Comunidade de migrantes venezuelanos e indígenas sofre ameaça de despejo

Carta da comunidade KA’UBANOCO fala sobre situação da comunidade e os efeitos do despejo em plena pandemia

Da Página do MST

A Operação Acolhida, do Exército Brasileiro, anunciou no dia 17 de setembro a ordem de despejo em massa de comunidade KA’UBANOCO, formada por migrantes venezuelanos, indígenas e não-indígenas.

Localizada na cidade de Boa Vista, em Roraima, o despejo vem em meio à pandemia do coronavírus e ameaça a saúde de mais de 800 pessoas de várias idades. A determinação obriga as famílias a desocupar totalmente o espaço até 28 de outubro, e poderá conter força policial.

A comunidade KA’UBANOCO é a única ocupação autogerida por migrantes em Roraima. Com o despejo coletivo, a alternativa apresentada foi realocar as mais de 850 pessoas para abrigos geridos pelo próprio Exército, que já se encontram superlotados e com perigo de contaminação em massa de COVID-19.

Sobre a comunidade

As famílias que formam o KA’UBANOCO vivem há quase dois anos no espaço que abrigava o antigo Clube dos trabalhadores, abandonado há anos em bairro periférico da cidade. Os comunitários formam uma organização inter-étnica e se recusam em deixar o espaço sem uma consulta livre, prévia e informada.

“Em consenso acreditamos que um espaço como esse é bem melhor que um abrigo, pois todos nos sentimos livres para as tomadas de decisões, para criar normas que norteiam nossa vida; normas essas que são assumidas, respeitadas e vividas por todos, somos uma comunidade”, afirma líder indígena do KA’UBANOCO.

Confira abaixo a nota da comunidade sobre o despejo:

Boa Vista, 16 de setembro de 2020

COMUNIDADE KA’UBANOKO

A Comunidade imigrante intitulada KA’UBANOKO, (Meu espaço para dormir), endereço no bairro Jóquei Clube, rua Topázio, Conjunto C Servidor no 125, na cidade de Boa Vista. É conhecido como “antigo Clube do Trabalhador”.

Apresentamos o espaço não como uma ocupação, e sim uma comunidade organizada onde nós mesmos tentamos ter uma vida digna. A economia crioula funciona da seguinte maneira: as pessoas saem às ruas à conseguir dinheiro, recolher latas, ferros para vender. Alguns têm seus próprios empreendimentos como: fabricação de sandálias, reciclagem, vendas de verduras, corte de cabelo, manicure, artesanato, vendas de comida rápida dentro e fora da comunidade.

A princípio, Ka’ubanoko era uma ocupação. Quando chegamos aqui, este local, a pesar de ser um espaço público, estava totalmente abandonado e servia de esconderijo para pessoas e grupos vinculados a temas de droga e delinquência. Nós ocupamos o lugar pacificamente, fizemos uma limpeza de todo o ambiente e o tornamos lar para nossas famílias, recuperando a função pública que este local tinha perdido, o que foi reconhecido pela vizinhança.

Agora, nós criamos uma comunidade onde temos aprendido a dividir
tarefas e respeitar nossas diferencias étnicas (Indígenas e crioulas). Temos a liberdade de nossas culturas e religiões (cultos, missa), onde cada grupo pratica sua fé de forma pacifica e harmônica. Juntos superamos o maior obstáculo que a vida já apresentou-nos. Com medo e temor, sofrendo o preconceito, sozinhos, buscamos nosso espaço, buscamos entre nós manter viva a esperança que tanto precisamos para encarar um novo dia.

Aqui temos recebido apoio de ONGs, mesmo em uma vida precária, consideramos um bom lugar para iniciarmos nossa integração ao Brasil e viver de maneira mais digna. Somos hoje 506 pessoas crioulas, vivendo a mais de um ano e seis meses em Ka’ubanoko. Estamos dispostos a aprender com os desafios da vida neste país, sem que tenhamos um tratamento que nos torne vítimas de preconceito, algo que já existe.

