Celso Furtado: base para se pensar um novo projeto de país
Por Marina Duarte de Souza
Do Brasil de Fato
Celso Furtado (1920-2004) é reconhecido mundialmente como um dos maiores economistas brasileiros. Dedicou sua vida a entender o Brasil e a produzir projetos de transformação do país. Hoje, 26 de julho, um dos mais destacados intelectuais ao longo do século XX, completaria 100 anos.
Criador de uma obra inovadora com uma leitura contemporânea das contradições do capitalismo, o economista, nascido na cidade de Pombal, na Paraíba, foi o único brasileiro indicado ao Prêmio Nobel de Economia, em 2013, e é dono de uma biografia com mais de 30 livros, em que se debruça na investigação da mecânica do subdesenvolvimento do país.
Para o professor de história econômica e economia brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), Alexandre de Freitas Barbosa, o intelectual está no mesmo patamar dos grandes intérpretes do Brasil dos anos 1930, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freire e Caio Prado Jr, e vai além, visto que Furtado “compreende esse processo atuando sobre ele”.
Ao longo da sua carreira, que se inicia em meados dos anos 1940, a originalidade técnica também perpassa a sua atuação prática. Furtado ultrapassa os limites da academia e se torna um gestor público, que esteve em cargos políticos e técnicos centrais para o desenvolvimento do país.
Ele é responsável pela criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene),que entra como meta no governo Juscelino Kubitschek, depois integra também o governo de João Goulart e na condição de Ministro do Planejamento. No cargo, apresenta ao país o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social. Leciona em universidades do exterior e participa da transição democrática e da estruturação do Ministério da Cultura.
Passados mais de 15 anos de seu falecimento, em 2004, para especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato sua produção, ideias e trajetória continuam vivos na sociedade brasileira.
Teoria do subdesenvolvimento
O nordestino se formou em Direito no Rio de Janeiro, serviu na Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), doutorou-se em Economia na França no pós-guerra e, em 1949, mudou para Santiago, no Chile, para integrar os quadros da recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão da ONU voltado para o desenvolvimento regional.
Durante oito anos na Cepal, que era o centro de debates sobre os aspectos teóricos e históricos do desenvolvimento da época, Furtado sedimenta as bases de novas concepções sobre o desenvolvimento econômico e subdesenvolvimento por meio de um pensamento próprio ao entender economia com uma visão interdisciplinar e humana.
Em um período que tinha poucos estudos acadêmicos sobre a natureza do subdesenvolvimento, por volta de 1950, Furtado denuncia que o subdesenvolvimento não era uma etapa do desenvolvimento, ou seja, os países não são “em desenvolvimento” ou “atrasados”.
A economista e doutoranda em Desenvolvimento Econômico na Unicamp, Juliane Furno, explica que ele revela, na verdade, que o subdesenvolvimento é um processo estrutural específico, não uma fase pela qual tenham passado os países hoje considerados desenvolvidos, e que pode ser rompido.
“O subdesenvolvimento por ser uma condição estrutural para ser rompida exigia transformações muito significativas na sociedade e na economia brasileira, que partiu na tese dele, mais do que elementos quantitativos e econômicos. Não era um problema de planejamento econômico ou de técnicas econômicas, mas era um problema fundamentalmente político. Exigia uma postura, uma vontade política coletiva nacional de empreender transformações estruturais na realidade brasileira para superar essa posição de subdesenvolvimento, que não seria superado pelas livres forças de mercado”, explica ela.
Nesse sentido, para a economista a grande contribuição de Furtado foi estabelecer, por meio de uma nova teoria econômica e histórica, que para superar o subdesenvolvimento precisa ter duas coisas fundamentais, um Estado nacional comprometido com os anseios populares brasileiros nacionais e o processo de industrialização acelerado, que precisa tirar o país da condição de exportador de produtos primários, que participa do mercado internacional só pela importação da demanda final de bens industriais.
