Atuação do poder público: Incra – MT é cúmplice dos grileiros

Segundo capítulo da série de reportagens "A velha Grilagem no MT" mostra que órgãos estaduais e federais responsáveis pela fiscalização ambiental e agrária seguem um caminho favorável aos grileiros
Trabalhadores rurais já começam a cuidar dos seus lotes. Foto: CPT/MT

Por Caio Barbosa
Para Le Monde Diplomatique Brasil

As famílias que seguem resistindo no Acampamento Boa Esperança buscam seu direito à terra legalmente, por meio das políticas públicas da Reforma Agrária, garantida pela Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra). Elas convivem diariamente com a extrema violência praticada pelos funcionários da família do grileiro Macello Bassan.

Debaixo de barracos de lona, o grupo segue em total situação de vulnerabilidade social, abandonado pelas autoridades públicas estaduais há mais de 15 anos. Inúmeras veze, esta situação, um quadro explícito de como funciona a disputa por terras no Brasil, foi denunciada pela Comissão Pastoral da Terra e pelo Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso (FDHT).

A União, após o Incra – MT declarar interesse social objetivando a criação de assentamento, sem a necessidade de desembolso de recurso públicos para a aquisição de terras, ingressou com Ação Reivindicatória na 1º Vara Federal de Sinop – MT, para a retomada da área da Fazenda Araúna. Essa decisão foi julgada procedente, com antecipação de tutela para emitir a União na posse da área, com confirmação da decisão pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Mesmo com a sentença favorável em setembro de 2019, o Incra – MT tem proferido decisões que contrariam os dispositivos legais quanto à destinação dessas terras para o assentamento de famílias. O atual superintendente do Incra – MT, Ivanildo Teixeira, afirmou que a Superintendência Regional “não irá adotar nenhuma medida para a criação de Projetos de Assentamentos na região”, referindo-se à área da Fazenda Araúna. Ele chegou a afirmar que a autarquia não teria recursos para isso, bem como também nomeou servidor que estava de licença médica para receber a posse da área. As informações podem ser consultadas no processo administrativo  no processo judicial em trâmite na 1ª Vara da Justiça Federal de Sinop.

Além disso, o superintendente encaminhou ao Incra Nacional o ofício de nº.9531/2020/SR(13) MT  informando que a Superintendência realizou um estudo sobre a legislação vigente e concluiu pela necessidade de que o Incra “através de sua Procuradoria Federal Especializada deverá ingressar em todas as ações reivindicatórias que tramitam no Estado de Mato Grosso” e “requerer o sobrestamento de todos os processos judiciais”, referindo-se a todas as Ações Reivindicatórias propostas pela Advocacia-Geral da União (AGU) no estado de Mato Grosso, para a retomada de milhares de hectares de terras da União, cujos ocupantes não fazem jus à regularização fundiária.

Diante desse cenário de descaso do órgão, o Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), emitiu em abril deste ano um parecer com base na auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o Programa Terra Legal, que trata da regularização fundiária das terras na Amazônia Legal. Essa ação resultou no Acórdão/TCU,  que determina: “[…] a postura da Superintendência do INCRA no Mato Grosso se enquadra justamente nesse cenário de renúncia de receita e não destinação constitucional a terras públicas. A propósito, cabe mencionar a orientação esposada pela superintendência no Ofício nº 72607/2019/SR(13)MT-G/SR(13)MT/INCRA-INCRA, de 03 de novembro de 2019, em que o superintendente decide pela suspensão do processo de obtenção de terras, inclusive nas áreas que correspondam a terras públicas federais”.

Segundo informações da assessoria de imprensa do MPF, essa situação de irregularidades por parte do Superintendente do Incra em Mato Grosso acontece em outros casos além da Fazenda Araúna. Segundo notícia divulgada pelo MPF,  “situações semelhantes de omissão do órgão estariam ocorrendo em terras da Gleba Nhandu, Gleba Mestre I, Gleba Gama, Gleba Marzagão, Gleba Macaco e Gleba Ribeiro – áreas cuja destinação a assentamentos rurais vêm sendo buscadas por trabalhadores rurais na região”.

No documento, a Procuradoria Federal do Cidadão chama atenção para o recente Acórdão do TCU de 2020 que aponta omissão dos órgãos federais na destinação de terras públicas regularizadas às suas finalidades constitucionais. O TCU revela o mau funcionamento do Programa Terra Legal, o descumprimento de preceitos legais e constitucionais. Isso ocasiona o aumento da grilagem de terras públicas e o desmatamento ilegal, além de prejuízos nos cofres públicos. De acordo com o Tribunal, o conjunto de áreas nessa situação em todo o país totaliza 887 mil hectares, o que corresponderia a um valor superior de R$ 2,4 bilhões.

Desmatamento e conflitos por terra seguem aumentando

O desmatamento no Brasil não parou de crescer desde a posse do presidente Jair Bolsonaro. Durante sua campanha, ele sempre afirmou que “não pode ter ativismo xiita ambiental no Brasil”. A posição política do governo federal resulta nos dados de 2019 que mostram que foram desmatados na Amazônia 6.200 km², o que significou um aumento de 16% em relação a 2018. Até agora, em 2020 (de janeiro a abril) o desmatamento acumulado é de 1.073 km², um aumento de 133% em relação ao mesmo período de 2019, segundo dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto Imazon.

