Se acabarmos com os agrotóxicos, o mundo passa fome?

Islândia Bezerra e Antônio Marcos Vignolo debatem relação entre o uso de agrotóxicos e produção de alimentos

Islândia Bezerra e Antônio Marcos Vignolo falam à Campanha Contra os Agrotóxicos
Foto: Divulgação

Por Angélica Almeida
Da campanha contra os agrotóxicos

A pergunta unânime nos ambientes de discussão promovidos pela Campanha Permanente foi a reflexão central da nossa live na última quarta-feira, 17 de junho. Afinal, sem o uso de agrotóxicos o mundo será destruído pela fome?

Para abordar o tema, contamos com a contribuição de Islândia Bezerra, nutricionista e presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia, e Antônio Marcos Vignolo, biólogo especialista em sistemas agroecológicos e assessor técnico da Cootap, uma das cooperativas responsáveis pela produção de arroz orgânico do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Confira como foi o diálogo!

O buraco é mais embaixo…


Islândia Bezerra demarcou a necessidade de abordar o ato de se alimentar em sua complexidade, o que requer pensar não só a frequência cotidiana que cada ser vivo necessita se nutrir, mas também como se estrutura o sistema produtivo, em um horizonte de concentração dos meios de produção e de incentivo não ao consumo de comida de verdade, mas de “produtos alimentares” não saudáveis, a exemplo dos ultraprocessados.

Concordando com a perspectiva, Antônio Marcos contextualizou que fatores sociais, como a desigualdade no acesso aos alimentos produzidos, são determinantes para a fome, por isso, não há como se pensar na garantia do direito à alimentação dissociada da democratização dos bens naturais necessários para a produção de alimentos, como a terra e a água.

Para o biólogo, é inquestionável a capacidade da produção orgânica e agroecológica de alimentar o mundo, desde que se garanta condições de produção, o desenvolvimento de pesquisas e tecnologias não em torno dos interesses do agronegócio, mas da agroecologia, a proteção jurídica e ambiental e o incentivo econômico para produzir alimento de qualidade para todos. Uma mudança de modelo produtivo que alcance “a todos os trabalhadores e não só a uma elite que detém recursos financeiros”.

“É uma falácia dizer que se não tiver agrotóxicos, defensivos agrícolas, nós teremos fome. Nós já temos fome!”

Islândia Bezerra

Islândia evidenciou o falso pressuposto de que os agrotóxicos foram capazes de acabar com a fome e de que sem eles é impossível se produzir: “A Revolução Verde trouxe o uso de ‘defensivos’ que, na verdade, são agrotóxicos, são venenos, com o argumento de que acabaria com a fome no mundo, isso no final dos anos 1970”. Embora com o uso maciço de veneno para a produção de commodities e com todo o investimento científico e tecnológico, a fome não acabou, enfatizou a pesquisadora.

Com o argumento de elevação da produtividade, o que se assistiu foi a concentração de terras, o êxodo rural e a desconexão com o ato de se alimentar. Para ela, é fundamental olhar para as consequências do modelo produtivo e também saber a origem dos alimentos consumidos, o modo de produção e quais efeitos decorrentes, tendo em vista as questões sociais e ambientais nele implicados: “A gente precisa pensar o ato de comer, o cotidiano de se alimentar, de uma forma muito complexa. Não é só ir ao mercado, não é só pedir pelo delivery. Há todo um circuito que empobrece, que contamina, que expropria. Por que a gente teve junto com o início da Revolução Verde, junto com essa imposição desse modelo tecnológico, um altíssimo êxodo rural? ”, questionou.

Este olhar crítico precisa ser fomentado também pela ciência da nutrição, diante da lacuna na formação de seus profissionais, analisa a pesquisadora. “A gente tende a ter uma formação muito técnica, com um viés mais biologicista, preocupada em entender o organismo, como os nutrientes agem, quais são os alimentos fontes, e esquece muitas vezes de conhecer o modelo de produção”. O que impede uma visão mais abrangente sobre as condições nas quais o alimento foi produzido, a existência de trabalho escravo e desmatamento, exemplificou.

Conhecer as origens do que se come e do que se financia ao comer…


Antônio Marcos lançou o convite para que a população conheça as unidades de produção agroecológica espalhadas pelo país, para verificar, na prática, o êxito da proposta. Defendeu que se houvesse superioridade produtiva dos agrotóxicos e da adubação química não se via o avanço do agronegócio em todos os biomas do Brasil, chegando à Amazônia e ao Matopiba, com intensa pressão para se diminuir áreas de preservação permanente e reserva legal e invadir mais territórios.

O especialista relembrou também que as questões ambientais não são inimigas da agricultura familiar, uma vez que a produção agroecológica é guiada pela lógica de manutenção dos recursos naturais com maior qualidade e equilíbrio possíveis. Por meio de uma série de tecnologias, técnicas e práticas, como a adubação verde, as barreiras vegetais, a recuperação de solos degradados, a produção de compostos orgânicos e biofertilizantes, é assegurada a produção orgânica. Mas, como enfatiza, o horizonte que se deseja não é a existência de um “pacote agroecológico” como foi o modelo homogeneizante da Revolução Verde, mas que haja uma apropriação das técnicas pelas comunidades, de acordo com suas necessidades, para se alimentarem e alimentarem o mercado consumidor com autonomia.

O biólogo defendeu que a produtividade não pode ser dissociada da sustentabilidade, da capacidade de se conservar os bens naturais e produzir no mesmo ambiente nas próximas gerações, e questionou a insustentabilidade do agronegócio: “Se a gente fosse colocar no preço dos produtos o que se chama de externalidades, tudo o que ela causa de malefício, pra aquele ambiente, pro solo, pra água, pras próprias comunidades… Hoje tem agrotóxico sendo detectado no leite materno, nas redes de água públicas… Se a gente for colocar o preço disso no produto, não tem como fazer com que ele seja viável do ponto de vista econômico, ambiental e social. Quanto que vale o Cerrado protegido? A Amazônia protegida? A Caatinga? Então, se a gente fosse valorar isso do ponto de vista econômico, não se plantaria essas culturas porque todo debate nesses cultivos vêm no sentido de valorizar o capital”.

O biólogo contestou também outros fatores de barateamento de custos do agronegócio, como os sucessivos aportes de recursos governamentais, isenções de impostos e substituição de trabalhadores: “Do ponto de vista agroecológico, você precisa de gente. Precisa de pessoas observando, do agricultor cuidando, fazendo as atividades que em uma lavoura de soja ou de arroz convencional uma pessoa cuida de dois mil hectares, com um padrão só”.

Para Islândia, é fundamental que políticas públicas de redução de agrotóxicos e de transição agroecológica sejam executadas, possibilitando uma progressiva transformação do modelo produtivo, tendo em vista que não vamos saltar de país dependente de agrotóxicos para o país agroecológico “num passo de mágica”, mas é urgente continuar avançando na construção da agroecologia em suas múltiplas dimensões e campos, com coerência entre teoria e prática.

Confira o debate completo, que contou também com reflexões sobre o fundamental papel das mulheres na transição agroecológica e na produção orgânica, a experiência do arroz e das hortaliças certificadas do MST e o processo de certificação orgânica.