Os sentidos da luta pela terra

Conflitos e resistências pela voz de mulheres nordestinas

Conflitos e resistências pela voz de mulheres nordestinas
“O Silêncio da Terra”, foto de Matheus Alves, durante Marcha do Acampamento Terra Livre, 2017.

Por Lays Furtado/MST
Da Página do MST

Desde a implementação do projeto colonial em curso, as lutas por territórios persistem na América Latina e Caribe em meio às dinâmicas entre opressões e resistências.

O Brasil, mesmo sendo um dos países com maior extensão territorial no mundo, ocupa o 5º lugar no ranking de desigualdade no acesso à terra no continente. “Historicamente, a desigualdade tem relação particular com a concentração de terra. No Brasil, há um vínculo entre a propriedade da terra e o exercício do poder político”, aponta o Informe OXFAM Brasil em 2016.

Fator que provocou, ao longo do tempo, inúmeras disputas e formas de resistência, como a luta dos Povos Indígenas há mais de 5 séculos pelo direito aos seus territórios, identidades e culturas, assim como os enfrentamentos tomados em meios aos Quilombos.

Entre outras formas de resistência que marcaram nossa História, temos Canudos, Cabanagem, Porecatu, Trombas e Formoso, Ligas Camponesas. E muitas outras que hoje são exemplos que inspiram os sentidos das lutas pela terra e pela vida, diante da fragilização de direitos já conquistados.

Tal problemática se acentua em toda região continental, já que os países Latinos apresentaram o pior índice de distribuição de terras no mundo, onde mais de 50% das áreas produtivas estão nas mãos de apenas 1% de proprietários. No Brasil, segundo dados do Censo Agro 2017, 1% dos maiores estabelecimentos rurais ocupam 47,3% da área, ao passo que os 50% menores ocupam somente 2,1%.

“A desigualdade em torno da terra não afeta apenas o mundo rural, mas é um obstáculo para o desenvolvimento sustentável, pois limita o emprego, alarga cinturões de pobreza urbana e enfraquece a coesão social, a qualidade da democracia, a saúde do meio ambiente e a estabilidade de sistemas alimentares locais, nacionais e globais”, aponta o relatório Desterrados: Terra, Poder e Desigualdade na América Latina – OXFAM (2016).

Considerando que a terra é grande provedora das necessidades humanas, está previsto na Constituição, e instituído pelo Estatuto da Terra desde 1964, as premissas de sua melhor distribuição, delegando ao Estado a realização de medidas fundiárias que garantam o cumprimento da função social das propriedades rurais por via da Reforma Agrária.

Tal qual determina a responsabilidade estatal sobre a Demarcação de Terras Indígenas (TI) e Quilombolas, assegurando o acesso à terra e seus recursos para as comunidades que nela vivem e trabalham.

Porém, na prática a realidade é outra, o que faz com que os conflitos no campo continuem minados estruturalmente pelas desigualdades e violências que ferem a justiça social no Brasil. Impactam diretamente no desenvolvimento de uma economia sustentável,  na preservação do meio ambiente, e na vida de comunidades marginalizadas em detrimento a concentração de terras de latifundiários à serviço do acúmulo capital.

Entraves contra a Demarcação de Terras Indígenas

Um fator de entrave que tem sido denunciado pelos povos que lutam pelo direito ao seus territórios é o chamado Marco Temporal, uma ação que caracteriza-se como inconstitucional aos princípios defendidos pelo Estado de direitos. Porém, mesmo assim, tem se colocado como obstáculo para a Demarcação de Terras Indígenas (TI).

O Marco Temporal é baseado em uma tese ruralista que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), e defende que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, que rege medidas da chamada redemocratização do Brasil após a ditadura militar.

Esta ação do Marco Temporal, foi postulado no Parecer 001/2017, publicado pela Advocacia-Geral da União (AGU) durante a presidência de Michel Temer, que atende aos interesses de ruralistas e deslegitima todos os processos de demarcação tramitados após a Constituição de 1988.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), pelo menos 27 terras indígenas que aguardavam a emissão de Portaria Declaratória pelo Ministério da Justiça foram devolvidas à Funai (Fundação Nacional do Índio) para que fossem revisadas de acordo com o parecer.