“Essa foi a grande contribuição dele, apontar que precisa ter um processo, sim econômico, de transformação estrutural da base de oferta de mercadorias, então precisa ter uma indústria para gente não ser refém das trocas desiguais do mercado interno ou dos ciclos econômicos, mas precisa ser coordenado pelo Estado. E, esse Estado precisa ao mesmo tempo que desenvolve uma diversificação do ponto de vista econômico, também fornece estruturas capazes de construir um mercado interno de consumo, de desconcentrar renda, de ter um sistema fiscal tributário, que contribua para o desenvolvimento e investimento e não para desoneração e favorecimento dos setores empresariais privados”, destaca Furno.
Estas ideias foram reunidas no lançamento, em 1959, de uma das obras mais consagradas da sua carreira, o livro “Formação Econômica do Brasil”. Um clássico da historiografia econômica brasileira, Furtado procurou descrever a evolução da economia brasileira, dentro do paradigma latino-americano, pela análise da estrutura produtiva de cada período histórico da sociedade brasileira – daí a famosa denominação “estruturalista” -, dando ênfase em conceitos analíticos especificamente “cepalinos”, tais como a visão da economia internacional baseada nas relações entre países centrais, industrializados, e países periféricos, agrícolas.
“Esse é um livro não só sobre o passado, mas também sobre o presente e o futuro. Ele quer mostrar a cadeia de processos, que trouxe o Brasil para os anos 1950, que tá se industrializando e como ele pode decodificar esses processos por meio do que ele vai chamar de subdesenvolvimento, que merece uma interpretação autônoma para formar uma consciência voltada para o desenvolvimento nacional”, afirma o professor do IEB.
Barbosa explica que Furtado não vai formular uma nova teoria econômica, mas ele vai mergulhar com objetividade naqueles elementos que conformam as estruturas não só econômicas, mas também políticas e sociais.
“Então a concentração da propriedade de terra para ele é um elemento que tem que estar na equação dele, coisa que os economistas sempre colocavam de fora. A forma de inserção no sistema internacional, por meio do comércio, ou depois por meio da entrada das empresas transnacionais, acaba acertando a possibilidade de internalizar esses centros de decisão. Então ele de maneira objetiva, vai tentar criar categorias para entender o funcionamento dessa economia e dessa sociedade subdesenvolvida”, pontua ele.
Não a toa, a obra, complementada em 1961 pela produção de “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento”, também se debruça em apontar caminhos e retratar possibilidades de intervenção racional do Estado no processo de desenvolvimento econômico, sobretudo, a partir de reformas estruturais do país. Não significava uma transformação do sistema produtivo por completo, mas um redirecionamento da política econômica e social do país que levasse em conta o verdadeiro desenvolvimento social.
Neste momento, ficava explícito que teoria, história e projeto de transformação do país eram partes de uma mesma interpretação e de uma utopia de Brasil.
Da teoria à prática
Celso Furtado vai direcionar o Estado para esta posição estratégica quando primeiro assume o cargo de diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) do governo de Juscelino Kubitschek, e depois cria o primeiro órgão do país com objetivo de pensar o desenvolvimento do nordeste, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), que entra como meta especial do governo Kubitschek.
Mas, principalmente, com o governo de João Goulart, em que Furtado é nomeado o primeiro Ministro do Planejamento da história e fórmula o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, em 1962. O plano estabelecia as famosas reformas de base, agrária, tributária e social como uma condição fundamental para superar o subdesenvolvimento.
Mesmo não sendo uma transformação do sistema produtivo, foi o suficiente para que a elite brasileira se sentisse ameaçada e colocasse o governo na mira do golpe civil-militar de 1964.
Furtado, que não era socialista, estava na lista dos cem primeiros banidos do regime do golpe no Brasil, como conta Juliane Furno.
“Ou seja, a própria ditadura militar identificava o quanto as ideias do Celso Furtado eram perigosas, do ponto de vista da desestruturação do status quo e dos sistemas de privilégios econômicos que sustentou a classe econômica brasileira, mais até do que os que teorizaram sobre o socialismo”.