Outros biomas brasileiros também estão sendo devastados. Dados da SOS Mata Atlântica apontam para um total de 14.502 hectares desflorestados entre 2018-2019, um crescimento de 27,2% comparado com o período (2017-2018). O Cerrado, berço das águas, também segue sendo desmatado. Segundo o INPE, o desmatamento total do bioma chegou aos 6.484 Km² no país, entre 2018 e 2019, o equivalente a quatro vezes o território da cidade de São Paulo.

As famílias seguem abandonas pelo Incra-mt em situação de vulnerabilidade. Foto: CPT/MT

A “velha” grilagem no Mato Grosso é responsável por contribuir diretamente com 930,6 Km² (14%) do desmatamento do Cerrado no período 2018-2019.  Ao somar o desmatamento do Cerrado ao da Amazônia no estado, chegamos a um total de 2.560 Km², segundo levantamentos feitos pelo Instituto Centro de Vida.

As ações aplicadas por grileiros no estado são uma ameaça tanto para a biodiversidade, como também para as famílias rurais e povos tradicionais. Dados divulgados pela CPT mostram que em 2019 foram registrados, em Mato Grosso, 83 ocorrências de conflitos por terra e um total de três assassinatos. Das 83 ocorrências, cinco foram na Gleba Nhandu, no município de Novo Mundo. Ao todo foram registrados 340 ameaças ou tentativas de expulsão envolvendo grileiros de terra na área da Gleba.

Governo do Mato Grosso sugere caminho favorável à “velha” grilagem

A orientação de Jair Bolsonaro aos órgãos de fiscalização ambiental e agrária do país é seguida pelo Incra – MT com relação às determinações da Justiça Federal. O Congresso Nacional, no qual a Bancada Ruralista tenta aprovar o “PL da Grilagem”, incentiva o desmatamento e eleva os números de conflitos agrários no estado e no país como um todo. Esse cenário também é apoiado pelo governo estadual de Mato Grosso, um estado com grandes influências do agronegócio e concentração de latifundiários.

O governador do estado, Mauro Mendes (DEM), em recente reunião com representantes da sociedade civil que acompanham a situação das famílias do “Acampamento Boa Esperança”, afirmou que não tinha conhecimento dos conflitos na região. Ele disse que buscará medidas satisfatórias para solucionar os conflitos agrários no estado. Mas, o caminho apontado pelo governo até o momento para essa solução indica o favorecimento da “velha” grilagem.

O governador cogitou solicitar a transferência das áreas das Glebas Nhandú (211 mil hectares) e também da Gleba Gama (16 mil hectares) para que o estado de Mato Grosso possa realizar a Regularização Fundiária. Com isso, as decisões da Justiça Federal não teriam mais validade, pois o Poder Executivo começaria um novo processo. Essa manobra dificulta ainda mais que as famílias possam ter seu direito à terra e continuará aumentando os conflitos no campo.

Essa medida de transferência da Regularização Fundiária do âmbito federal para o estadual irá premiar os grileiros, garimpeiros e desmatadores do estado. Para a coordenação da CPT-MT essa atitude “demonstra a falta de sensibilidade e compromisso do governador com estas famílias acampadas, que buscam seus direitos garantidos na Constituição Federal”. A organização ainda alerta que tal medida de transferência destas glebas para o estado de Mato Grosso irá favorecer a regularização da grilagem de terras no estado, “ainda mais com o Projeto de Emenda Constitucional nº 28/2019, que propõe alterações nos artigos 327 e 328 da Constituição do Estado”, analisa a CPT-MT.

A PEC que tramita na Assembleia Legislativa de Mato Grosso deixa bem claro no seu Artigo 328 a premiação dos grileiros: “As terras públicas ocupadas por terceiros sem o título respectivo, possuidores de outro imóvel rural, poderão ser objeto de alienação até o limite de 2.500 hectares por interessado, independente do número de processos de regularização fundiária rural”. Essa mudança e flexibilização é muito parecida com a que é incentivada pelo PL da Grilagem, mostrando que a Bancada Ruralista de MT tem forte influência nas decisões do Congresso Nacional.

Essas ações por parte dos órgãos estaduais e a intenção do governador demonstram que a prioridade é seguir dando liberdade para que a “velha” grilagem siga impune no estado. Segundo avaliação da CPT-MT e o FDHT, os conflitos em torno do caso do “Acampamento Boa Esperança”, que se arrastam por quase duas décadas, só serão resolvidos com o cumprimento das decisões da Justiça Federal para a retomada desta área e quando “as decisões da Justiça Federal de Sinop forem cumpridas e as famílias assentadas. Além da investigação das denúncias dos crimes ambientais praticados pelo ocupante ilegal da área, Marcello Bassan, já tantas vezes denunciadas”, afirma a coordenação da CPT-MT.

* Caio Barbosa é da Assessoria de Comunicação da CPT Nacional

**Editado por Luciana G. Console