Crianças indígenas de Mendonça do Amarelão (RN). Foto: Reprodução.

Tayse Campos, uma das principais lideranças indígenas Potiguaras de sua geração, pertencente ao Território Mendonça Amarelão (RN), ressalta que governo nenhum favoreceu a demarcação de Terras Indígenas, sejam eles de direita ou de esquerda. Mas agora com um Estado assumidamente anti-indígena, os desafios para garantir o direito da ocupação desses territórios são ainda maiores.

“O principal entrave da demarcação de terras indígenas é o próprio Estado brasileiro, que negocia com o agronegócio, que negocia com os grandes empresários que financiam as campanhas políticas. E a gente sempre esteve à margem dessa política que é completamente capitalista. E nós somos colocados como um entrave para o capitalismo”, denuncia Tayse.

Ela conta também que, além de terem que lutar pela posse das terras como povos tradicionais e originários, há obstáculos que se sobrepõe ao processo de reconhecimento ao direito à demarcação de Terras Indígenas na região Nordeste, e que tal questão passa pelo reconhecimento de suas próprias identidades.

“Então é todo um processo histórico que a sociedade brasileira, que as pessoas dessa sociedade que estão à frente das organizações como FUNAI, Ministério da Justiça e das principais organizações por onde passa o processo de demarcação de terras indígenas. Essas pessoas não acreditam que os povos indígenas do Nordeste são indígenas. E a gente ainda tem que ter um esforço para provar que somos indígenas. É passado um pano em cima de todo o processo violento da colonização, que essa colonização se deu a partir do Nordeste.”

Ou seja, além de todos os entraves históricos enfrentados desde o Brasil colonial, o estereótipo que recaem sobre as identidades indígenas é mais um obstáculo para o reconhecimento de seus direitos. “Porque perderam a língua, porque não tem aquele estereótipo do índio que foi pintado nos livros que são distribuídos nas escolas”, declara Tayse.

E é justamente contra o apagamento de suas existências, identidades e cultura que os(as) fazem se manter na luta pela reivindicação de seus  territórios.

Aquilombamento e os sentidos das lutas pela terra

A concentração de propriedades rurais nas mãos de poucos, não fez cessar a luta dos povos da terra e das águas no Brasil.

Dados da CPT apontam que desde 2019, a partir da tomada da gestão presidencial de Jair Bolsonaro (sem partido), nos deparamos com a diminuição das ocupações de propriedades improdutivas. Isso se dá frente à ofensiva ascendente da violência no campo contra as comunidades que reivindicam a terra e seus recursos como meio de vida. Por outro lado, isso fez com que houvesse um aumento das manifestações em detrimento à tais conflitos.

Desde sua campanha eleitoral, o atual presidente prometeu publicamente não conceder nenhum centímetro de terras reivindicadas por agrupamentos de indígenas, campesinos e quilombolas, como recorda Givânia Maria da Silva, líder quilombola de Conceição das Crioulas (PE) e co-fundadora da CONAQ (Coordenação Nacional dos Quilombos), durante aula aberta no Youtube do Centro de Formação Paulo Freire.

Ela declara ainda que as questões agrárias estão relacionadas com a luta pela terra, mas que há outros elementos que precisamos dialogar para ampliam as dimensões dessas resistências.

“As lutas pela terra são lutas de sentidos. Eu posso estar lutando por uma terra porque eu quero produzir, plantar milho e feijão nela. Eu posso estar lutando por uma terra porque eu quero ali cultuar o meu sagrado. Eu posso estar lutando por uma terra que ali eu quero produzir meu artesanato.”

As bonequinhas feitas em caroá, espécie de bromélia nativa do Nordeste brasileiro. Artesanato que representa a força das mulheres quilombolas de Conceição das Crioulas. Foto: Reprodução.