Em consenso, todos acreditam que um espaço igual a este (Ka’ubanoko) é bem melhor que em um abrigo, pois aqui todos sentem-se livres paras tomadas de decisões, criar normas que norteiam nossa vida cotidiana, normas estas que são assumidas, respeitadas e vividas por todos. Ao ouvir companheiros que já viveram em abrigo, que hoje vivem em Ka’ubanoko, concluímos que os abrigos não oferecem as condições necessária que se precisa para viver.

É verdade que lá, é garantido a alimentação e a segurança, contudo existe outros fatores que são fundamentais para uma pessoa. Precisamos de um espaço que nos dê liberdade para usar a eletricidade; preparar nosso próprio alimento; possibilite a privacidade; que respeitem as lideranças; espaço que garantam a higienização pessoal, sem riscos de pegar uma doença.

Para nós é de fundamental importância um espaço que atenda às necessidades básicas de mais de 500 pessoas, e que esse espaço seja um lugar seguro. Também entendemos que os abrigos não são os melhores lugares para uma mulher viver seu período de gestação, pois as lonas usadas nas tendas produzem um calor absurdo, que com toda certeza afeta diretamente crianças e idosos.

Outra limitação dos abrigos é o fato de não podermos atender nossas famílias caso as mesmas busquem ajuda a nós. Não vamos poder vivenciar as nossas crenças, fazer nossas celebrações e cultos, socializar nossas culturas. O abrigo não oferece-nos um tempo fixo, viveremos sempre baixo a ameaça de a qualquer momento sermos interiorizados em outros Estados, passando a ser um fardo aos mesmos.

Para nós, a interiorização é sobrecarregar outros Estados. A opção de três meses de aluguel oferecido não traz tranquilidade, até porque o salário mínimo, ao considerar o preço dos alimentos e outros itens básicos para a vida, não alcaçaria para quem vive de aluguel, principalmente se é estrangeiro, sem contar o risco de não conseguir um trabalho.

A interiorização nos distanciaria mais de nosso país. No lugar onde estamos sentimo-nos mais perto de casa. De onde nós estamos é mais fácil voltar a nossa casa. Indo à outro Estado nos complicaria mais a vida, principalmente se passarmos a ganhar um salário mínimo e a pagar 600 reais de aluguel, tendo de gastar com alimentos e outras coisas, não
nos sobraria nada para pagar uma viagem de volta a casa.

Tivemos uma proposta que foi solicitada pela liderança anterior indígena e não foi consultada nem informada a toda a comunidade. A proposta era de separar-nos, crioulos e indígenas. No momento da proposta, todos estavam chegando, pedindo ajuda ao Brasil, traziam consigo os conflitos históricos que sempre existiram entre crioulos e indígenas. No entanto, depois de quase dois anos convivendo juntos, descobrimos a importância de trabalhar e superar nossos conflitos históricos com o fim de juntos, indígenas e crioulos, construírem um futuro melhor para nossos filhos.

Por essa razão uma nova eleição foi feita, estabelecendo uma nova coordenação. Desde então, crioulos e indígenas trabalham em conjunto com o fim tentar melhorar a condição de vida neste espaço, onde agora vivemos temporariamente, enquanto se resolvem os problemas do nosso país.

Queremos discutir alternativas e propostas acerca dos possíveis impactos que poderemos sofrer ao passar a viver em um abrigo. Entendemos que derrubar os barracos e construir barracas não é uma solução. Entre nós, existem pessoas que nunca vão adaptar-se a um abrigo, isso as levarão viver nas ruas e gerar outro problema para o estado. Além disso, a interiorização é insuficiente para resolução da crise humanitária vivida pelo imigrante venezuelano.

Nós, como população de Ka’ubanoko, apelamos ao diálogo, gostaríamos de solicitar nossa permanência, ainda que temporária, neste local, por entender que o contexto de pandemia não é apropriado para um deslocamento em massa.

Insistimos que, ao transformar nossa moradia em abrigo, muitos de nossos irmãos irão para as ruas, ocasionando mais problemas. É da vontade de todos que este espaço continue como está, até que venhamos, por meio de diálogos com o os órgãos públicos, construir propostas que atendam às necessidades de ambas as partes.


Cordialmente,
Os Crioulos da Comunidade Ka’ubanoko