Reforma Agrária Popular: Um projeto de sociedade construído no campo

Em comemoração ao Dia Nacional da Agroecologia, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) reúne e apresenta algumas experiências de produção da vida a partir da agroecologia desenvolvidas na região Sul do país
Grupo Gestor do Arroz Agroecológico/Foto: Aléx Garcia

Por Antony Corrêa, Jade Azevedo e Lucas Souza
Da Página do MST

Neste 03 de outubro, se comemora o Dia Nacional da Agroecologia, data instituída oficialmente em 2017 por meio da Lei nº 13.565, que homenageia o nascimento de Ana Maria Primavesi (1949 – 2020), agrônoma e pesquisadora pioneira da agroecologia e da biocenose dos solos tropicais.

O Movimento entende a agroecologia como um projeto político social de novos desafios da luta pela reforma agrária, uma vez que, o papel fundamental na agricultura é um processo sustentável que trabalha a formação, produção, sustentabilidade e comercialização, tudo isso trazendo diversos benefícios desde a qualidade de vida, qualidade do alimento, valorização do trabalhador do campo, rastreabilidade dos produtos, preservação do meio ambiente e renda para camponeses e camponesas.

Ana Maria Primavesi é homenageada no Dia Nacional da Agroecologia/ Reprodução

Segundo Roseli Caldart, professora e pesquisadora do Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA) no Rio Grande do Sul, o Programa de Reforma Agrária Popular, firmado nacionalmente no VI Congresso Nacional, em 2014, representa tanto a síntese das experiências e percursos do Movimento, quanto os desafios atuais e seu compromisso da transformação da sociedade.

O Programa Agrário Popular, busca mudanças estruturais na forma de usar os bens da natureza, que pertencem a toda sociedade, na organização da produção e nas relações sociais do campo traçando discussões sobre terra, bens da natureza, sementes, produção, energia, educação, cultura, direitos sociais e condições de vida para todos e dessa forma “contribuir de maneira permanente na construção de uma sociedade justa, igualitária e fraterna”.

Assentamento Maria Rosa do Contestado mantém produção 100% agroecológica/
Foto: Thea Tavares

Projeto de sociedade desde a lona preta: Acampamento Maria Rosa do Contestado

O Maria Rosa do Contestado[1] está localizado em Castro, 160 km da capital paranaense, e desde o ano passado tem a certificação de produção 100% agroecológica, com Selo de Qualidade Orgânica emitido pela Rede Ecovida de Agroecologia. O acampamento ocupa aproximadamente 400 hectares da área da antiga Fazenda do Cipó, propriedade da União, que por muitos anos esteve ilegalmente ocupada pela Fundação ABC, instituição de caráter particular que realizava pesquisa, testes de venenos, de insumos agrícolas para experimentos de interesse do agronegócio e de multinacionais da região. Por isso, desde que a área foi ocupada pelas famílias do MST, a decisão política foi de produzir alimentos sem veneno, ao contrário das outras empresas agrícolas da região.

Célio Meira, coordenador do acampamento, conta que em agosto desse ano eles fizeram uma ação de doação de alimentos que ajudou muitas famílias de Castro durante a pandemia, criando espaços de diálogos entre as famílias do acampamento e as da cidade sobre a importância da Reforma Agrária Popular, já que o acampamento vem sofrendo ação de despejo, mesmo produzindo e cuidando da terra. Célio defende que a Reforma Agrária Popular é importante para que mais pessoas possam ter acesso à terra e dessa forma fortaleçam a agricultura camponesa e familiar. “A terra é pública, é da União, é do povo, nada mais justo do que ela ser repartida para que as pessoas possam fazer com que ela faça a sua função social de produzir alimentos, saúde e trabalho”.

Célio Meira é um dos produtores orgânico do acampamento Maria Rosa/ Foto: Jade Azevedo

No acampamento vivem cerca de 200 famílias do MST que cultivam mandioca, feijão, milho, arroz, alho, cebola e hortaliças, diz Roque Ferreira Paiva, acampado ali a cinco anos, “Nós produzimos tudo aqui sem veneno. Além de alimentar minha família a produção ainda alcança para ajudar nas doações que fizemos em Castro e para vender lá na cidade”. As famílias recebem apoio técnico do Laboratório de Mecanização Agrícola (LAMA) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e do engenheiro Agrônomo, Guilherme Pedrollo Mazer, que acompanha o desenvolvimento agroecológico do acampamento desde o início. Ele explica que a produção é feita a partir das sementes crioulas [sementes selecionadas e conservadas durante gerações por agricultores e agricultoras]. Guilherme ressalta a importância desse trabalho para a biodiversidade, uma vez que no Brasil há algumas poucas empresas que detêm todo o patrimônio genético que são da nação.