Givânia conta que o racismo estrutural nos impede de conhecer a contribuição histórica e reconhecer a própria existência dos quilombos e do campesinato negro na luta por territórios no Brasil.

“A gente ouviu falar de Palmares, mas a gente não ouviu falar de Conceição das Crioulas. A gente não ouviu falar de Campeão da Independência, a gente não ouviu falar de Salina, em 6 mil quilombos espalhados no Brasil; a gente não ouviu falar de que os quilombos estão em 31% dos municípios brasileiros. Ou seja, dos 5.570 municípios municípios brasileiros, 31% deles têm a presença quilombola.”

Ela coloca que os quilombos, formados a partir da resistência popular e rebeldia contra a escravidão, foram o segundo movimento social no Brasil depois dos povos indígenas, que lutam até hoje por uma terra sem males.

Além disso, Givânia ressalta também o papel das mulheres que sobretudo é invisibilizado nas lutas pela terra e que é invisível até mesmo na produção agrícola. As mulheres detém de grandes contribuições, mesmo não sendo vistas como produtoras, e muito menos menos como proprietárias de terras.

Segundo a OXFAM Brasil (2016), são os homens os donos de 94,5% de todas as áreas rurais brasileiras. E são eles que aparecem como o principal perfil de produtores rurais pelos Censos Agro no país.

Patrimônios da resistência contra o latifúndio

Alane Lima, camponesa e presidenta do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, localizado em Sapé (PB), aponta que é fundamental “associar, trabalhar e continuar com as lutas agrárias que a gente tem aqui na nossa região e também no Brasil.” 

A sede deste memorial é a antiga casa onde viveu até a década de 60 João Pedro Teixeira e Elizabeth Teixeira, grandes expoentes das lutas da Ligas Camponesas. O local foi estratégico para reuniões e encontros que levantaram o movimento que precedeu o surgimento dos sindicatos de trabalhadoras/es rurais, e encorajou muitas/os outras/os na luta pela terra.

“E hoje nós temos também o espaço Centro de Formação de Educação Popular e Agroecologia Elizabeth Teixeira, que é onde acontece o processo de formação para a juventude camponesa, com as camponesas e os camponeses. E também com pessoas de fora que vêm, escolas, universidades, com crianças.”

A história da família Teixeira e sua trajetória com as Ligas Camponesas contra a opressão de latifundiários, e se misturam de forma indissociável pois marcaram a vida de todas/os.

Muitas/os não sobreviveram para contar sua própria memória, mas parte dela ficou imortalizada no documentário “Cabra marcado para morrer”. Filme que começou a ser gravado 1964, mas que só pôde rodar 20 anos depois, após a reabertura do período democrático no Brasil.

Elizabeth Teixeira que é personagem do filme e da trajetória das Ligas  Camponesas. No auge dos seus 95 anos, ela está viva para contar sua própria história. Lamenta pelas mortes de seu marido e filhas/os por terem lutado pela terra, bem como pelos 17 anos em que esteve em exílio por continuar na resistência contra o latifúndio.

“Eu pensava muito na luta dos trabalhadores do campo, que eles continuassem aquela luta difícil, uma luta violenta, mas que eles continuassem a luta no campo para que tivessem condições de ter os produtos do campo para se alimentar, que é a macaxeira, a batata, o feijão, o milho tudo do campo”, conta Elizabeth.

Elizabeth Teixeira. Foto: Reprodução.

Patrimônio vivo da luta pela terra, Elizabeth, consciente das desigualdades históricas que se mantêm, se diz alegre por saber que outras companheiras e companheiros continuam o legado de sua família e de muitas outras que somam as resistências contra o latifúndio.

“A terra pertence aos trabalhadores que trabalham na terra. Não é ficar improdutiva, parada, alugada, não. A terra tem que ser entregue ao trabalhador sem terra para que ele possa trabalhar e viver no campo”, conclui.

*Editado por Fernanda Alcântara