Artigo | Terra e trabalho no Plano Emergencial de Reforma Agrária Popular
Por José Ricardo*
Da Página do MST
A luta e a resistência dos povos do campo para não sair da terra nem perdê-la existe desde o dia em que os invasores colocaram os pés em nosso território. O domínio e a posse da terra faz parte da formação das classes sociais, do poder econômico e político do país. Para isso, as classes mais favorecidas dominaram e massacraram mais de 5 milhões dos povos originários que aqui habitavam, seguido por mais de quatro séculos de escravidão. Depois veio a proletarização, pauperização e o êxodo rural.
O processo de urbanização forçada, baseada na especulação imobiliária e na segregação social, origina a favelização, confinando a maioria do povo pobre e destituindo-a dos direitos fundamentais da moradia e da vida digna. Formas cruéis de exploração do trabalho e negação da vida para que os que mais precisam da terra pudessem ter acesso. Qualquer esforço em tentar compreender a história do Brasil, passada e presente, necessita da luz e evidencia aspectos que atentam para a questão agrária e agrícola, bem como suas relações e conflitos entre as classes que se enfrentam nessa árdua luta no campo.
Todas as formas de lutas, reações e resistências organizadas pelos povos em defesa da terra e do território no Brasil, desde a invasão colonial até os dias atuais, explicitam o caráter da injusta concentração e distribuição da terra. Leis, jurisdições, constituições, decretos e governos que sempre agiram para garantir, a todo custo, o direito ilegítimo de propriedade, posse e uso da terra para aqueles que sempre a tiveram como monopólio e expressão de poder político e econômico.
O Brasil ocupa hoje, segundo dados da Oxfam, o 5º lugar no ranking de desigualdades no acesso à terra. O coeficiente de Gini (índice estatístico que mede o grau de concentração ou de distribuição de terra no Brasil) sobre a concentração fundiária em 2006 (INCRA) registrava em 0,856, maior do que o registrado em 1920, período que havíamos recém saído do processo jurídico-formal da escravidão.
Segundo dados e pesquisas do Imaflora e do Geolab da Esalq/USP*), há em torno de 453 milhões de hectares de terras sob domínio privado, correspondendo a 53% do território brasileiro. Desse todo, só em propriedades acima de 2.500 hectares concentram mais de 230 milhões de hectares. A maior parte (165 milhões de hectares), destina-se à pecuária de criação extensiva e pastagens; outra, em mais de 65 milhões de hectares, destina-se ao plantio de commodities para exportação, o que tem multiplicado nos últimos anos sua área plantada, destinada principalmente para soja e cana, responsáveis por quase 80% da área. Outra parte, destinada ao que conhecemos como deserto verde, de plantios homogêneos de plantas para extração da madeira e celulose, sendo a segunda pauta de exportação do país, depois da soja.
De acordo com os órgãos já citados, destacam que essas grandes propriedades correspondem ao que seria o 12º maior território do planeta, caso fosse um país teria algo em torno de 2,3 milhões de km². Mais absurdo são os dados declarados em 2010: dos apenas 66 mil imóveis declarados que totalizam em torno de 175,9 milhões de hectares de terras improdutivas, o que corresponde também um país de dimensões continentais.
Com essas mesmas terras, se destinadas para a reforma agrária, seria possível garantir o assentamento de mais de 810 mil famílias, muitas hoje acampadas, morando em barracos, nas margens das estradas. Dos 27 estados da Federação, incluído o Distrito Federal, em 16 deles as terras já somam mais de 80% sob o domínio privado. A grande concentração de 46% das terras por praticamente 1% dos proprietários é síntese desse processo. As consequências desta concentração na questão agrária brasileira, têm sido imediata no aumento do preço da terra e no aumento da violência no número de trabalhadores e trabalhadoras assassinados.
É o modelo do agro-hidro-minério-tóxico-negócio, a expressão desse novo padrão de poder estabelecido no campo, na agricultura e no sistema alimentar. Ele provoca mudanças estruturais na forma de apropriação privada da terra e dos recursos naturais, na produção, nas condições de realização dos mercados, na composição das classes sociais, no perfil da estrutura do emprego no campo e nas tecnologias utilizadas.