Vanderley Vieira da Rosa, acampado do Maria Rosa, afirma que toda vida trabalhou com a terra dos outros usando veneno nas plantações, agora conta que todos os dias pela manhã vai para a horta coletiva ensinar os mais jovens a trabalharem na terra a partir dos conhecimentos que adquiriu há três anos na Jornada de Agroecologia na Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA), na Lapa – PR,  “O movimento mexe muito com a formação e a roça é vida”, ressalta ele.

Acampamento Maria Rosa produz aproximadamente 60 cestas agroecológicas quinzenalmente/ Foto: Thea Tavares

A produção do Maria Rosa é vendida em cestas em Ponta Grossa e Castro. São aproximadamente 60 cestas a cada 15 dias. A iniciativa de comercialização aconteceu por meio da Incubadora de Empreendimentos Solidários (IESol), programa de extensão da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Os produtos são organizados pelo coletivo feminino nas cestas, Rosane Mainardes, explica que são todos alimentos orgânicos e vão desde o arroz, feijão, leguminosas, tubérculos a ervas medicinais e temperos. No acampamento as famílias ainda produzem macarrão caseiro e conservas.

Escola do campo, um lugar de agroecologia, luta, sonhos e resistência!

Em Fraiburgo (SC), se destaca a Escola de Educação Básica Vinte e Cinco de Maio, uma escola do campo, construída no Assentamento Vitória da Conquista (Faxinal Domingues II), num total de 32 hectares de terra destinados pelo MST, nos quais são realizadas atividades produtivas de: horta, pomar, espaço de criação de suínos e bovinos, lavouras, açudes, viveiro de mudas e reservas nativas.

A escola do campo trás viva em seu nome a memória da primeira ocupação de terras em Santa Catarina feita pelo MST em Abelardo Luz, em 25 de maio de 1985, com participação de 2.000 famílias. A comunidade escolar tem a presença de 300 famílias que estão ligadas ao processo de luta pela reforma agrária. Atende aos níveis de ensino do infantil, fundamental, curso de médio técnico em Agroecologia e em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sedia uma das turmas do curso de Licenciatura em Educação do Campo.

Agnaldo Cordeiro, formado pela escola e atual gestor, explica que a escola tem uma formação ampla, que une o pedagógico, o teórico e o prático conectando a vida da comunidade ao projeto de reforma agrária. No curso Técnico em Agroecologia, existem unidades didáticas e espaços de aprendizagem teórico-prática, que trabalham com a ideia de auto sustento, ou seja, que é feita para comercialização da produção, como por exemplo o Sistema Intensivo de Suínos Criados ao Ar Livre (SISCAL) e a horta, “a intenção é que essas unidades fossem auto suficientes no sentido de fornecerem recursos para sua manutenção e para que o estudante consiga participar desta gestão, compreendendo todo o processo”, ressalta.

Ele explica que a escola tem a sua área produtiva certificada como orgânica desde 2017, o que permite que “a escola participe de algumas licitações para entrega de merenda escolar. Todo esse recurso levantado se volta para o investimento nas unidades didáticas, objetivando sempre a manutenção da finalidade pedagógica”.

Desde o ano passado a escola, juntamente com um grupo inicial de dez famílias, foi convidada pela prefeitura para construção da feirinha de orgânicos do município, aos sábados. “A gente percebeu que a feirinha é um canal de diálogo para divulgar o trabalho da escola, a agroecologia e de quebrar alguns preconceitos que historicamente a sociedade de Fraiburgo tinha, de acharem que nossas famílias não produziam. Hoje as pessoas compram o alimento que é produzido no assentamento, numa escola do campo, que é resultado da conquista do movimento social”, ressalta.

Para ele é nestes momentos que se percebe o quanto produzir alimento saudável é um ato político, já que a feirinha, pelo seu sucesso inicial, acabou incomodando parte dos comerciantes e empresários de Fraiburgo. A feirinha também proporciona a perspectiva ao jovem de produzir e ter renda.

Outra atividade desenvolvida na escola de forma experimental é a produção e estudo de um secante natural (HERBITEC), inseticida (BIOMAP) e uma loção para ferimentos, tecnologia social, que fornece novas opções ao sistema convencional para se trabalhar com produção de alimentos desenvolvidas em parceria com pessoas da comunidade.

Agnaldo enfatiza a importância da Educação do Campo que desenvolve o olhar e perspectiva do jovem camponês sobre o território e a articulação entre os diferentes pontos de debates estruturais presentes na Reforma Agrária Popular. Ele ressalta que a escola e o curso técnico compartilham da perspectiva de que a “agroecologia não é só produzir alimentos, é também fazer o debate de gênero, da questão ambiental, racial. Ela tem uma vinculação muito forte com o projeto de reforma agrária de construir esse diálogo e levar alimento saudável para aquele trabalhador, e não para uma butique”, ressalta.

