiros por funcionários do grileiro, que ocupa a área ilegalmente. Além disso, o Espólio de Marcello Bassan, novamente solicitou à Justiça o despejo do grupo acampado. Porém, em recente decisão da Vara Especializada em Direito Agrário de Cuiabá (MT) o pedido foi negado, garantindo a permanência do acampamento. No entanto, os jagunços do grileiro seguem aterrorizando o grupo de trabalhadoras e trabalhadores rurais.

Desde o final de março de 2020, o grupo de acampados ocupa 4,5 mil hectares da denominada Fazenda Araúna – área que foi reconhecida, em sentença de primeiro grau, confirmada pelo Tribunal de Justiça Federal em 2019, como terra pública da União. Ainda assim, no dia 15 de maio deste ano, funcionários do ocupante ilegal foram armados até o local e efetuaram disparos, causando mais um capítulo de violência contra as famílias. Como consta em boletim de ocorrência registrado na Delegacia de Polícia de Guarantã do Norte “as famílias se sentem ameaçadas por esse fazendeiro; narram também que Iron e os funcionários de Marcello Bassan vêm ameaçando.”

A denúncia dessa velha grilagem mato-grossense, que gera um cenário de violência, também foi relatada pela comunidade para a Comissão Pastoral da Terra e para o Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso (FDHT). Este caso entra para o histórico de conflitos que acontece há mais de 15 anos na região. A violência por parte dos grileiros conta com a omissão das autoridades estaduais, como denunciado em nota pública pela CPT-MT e o FDHT.

Essas famílias resistem diariamente às ameaças feitas pelos grileiros e também sofrem com a morosidade por parte da Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA SR 13/MT) no estado. Após o órgão declarar interesse social objetivando a área para destinação à Reforma Agrária, os trabalhadores e trabalhadoras rurais buscam acessar seu direito à terra. Já houve sentença favorável à União, na Ação Reivindicatória proposta pela Advocacia Geral da União na Justiça Federal de Sinop, que visa a retomada da área.

Fazenda Araúna é terra pública grilada

Em setembro de 2019, o juiz da 1ª Vara da Justiça Federal de Sinop (MT) sentenciou o processo com decisão favorável à União para “reconhecer e declarar a propriedade da União sobre o imóvel denominado Fazenda Araúna, com extensão de 14.796,0823 (quatorze mil, setecentos e noventa e seis hectares, oito ares e vinte e três centiares), localizado no município de Novo Mundo/MT”. Também foi determinado pelo juízo a antecipação de tutela para emitir a União na posse da área no prazo de 60 dias, decisão mantida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no Agravo de Instrumento e no Pedido de Efeito Suspensivo à Apelação.

Todas essas decisões da Justiça Federal comprovam que a área da Fazenda Araúna foi apossada ilegalmente, por meio de grilagem de terras pelo espólio de Marcello Bassan. Mesmo assim, os mais de 14,7 mil hectares seguem em situação de grilagem e as autoridades do estado de Mato Grosso não resolvem o conflito na região. Com isso, as ações de violência se intensificaram após o juiz da Vara Agrária de Cuiabá negar o pedido de revigoramento de liminar para despejar as famílias, solicitado pelo espólio de Marcello Bassan.

As famílias do Acampamento Boa Esperança já haviam ocupado parte da área em anos anteriores e acabaram sendo despejadas. Porém, dessa vez o juiz indeferiu o pedido “portanto, com o intuito de evitar maior confronto entre uma decisão que revigoraria a liminar deste autor e uma sentença que determina a desocupação do Espólio de Marcelo Bassan, bem como por crer que este Juízo possivelmente não detém competência para processar e julgar esta demanda, INDEFIRO o pedido de revigoramento da liminar”. E mais, solicitou à União que se manifestasse em âmbito da Justiça Estadual, pois existe uma decisão da Justiça Federal de Sinop de setembro de 2019, que determinou a saída voluntária do ocupante ilegal no prazo de 60 dias, o que não ocorreu.