A forma de associação e expressão do latifúndio que se “moderniza” em aliança com o capital financeiro, as empresas transnacionais, com apoio econômico, jurídico e político do Estado, sustentado ideologicamente pela mídia como “Pop”, “Tech”, “Tudo”.
Com as práticas recorrentes de desmonte das políticas públicas para o campo e a pequena agricultura, a pauta do atual governo neofascista, através de sua bancada da morte no Congresso Nacional, em conluio com esse modelo do capital na agricultura, buscam todo preço impor o Projeto de Lei 2633/2020, doando para os promotores da morte mais de 65 milhões de hectares de terras, principalmente na Região Amazônica e no Cerrado. São terras públicas, devolutas e da União, áreas de proteção e preservação, reservas, territórios dos povos indígenas, quilombolas, das águas e das florestas.
A consequência para nossos biomas e os povos através dessa medidas e suas flexibilizações das leis ambientais será mais desmatamento, queimada, agrotóxico, privatização e destruição da biodiversidade, expulsões, violência, aumento dos conflitos, desertificação, miséria e desigualdades no campo. Se aprovada, a lei será também uma forma de compensar, anistiar e incentivar os crimes do capital contra os mais pobres e necessitados em seus territórios.
Na contraofensiva desse modelo de desenvolvimento, há o projeto de agricultura camponesa e familiar, responsável pela produção de mais de 70% de todos os alimentos que chegam na mesa de todos os brasileiros e brasileiras. Esse modelo do capital não consegue fazer isso, pois toda a produção se destina à exportação ainda como matéria prima, in natura, atendendo o mercado externo e outra parte é retornada como importação na forma de alimentos enlatadas padronizados, impostos como base alimentar e nutricional, hoje dominados pela soja e milho prioritariamente, os chamados impérios alimentares.
A área de produção de alimentos básicos (arroz, feijão, mandioca) tiveram nos últimos anos uma redução de 5 milhões de hectares, entre eles arroz (38%), feijão (30%), mandioca (23%), trigo (23%). Entre 2003-2018 houve uma queda de 41% no consumo de arroz e feijão, por outro lado, um aumento de 56% no consumo de produtos pré-industrializados.
A luta pela terra demanda, agora, não apenas a defesa e garantia de um pedaço de terra para trabalhar, de produzir as condições de sobrevivência, lugar para viver bem e de reprodução da família. Ganha a luta outra natureza e conteúdo na disputa contra o inimigo, o capital no campo, precisa ser enfrentada como uma necessidade coletiva, transformada em luta pelo território, isto é vai além da terra, temos as sementes, a água com suas fontes e percursos, os minérios, a biodiversidade, a vida humana e suas formas de reprodução.
Hoje ainda somos muitos os despossuídos(as) da terra: indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais, atingidos por barragens, atingidos pela mineração, boias frias, arrendatários, meeiros, pescadores, pequenos proprietários, parceiros, desempregados, outros. Desprovidos do direito e acesso, de viver, trabalhar dignamente e produzir alimentos saudáveis.
Nesse momento de crise generalizada, a sociedade ganha, ainda mais, contornos dramáticos com o avanço e consequências da pandemia do coronavírus / Covid-19. Entre tantas situações, uma elas é a de fome e de miséria que a cada dia se alastra tantos nas cidades como no campo. Ousamos em nossa organização e como parte de nosso projeto de reforma agrária e agricultura popular apresentar uma proposta emergencial em defesa da vida e do povo brasileiro, como ferramenta para contribuir na resolução de alguns desses problemas durante e pós-pandemia.
É possível e em caráter emergencial o Estado arrecadar, sem custos, 6 milhões de hectares de terra, concentradas por apenas 729 empresas/famílias devedoras da União em mais de R$ 200 bilhões, garantindo de forma emergencial o acesso à terra e condições de produzir para as milhares de famílias acampadas, desempregadas e as que desejam voltar para o campo, hoje sem condições de morar e viver na periferia das cidades. É possível desapropriar de forma imediata milhares de hectares de terra que não cumprem função social, latifúndios improdutivos, também áreas próximas às cidades para facilitar a produção e assentamento de famílias trabalhadoras.