“Olhando para a Vinte e Cinco e para o curso técnico que está em seu 16º ano, vemos um processo em construção, “avançamos bastante [desde sua origem] através do Programa Nacional de Educação e Reforma Agrária (Pronera) que nos ajudou a consolidar e a se organizar com o Estado, mantendo a nossa cara de educação do campo”, explica Agnaldo. Segundo ele, o papel da escola é formar sujeitos que tenham uma identidade de campo, que tenham a pauta da agroecologia em defesa da vida e que ajudem a construir outras alternativas.

A experiência do Grupo Gestor do Arroz Agroecológico: o maior produtor de arroz orgânico da América Latina

A produção de arroz orgânico, com base na agroecologia, começou há mais de 20 anos em pequenas áreas ao redor de Porto Alegre (RS). Por meio de uma rede de cooperação e ajuda mútua, os agricultores começaram a produzir inicialmente através da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap), no Assentamento Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul; da Cooperativa de Produção Agropecuária dos Assentados de Tapes (Coopat), no Assentamento Lagoa do Junco, em Tapes; e da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita (Coopan), no Assentamento Capela, em Nova Santa Rita, todas cooperativas do Movimento Sem Terra.

As cooperativas forneceram máquinas agrícolas e assistência técnica para os agricultores, que com o cultivo do grão obtiveram aumento de renda e inclusão social. Foi um caminho difícil, o cultivo do arroz orgânico começou de fato entre os anos de 1999 e 2000, após uma crise econômica e discussões internas como a questão ambiental e de saúde dos agricultores, no próprio MST. “Tínhamos que nos tornar produtores de alimento e alimento saudável”, relembra Emerson Giacomelli, diretor do Grupo Gestor do Arroz Orgânico. 

Aos poucos, os camponeses foram se apropriando do processo do cultivo do arroz com bases na agroecologia, realizando intercâmbios e trocas, inclusive entre os camponeses. “A gente percebeu que o que mais funcionava era quando os próprios agricultores se reuniam para fazer a discussão, a troca de experiências”, relata Emerson. Foi a partir dessas trocas que nasceu o Grupo Gestor do Arroz  Agroecológico.

O cooperativismo tem um papel fundamental dentro da produção do grão. Envolvidas diretamente na produção estão cinco cooperativas: Cootap, Coopat, Coopan e Cooperativa dos Produtores Orgânicos de Reforma Agrária de Viamão (Cooperav). As cooperativas são responsáveis por fazer o financiamento, custeio, fornecimento de insumos, assistência técnica e acompanhamento da produção dos agricultores e no final do processo cuidam da comercialização.

Alcinda Soares Ribeiro, moradora do Assentamento Hugo Chávez Lagoa do Junco, no município de Tapes, ressalta a importância do cooperativismo na construção de novas relações, “ele [cooperativismo] junta mais pessoas para discutir as matrizes tecnológicas, relações de gênero, relações com a sociedade e da produção de alimento saudável”.

[áudio da Alcinda]

Hoje as cooperativas possuem uma infraestrutura e programas para pesquisa, produção de sementes, formação técnica e distrito de irrigação. “Tudo que envolve o aspecto da cadeia produtiva está sobre o controle do Grupo Gestor, das famílias e das cooperativas”, conta Emerson, e acrescenta, “inclusive com uma marca própria, a Terra Livre Agroecológica”.

Atualmente são 364 famílias distribuídas em 14 assentamentos de 11 municípios gaúchos produzindo arroz orgânico com base na agroecologia. A maior parte da produção é do arroz agulhinha e cateto. Após o processo de beneficiamento industrial, o agulhinha chega aos consumidores como arroz branco polido, parboilizado e integral. Já o cateto pode ser adquirido branco e integral. Para Emerson, “o maior desafio que nós temos hoje na agroecologia é de sair e criar políticas públicas de apoio e incentivo a produção agroecológica”. Ele compara com as atuais políticas públicas do agronegócio, que permanecem mesmo com as trocas de governo. Na agroecologia, que os produtos são sazonais é necessário formas de incentivo diferentes das que o agronegócio tem.

*Editado por Yuri Simeon


[1] O nome do acampamento é uma homenagem à memória de Maria Rosa, cabocla e liderança dos quadros  no reduto de Caraguatá durante os conflitos de coronéis, governantes e militares contra a população cabocla, entre 1912-1916, e que mais tarde seria chamado de Guerra do Contestado. Este movimento de resistência está inserida na tradição de São João Maria.