CRÔNICA | O que vi na Portelinha foi mais que uma ação solidária
Por Regis Luis Cardoso
Da Página do MST
Através do Desafio da Solidariedade, que uniu o campo e a cidade na periferia de Curitiba, caminhei pela comunidade localizada no Santa Quitéria. Lá tive a oportunidade de ouvir histórias de alguns moradores
Cheguei lá junto com o alimento que sustenta e o gás que aquece.
Minto! Eu fui com eles.
Saí com o comboio lá do Xaxim, ao lado de carros, caminhões e ônibus. Todos em fila rumo ao início dos atos de solidariedade na periferia de Curitiba.
Essa ação começou um dia antes, sexta-feira (12), com o descarregamento dos alimentos vindos das hortas das 370 famílias da comunidade rural Maila Sabrina, em Ortigueira, região norte do Paraná.
A rapaziada ficou até três da manhã organizando as entregas no barracão do MST no Xaxim.
Quando sábado amanheceu e se apresentou ensolarado, como em poucos momentos daquela semana, o pessoal se organizou pra ‘rasgar’ Curitiba.
O destino: Ocupação da Portelinha, Santa Quitéria.
Nas ruas da capital paranaense as faixas do MST e do Sindipetro nos caminhões contrastavam com o laranja do busão da FUP; que é imponente. Aliás, não tem como não gostar daquele cenourão em forma de ônibus, é carismático.
Obviamente que no trajeto percebi uns e outros “cidadãos de bem” esbravejando palavrões contra o comboio solidário.
Sim! Teve gente que baixou o vidro do carro pra xingar. Algo que diante da situação não passou de um pequeno ruído.
Mas teve…
Enfim… a “caravana da coragem” fez os carros, caminhões e ônibus se agigantarem na “república de Curitiba”.
Chegada
O momento que senti, de verdade, o tamanho da ação foi quando as entregas chegaram ao seu destino.
Ali parei, ao pé de um barranco de chão batido, e acompanhei os trabalhadores do MST, os petroleiros, o Movimento de Organização de Base e a Associação de Moradores entregando alimentos, gás de cozinha e máscaras às famílias da comunidade.
Eram camponeses e operários entregando suas próprias produções. Tornaram real o sentido da solidariedade de classe.
O curioso é que enquanto observava as pessoas pegando as doações pensava: “de onde vem?”, “pra onde vão?”, “onde vivem?”, “como vivem?”, “qual a eficácia dessas doações?” e por aí vai…
A primeira pessoa que respondeu essas dúvidas foi Jô, como é conhecida. Ela faz parte da Associação de Moradores da Portelinha.
Jô desceu uma ruazinha, um “desvio” da rua principal da comunidade, para mostrar as doações dos alimentos.
Na sua casa, logo de cara, estava na mesa a cesta doada pelo MST. Ali tinha o arroz, o feijão, a mandioca, os legumes, as frutas e as hortaliças que ganhou.
Aí Jô começou a descascar umas mandiocas e botar água pra ferver. É pra onde vai o alimento fruto da reforma agrária.
A partir daí ela começou a falar sobre como é morar na Portelinha.
Ela revelou que a primeira casa da comunidade foi a dela e que vive ali desde o início, há 13 anos. Hoje moram 320 famílias por lá.
“No início o encanamento era de mangueira preta e nossa luz era com fio de telefone”, explica.
Durante o papo ela ficou o tempo todo de máscara. Retrato do “novo normal”, como dizem. Disse que a pandemia afetou muito os moradores da ocupação, principalmente com o desemprego.
Outra consequência da crise sanitária são as crianças sem aula e passando o dia todo em casa. “Comem mais”, comenta Jô.
A Covid-19 atinge em cheio o orçamento extremamente limitado de quem vive em vulnerabilidade social e mostra a importância da merenda escolar.
Gás
Quanto mais gente em casa, mais comida. Consequentemente se aumenta o consumo de gás de cozinha. Uma coisa que acontece muito na Portelinha é o alimento na mesa das famílias, mas falta o outro item essencial.
Jô conta inconformada que o preço do gás está um absurdo, ainda mais pelo fato da refinaria da Petrobrás ser próxima da região onde mora (Refinaria Presidente Getúlio Vargas – Repar, em Araucária).
Ao ser questionada sobre “como as famílias fazem quando não tem gás?”, ela revela:
“A maioria estava cozinhando na trempa”.
“Trempa? O que é isso?”.
Nunca tinha escutado essa expressão.
A moradora chama de “trempa” o improviso dos moradores para aquecer o alimento. Quem não têm gás e nem lenha pega tijolos pra fazer o fogo. Depois colocam a panela em cima.
Tanto esse método como o próprio fogão à lenha são responsáveis por vários incêndios nas casas da comunidade.
“Olha gente, o gás foi uma benção. Nós estávamos com 320 famílias e mais de 100 não tinham gás e não sabiam quando iam ter, porque a situação não está fácil” – Jô.
Descaso público impede cadeirante de se locomover
Após sair da casa de Jô havia um casal parado em frente a outra residência. Uma senhora tranquila e seu marido cadeirante. Eram dona Maria de Fátima Sales e seu José Carlos de Oliveira.
Uma troca de olhares, uma pergunta aqui e outra ali, chamaram pra entrar. O casal hospitaleiro também mora desde o início na ocupação.
