Apesar dos limites impostos pela pandemia, mulheres Sem Terra protagonizam ações e luta política

Na região Centro-Oeste, mulheres relatam como lidam com a sobrecarga de trabalho e o combate às violências

Em abril, a ONU alertou sobre o impacto da pandemia para a vida das mulheres
Foto: Arquivo MST

Por Flávia Quirino
Da Página do MST

Quando a Organização Mundial da Saúde decretou, no dia 11 de março, que o mundo inteiro estava vivendo uma pandemia, um cenário logo acentuou-se: as mulheres seriam as mais afetadas, sob diferentes aspectos, economia, violência, saúde, e a invisível carga do cuidado e trabalho doméstico historicamente naturalizadas na sociedade patriarcal como obrigações das mulheres.

“Vivemos tempos muito difíceis e a pandemia expõe toda essa crueldade do capitalismo e do patriarcado, na medida em que revela toda essa dureza da sobrecarga das mulheres”, aponta Itelvina Maria Masioli, da Coordenação Nacional e Direção Estadual do MST em Mato Grosso.

De março até agora, são muitos os estudos e pesquisas que apontam que as mulheres estão sobrecarregadas, mais cansadas e ainda, que aumentaram os casos de violências e feminicídios pelo país.

Em abril, a Organização das Nações Unidas alertou que a pandemia traria impactos catastróficos para a vida das mulheres e que o mundo viveria uma pandemia sombra diante da provável, já comprovada, aumento dos casos de violências, como agressões, feminicídios, casamento infantil, entre outros. No Brasil, por exemplo, entre março e agosto foram reportados 497 casos de feminicídio, é o que mostrou um monitoramento da violência feito por mídias independentes, divulgado no dia 8 de outubro.

O período de pandemia começou no país logo após a realização do 1º Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra , que aconteceu em Brasília entre os dias 5 a 9 de março.

E logo em abril, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) lançou a campanha “Mulheres Sem Terra: Contra os vírus e as violências” com o intuito de combater todo tipo de violência praticada contra as pessoas mais vulneráveis.

A Campanha foi uma das formas encontradas para que não apenas as mulheres, mas todo o conjunto do movimento continuasse mobilizado com o debate e combate às violências.

Segundo Atiliana Brunetto, da Direção Nacional do MST, entre os principais desafios para as mulheres sem terra, após o início de isolamento social, estavam a continuidade do trabalho de base e do processo de lutas, e o uso da tecnologia.

“Fomos criando processos para garantir a formação de base e criando esse vínculo entre as mulheres. Paralelo, vivenciamos as violências provocadas pelos despejos e também os desafios do debate da divisão sexual do trabalho, que acontece no dia a dia das mulheres”.

Foto: Arquivo MST

Violência não é um processo isolado

“Mulheres Sem Terra: Contra os vírus e as violências” atua a partir de eixos, violência, cuidado e autocuidado, resistência ativa. “Essa é uma campanha muito articulada com outros setores no interior do MST, porque percebemos que era importante ser coletiva, pautada no conjunto do movimento”, aponta Atiliana Brunetto. O primeiro eixo sobre violência, aborda toda a compreensão do que é violência, principalmente contra os mais vulneráveis e de como o capitalismo se beneficia dessas violências para se fortalecer.

Sobrecargas não podem ser normalizada

O segundo eixo da Campanha trata sobre cuidado e autocuidado, onde são abordadas, principalmente as questões da divisão sexual do trabalho, que impõe, historicamente, tarefas do cuidado doméstico e dos filhos às mulheres. “Se não compreendemos que existe uma sobrecarga, as mulheres vão adoecer.

As sobrecargas não podem ser normalizadas. Tem que existir uma divisão de tarefas, inclusive do lar, que é uma tarefa do conjunto de pessoas de quem mora na casa e não apenas das mulheres”, alerta Brunetto.

A pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, da Gênero e Número e da Sempreviva Organização Feminista, divulgada no final de julho de 2020, revelou que a crise sanitária acentuou as desigualdades nas tarefas de cuidado e atingiu mais da metade das brasileiras, incluindo as mulheres trabalhadoras rurais.

“Entre as entrevistadas, quase 64% consideraram que a distribuição do trabalho doméstico entre as pessoas que convivem permaneceu a mesma, com pouca diferença entre rurais (68% delas) e urbanas (63% delas). Ainda que não contemos com a informação de como tal distribuição acontecia previamente, é possível supor que as mulheres rurais vivenciem situações de maior desigualdade”, ressalta trecho da Pesquisa.

Para Josiane Santos, da coordenação estadual do MST em Rondônia, neste período de pandemia houve um grande acirramento das desigualdades de classe, de gênero e de raça, e são as mulheres que têm sentindo o maiores efeitos, como o aumento da violência.