Estão parados na mesa do Governo Federal 66 projetos já prontos para serem pagos, desapropriando mais de 111 mil hectares de terra com capacidade para assentar mais de 3800 famílias. Outra forma, também possível, pode ser destinando terras públicas e devolutas existentes para assentamentos emergenciais. Há também, no âmbito estadual, formas dos governos realizarem desapropriação por interesse social, sendo possível criar leis e projetos estaduais que permitam arrecadar terra, bem como impedir os despejos e reintegrações de posse das famílias acampadas.
É possível também evitar que se aplique a proposta que busca privatizar a terra dos assentamentos pela garantia do título de domínio individual, que foi criada com a clara intenção de desestabilizar a organicidade e a atuação dos movimentos populares.
O eixo Terra e Trabalho, que compõe nosso Plano de Reforma Agrária Emergencial, convoca à luta nossos irmãos e irmãs do campo e da cidade, pela demarcação das terras dos povos indígenas, pela legalização das áreas dos quilombolas, das comunidades ribeirinhas e nativas. Que nesses territórios seja garantida sua integridade, preservação, denunciando violações, agressões, mortes, expulsando invasores, grileiros, madeireiros, garimpeiros que exploram e devastam seus territórios e a natureza.
Enquanto vamos consolidando no campo e na cidade o entendimento e as formas de aplicar o plano, seguimos em nossas trincheiras de luta pela terra nos acampamentos produtivos espalhados no país. Essa forma de luta de trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra foi se consolidando como referência para quem quer melhorar de vida e produzir com dignidade sua existência na terra.
O acampamento pressupõe não apenas o ingresso em uma luta, mas o rompimento com uma posição passiva frente à situação de exploração, pobreza e marginalização vivida pelo Sem Terra. A ruptura também faz referência à experimentação de uma nova situação de vida, com a possibilidade de trabalho digno, sem exploração e sob seu controle, aprendizagem de uma forma de convivência mais coletiva e comunitária, fazendo com que nos reconheçamos como sujeito coletivo e portador de direitos.
Os assentamentos, como fruto da luta pela terra, representam um acúmulo de força social à luta política para as transformações sociais mais profundas, constituindo-se em territórios de resistência. Desenvolvem permanentemente uma nova matriz produtiva e indutora de processos tendo como base a agroecológica: produção de alimentos saudáveis; atendimento ao consumo local; diversificação da produção; cooperação; preservação dos recursos naturais; geração de renda e trabalho para todos os membros da família. A terra produz alimentos que promove o consumo consciente em uma relação permanente entre o campo e a cidade.
Para todos e todas, o desafio é a discussão sobre a função social da terra, ela que é mãe, casa e bem comum, direito sagrado e dom da natureza, terra de irmãos, lugar de vida, trabalho, luta por dignidade das pessoas que exigem serem reconhecidas como seres humanos. O cuidado com a terra é uma das missões que nos cabe por sermos suas guardiãs e seus guardiões, com o desafio de construir outras relações, funções e cuidados, estando no centro a vida, o ser humano com seus direitos, crenças e suas relações. Nós por essa terra fazemos guerra, porque nascemos nessa terra, não dar para viver sem ela e por isso fazemos guerra. Por isso ela é sagrada, nas mãos de quem nela trabalha, ela é suor, vida, trabalho e terra, o direito a ela é de quem trabalha.
A intenção desse Eixo é contribuir com a inquietação individual e coletiva, levantando questões, realizando debates, e construindo condições para nossa luta e apontando respostas às necessidades imediatas, urgentes, e estruturais para a situação do povo brasileiro.
Desejamos bons estudos e muitas construções coletivas!
* da Coordenação Nacional do MST e do Setor de Formação
**Editado por Fernanda Alcântara