Desde o final de março de 2020 as famílias ocupam 4,5 mil hectares da fazena Araúna.
Foto: CPT/MT

Além de não desocupar a terra, que é pública, o grileiro segue buscando estratégias para se manter em posse ilegal da área. Com a conivência das autoridades estaduais e com respaldo do governo federal, os conflitos na região têm aumentado. Por exemplo, o Incra da região inviabilizado a União de tomar posse da área, por meio de atos administrativos, fato denunciado ao Ministério Público Federal na Procuradoria Federal do Cidadão (PFDC).

A superintendência do Incra afirma que segue orientações nacionais por parte do governo federal, “considerando as diretrizes trazidas pelo governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro, com relação à Política Agrária Nacional, especialmente no que diz respeito a questão da regularização fundiária de terras públicas federais; Considerando o Memorando-Circular n. 01/2019/SEDE/INCRA, datado de 27/03/2019, emitido pelo então Presidente do Incra que suspendeu a criação de novos assentamentos para a Reforma Agrária”. Essas são orientações expressas do governo, como comprova o ofício.

Ao seguir essas orientações , o Incra atua a serviço dos grileiros de terras, pois está deixando de cumprir seu papel enquanto agente público. Dar prioridade à regularização fundiária de grileiros em detrimento à Reforma Agrária é uma orientação política do presidente Jair Bolsonaro aos órgãos que são responsáveis pela questão a agrária e ambiental no país.

Além disso, o Congresso Nacional, por meio da bancada ruralista vem dando apoio e quer legitimar os grileiros de terras públicas, ao tentar aprovar o PL 2633/2020 que era a “famosa MP da Grilagem” (Medida Provisória 910). Esse processo está sendo feito sem nenhum tipo de consulta pública e, ainda, em meio a pandemia da COVID-19. Várias organizações já se colocaram contrárias a essa pauta.

Durante mais de 15 anos as famílias viviam em barraco de lona na beira da estrada (CPT/MT)

“Ir passando a boiada”

A famosa frase do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e atitude da bancada ruralista em tentar aprovar o PL da Grilagem demonstra para quem estão legislando e governando nesse momento. A antiga Medida Provisória, que agora é Projeto de Lei, irá autorizar a venda de terras públicas da União e do Incra com até 2500 hectares sem licitação para todo o país e também vai permitir a venda direta de áreas ocupadas na Amazônia Legal, mesmo irregularmente, até dezembro de 2011. Inclusive para quem tenha outra propriedade, desde que somadas não ultrapassem 2500 hectares. Tudo isso, por meio da autodeclaração da área no sistema do CAR (Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural), a legalização será feita sem nenhum estudo socioambiental e antropológico das áreas auto “empossadas”.

Aprovar o PL da Grilagem irá premiar os grileiros do Brasil, estimulando cada vez mais situações como o “Dia do Fogo” , ação criminosa orquestrada por grileiros em agosto de 2019. A Amazônia é o local com mais alertas de desmatamentos, nesse mês de abril atingiu os maiores índices dos últimos 10 anos. Ao todo, 529 quilômetros quadrados de floresta foram derrubadas. Um aumento de 171% em relação a abril de 2019, de acordo com dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), realizado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Além dos crimes ambientais, os conflitos por terra e violências praticadas contra as famílias, aumentam neste cenário de impunidade favorável para grileiros, madeireiros, garimpeiros entre outros que ocupam ilegalmente as terras públicas. Em 2019 foram registrados no Brasil 1.254 conflitos por terra, desses 748 na Amazônia, resultando em 84% dos assassinatos, um total de 27 dos 32 segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, divulgados no documento Conflitos no Campo Brasil 2019.

A velha grilagem que impera e aterroriza no Mato Grosso reúne todos esses elementos ilegais e de criminalidade. Em um efeito dominó, esses atos respingam diretamente nas famílias do Acampamento Boa Esperança que continuam sendo violentadas pelo grileiro, contando com apoio das autoridades do governo.

* Caio Barbosa é da Assessoria de Comunicação da CPT Nacional

**Editado por Luciana G. Console