“Isso se reflete no dia a dia dentro das nossas casas com a sobrecarga de tarefas no trabalho doméstico, trabalho com a roça, sobretudo o cuidado com as crianças que envolve também as atividades escolares. Além disso ainda tem as questões psicológicas, o medo, a preocupação e agonia desse futuro cheio de incertezas, porém não desanimamos”, destaca.

Protagonismo das mulheres é resistência ativa

Se de um lado, a pandemia escancarou as violências contra as mulheres como um problema social estrutural, provocado pela sociedade patriarcal, capitalista e racista, por outro lado, também tem mostrado que as mulheres estão na linha de frente de diversos espaços coletivos e de solidariedade, buscando saídas para o enfrentamento da crise sanitária, aprofundada pelas ações do governo genocida de Bolsonaro. E, neste contexto, as mulheres

Sem Terra têm papel fundamental

O terceiro eixo da campanha “Mulheres Sem Terra: Contra os vírus e as violências”, é a resistência ativa e o papel das mulheres na construção da reforma agrária popular.

“Nas ações de solidariedade do MST, que é basicamente a doação de alimentos, doação de marmitas, se formos observar existe uma presença massiva das mulheres nesses processos, principalmente como protagonistas nos processos de produção”, observa Atiliana.

“Mesmo com as limitações relacionadas ao uso das tecnologias, temos fortalecido os coletivos de mulheres dentro dos territórios e elas têm protagonizado processos de produção de alimentos, como hortas coletivas, processos de fabricação de embutidos artesanais, doces. Temos feito atividades de distribuição de alimentos, através do Periferia Viva, projeto de horta comunitária em regiões de periferias, em todas essas atividades temos destacado a importância das mulheres estarem a frente desses processos e elas estão”, destaca Vitória Prado da Direção Estadual do MST no Goiás.

Em Rondônia, as mulheres também tem protagonizado diversas ações durante este período. “Foram mais de sete mil máscaras para doação feitas por grupos organizados de mulheres, estamos atuando diretamente na produção de comida, sobretudo plantando alimentos com diversidade.

Foram mais de 10 toneladas de comida doados à classe trabalhadora da cidade e em torno de 30 toneladas de alimentos entregues ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e ainda estamos, com o conjunto do movimento, atuando na linha de frente na construção desses viveiros”, aponta Josiane Santos.

A observação do protagonismo das mulheres nas ações de solidariedade, plantio de árvores e alimentos saudáveis também é destacado em outros estados da região Centro-Oeste, como Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e entorno e Mato Grosso.

Os desafios apontados deram fortaleceram a organização das mulheres no movimento
Foto: Arquivo MST

Acesso à internet é limite

Acesso à internet é limite

Se a pandemia expôs e acentuou desigualdades, uma delas está relacionada ao acesso à internet no Brasil. E é esse um dos entraves à auto-organização das mulheres.

Dados da pesquisa TIC Domicílios, realizada pelo Centro Regional e Estudos para Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), em 2019, informam que enquanto 75% da população urbana é usuária de internet, no campo esse número cai para 51%, ou seja, quase metade das pessoas que vivem em áreas rurais não acessa a rede de computadores.

Um outro estudo realizado pela Universidade de Oxford, mostra que as mulheres rurais são o grupo menos conectado às tecnologias digitais na maior parte dos países da América Latina e do Caribe.

Para Sandra Cantanhede da Direção Nacional do MST/DFE, as mulheres têm papel central no contexto geral da luta e na organização dos territórios, “mesmo antes da pandemia as mulheres já protagonizam as ações do movimento e esse momento nos coloca ainda mais desafios, como o de nos reinventarmos a partir das ferramentas que estão colocadas e com
isso garantir a participação de todas, de manter essa participação no espaço político, de articulação de tomada de decisões, mesmo com dificuldade de acesso à internet, à tecnologia e também dificuldade de acesso a aparelhos estamos nos reinventando e usando essas ferramentas para nos mantermos organizadas”.

Na opinião de Itelvina Maria Masioli, todos esses desafios apontados deram oportunidade de fortalecer a organização das mulheres no movimento.

“Ao mesmo tempo trouxe essa possibilidade de avançar no fortalecimento da organização e da participação das mulheres no conjunto do movimento e no conjunto da sociedade, na perspectiva de avançarmos na defesa e na conquista de direitos e da construção de um Projeto Popular, onde de fato a
participação política, o protagonismo das mulheres sejam reconhecidos pelo conjunto da sociedade, onde possamos de fato construir relações humanas e respeitosas entre os diferentes seres humanos”.

Assembleias

A exemplo de outros estados e regiões, no dia 2 de outubro foi realizada a Assembleia das Mulheres Sem Terra Centro-Oeste, que envolveu os estados de Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Distrito Federal e Entorno, e contou com a participação de 45 mulheres.

Editado por Maura Silva