Vieram de Maringá, noroeste do Paraná, em busca de emprego. Ela explica que hoje eles têm água e luz, mas nem sempre foi assim. Já a pavimentação em frente à sua casa foi custeada pelos próprios moradores.
Maria está empregada, trabalha na empresa da filha. A outra renda do casal vem da aposentadoria de José Carlos. Ele era segurança até que…
“Fui ‘tirar’ um serviço no Caiuá (bairro de Curitiba). Meu patrão veio me pegar para ir nesse trabalho. Ele estava alcoolizado”, relembra.
O resultado foi um grave acidente. Eles bateram num ônibus. José quebrou a perna, teve que amputá-la, também fraturou a bacia, furou o pulmão… enfim… “nasceu de novo!”.
Conseguiu se aposentar. Há oito anos recebe um salário mínimo do INSS, mas ainda não se acertou com seu ex-patrão. De acordo com o morador o processo está na justiça.
E lembra que falei no início do texto sobre um barranco de chão batido? Então, essas irregularidades são visíveis nas vias da comunidade. Agora imagine ser cadeirante nessa realidade:
“É difícil, porque é muito buraco, muita pedra. Eles (do poder público) poderiam arrumar pelo menos as ruas na entrada, dos dois lados, porque faz oito anos e quatro meses que eu só vou até a esquina e volto”, explicou José.
Diferentes classes sociais na comunidade
Após a conversa com o casal hospitaleiro, novos rumos.
Sair do trajeto tradicional da ocupação aconteceu naturalmente, sempre em companhia do pessoal do MST e do Movimento Organização de Base (MOB).
Ao descer a rua principal da Portelinha é preciso atravessar uma via rápida de asfalto para se chegar ao outro acesso. Ali é mais visível a ausência de saneamento básico e todos os problemas gerados pela extrema pobreza.
Estávamos nessa área para encontrar “Dona Maria”, que tem no fogão à lenha a principal fonte de aquecimento do seu alimento.
No caminho surge outra personagem.
Trata-se de Margarete Veloso, também moradora antiga da ocupação. Ela contou um pouco da sua rotina em tempos de pandemia, que trabalha na rua e é catadora de papel.
Tem uma vida de reconstrução. Conta que certa vez saiu pra trabalhar e já no período da tarde recebeu uma ligação:
“Sua casa está pegando fogo”, ouviu.
Margarete diz que foi uma fiação de luz. Ela brinca que “tinha um gatinho muito safado”. Não julgo. Também tenho “gato”. Socialmente aceitável. São aqueles aparelhinhos via satélite com uma pancada de canais disponíveis. Um privilégio.
A moradora também comenta que a ação de solidariedade dos petroleiros e do MST foi muito importante. Como trabalha na rua e a maioria das empresas estão fechadas, é obrigada a procurar ainda mais pelo ganha pão.
Para ela é quase uma ofensa quando dizem: “fique em casa”.
“Eu fico brava. Por que a chefe da família na minha casa sou eu e as contas? Se eu não for pra rua minha família passa necessidade” – Margarete.
Energia
Foi durante a conversa com Margarete que finalmente apareceu dona Maria Dolores de Paula.
Após uma nova caminhada pelas vielas da “parte baixa” da Portelinha, ela abriu as portas da sua casa.
Logo de cara, Maria chamou todo mundo pra entrar. Obviamente relutamos. Antes precisávamos tirar os calçados. Também mandou as crianças vestirem suas máscaras. Os pequenos estavam sentados no sofá assistindo TV.
A casa é bem simples. No mesmo ambiente da sala está a cozinha. Ao lado dois quartos. O banheiro fica pra fora.
Logo avistamos o fogão à lenha. Maria é quem cata as madeiras pra fazer o fogo. Seja na rua ou em construções na própria comunidade.
Ela conta que estava sem gás há uma semana e que um botijão dura em média um mês. Ali vivem nove pessoas.
Funcionária de uma empresa terceirizada, faz serviço de limpeza e durante a pandemia teve que escolher: ou ficava com o vale-alimentação ou ficava com o emprego.
Se manteve no trabalho.
Todo dia sai bem cedinho e volta no fim da tarde, como diversas chefes de família da Portelinha. Porém, ao chegar, ela consegue cuidar de seis netos e ainda usar sua Singer!
Trata-se de uma bela máquina de costura que fica guardada num cantinho especial em seu quarto. Ela a buscou, colocou na sala e explicou que é ali que faz suas máscaras de tecido para doar na comunidade.
“Meu sonho toda vida foi ajudar o próximo. Só que eu gostaria de ter mais pra poder ajudar. Mas deus dá força pra gente continuar lutando. Não dá pra parar”, relata.
No fim do papo, ela ofereceu um cafezinho para todos ali.
Enquanto saia da comunidade, uma coisa que Maria disse ficou na minha cabeça:
“O pessoal tem que dar mais valor ao que ganha e ao que faz, porque muitos não sabem valorizar. E ser mais unido pra poder continuar”.
Isso ficou gravado. Porque trata-se de uma consciência de classe espontânea. Uma atitude muito presente na comunidade.
No fim, por mais distante que pareça, camponeses, operários e moradores das comunidades periféricas falam a mesma língua: união.
*Editado por Fernanda Alcântara