Para Barbosa, o fato evidencia que Furtado era pensador nacionalista e estruturalista “contra-hegemônico” e mesmo com a derrota deste projeto fundamentado na obra “A pré-revolução brasileira”, o intelectual continua se adaptando e perseguindo a “missão de acabar com o subdesenvolvimento do país”, como definiu o professor.
“O objetivo dele é a partir do pensamento, interferir no processo de construção da nação e a todo momento ele está sempre revendo a posição dele e as engrenagens mais amplas de funcionamento do desenvolvimento do Brasil, do mundo, da América Latina e do nordeste.”
No exílio até a anistia em 1979, Furtado se dedicou a atividades de ensino e pesquisa nas universidades de Yale, Harvard e Colúmbia, nos EUA, de Cambridge, na Inglaterra, e da Sorbonne, na França, e a continuidade na produção da pesquisa sobre o subdesenvolvimento do país.
“Isso é um pouco o segredo do Furtado, ele está a todo momento formulando categorias e interpretando processos para interferir em condições que estão sendo definidas naquele próprio momento. E, às vezes, uma vez definidas, ele tem que refazer toda sua estrutura argumentativa”, destaca Barbosa.
Como ele faz, por exemplo, em “Dialética do Desenvolvimento”, em que após o golpe, percebe que o Estado não pode tudo, que existem acordos de classe que acabam não sendo favoráveis para esse desenvolvimento nacional ou em “Mito do desenvolvimento”, em 1974, onde constata que a industrialização na periferia não leva a formação de sistemas econômicos nacionais, como havia imaginado antes.
Depois do retorno ao país, filia-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), em 1981. Participa da Comissão do Plano de Ação do governo Tancredo Neves, em 1985, e logo em seguida é nomeado Embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Europeia, mudando-se para Bruxelas. De 1986 a 1988 foi ministro da Cultura do governo José Sarney, quando criou a primeira legislação de incentivos fiscais à cultura. Nos anos seguintes, retomou a vida acadêmica e participou de diferentes comissões internacionais.
Ideia viva
Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1997, as ideias de Furtado permaneceram presentes na academia, na política, no debate público.
Com seu falecimento, em 2004, foi criado o Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, proposta encabeçada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, instituição responsável pela inauguração da Biblioteca Celso Furtado, contendo os 7542 livros que pertenceram ao autor, e também, pela publicação semestral, Cadernos do Desenvolvimento. Além de outros textos de Furtado, o mais recente deles Diários Intermitentes – 1937-2002 (Companhia das Letras), organizado pela jornalista Rosa Freire, viúva do econimista.
“Furtado não dava receitas meio acabadas. Mas a construção de identificar do diagnóstico que ele fez dos problemas brasileiros, da característica do subdesenvolvimento, do papel dessas reformas estruturais, com certeza, foi importante”, enfatiza Juliane Furno.
De acordo com Barbosa, esta metodologia é o grande legado que faz com que Celso Furtado não seja um autor do passado, mas um autor cada vez mais atual e “sempre presente nas tentativas da gente encontrar um projeto de Brasil”.
“Ele nos oferece esse método histórico estrutural de acompanhar mudanças econômicas, sociais e políticas ao mesmo tempo que olha para o que acontece lá fora, porque a gente não tem plena autonomia por conta da dependência e do subdesenvolvimento”, declara ele.
Não à toa, o celebre intérprete do país ainda é uma referência dentro e fora da academia, seja pela permanente presença nas cabeceiras de economistas e cientistas sociais, seja como objeto de pesquisa ou pensador do país.
Para os especialistas a visão de Furtado, deixa pistas para que toda uma nova geração de pesquisadores, intelectuais, militantes dos movimentos sociais e políticos possam conjuntamente assimilar o método e construir uma nova utopia. Assim, suas ideias seguem nos provocando a pensar num projeto de país:
“A primeira condição para libertar-se do subdesenvolvimento é escapar da obsessão daqueles que se auto intitulam desenvolvidos, é assumir a própria identidade na crise de civilização que vivemos, somente a confiança em nós mesmos poderá nos restituir a esperança de chegar um bom corpo”, escreveu Celso Furtado na obra “ Em busca de um novo modelo”.
Edição: Fernanda Targa