Curso online do MST discute a luta LGBT ao longo da história social do Brasil

Palestrantes apontam que travestis são marcadas pelos estereótipos construídos ao longo da história e pelo apagamento dessas pessoas na sociedade

Coletivo LGBT do MST realiza curso sobre Diversidade sexual de gênero e Reforma Agrária Popular. Foto: Manuela Martinoya

Por Solange Engelmann
Da Página do MST

“Enquanto houver uma semente de injustiça, de desigualdade, de misoginia, de homofobia, de racismo, de hipocrisia, de violência, de antidemocracia, nosso grito terá valor. Sigamos em luta, não desanimamos… Para aqueles que semeiam ódio, nós semeamos amor”.

Com essas palavras poéticas e uma performance mística que denunciam o aumento de assassinatos de travestis no Brasil, teve início a quinta aula do curso sobre Diversidade sexual de gênero e Reforma Agrária Popular do MST, com debate sobre a travestilidade, transexualidade e não binariedade de gênero. A aula foi realizada nesta terça-feira (27), às 17h, pela plataforma Zoom e transmitida no Youtube.

O curso reúne militantes de movimentos sociais, aliando teoria e prática, aos estudos e desenvolvimento de uma consciência política que procura assegurar mais protagonismo às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT). E na tentativa de estabelecer novas formas de relações sociais, mais diversas e unitárias na sociedade atual.

“Esse curso é construído pela e para a classe trabalhadora. E procura dar visibilidade ao LGBT, como identidade política, destruindo as barreiras da intolerância e do preconceito. Acumulando elementos imprescindíveis à luta coletiva, pela transformação social e pela emancipação humana”, aponta a militante do Coletivo LGBT do MST, Penélope Diniz.

A aula que teve duração de quase duas horas contou com a participação da doutora Megg Rayara Gomes de Oliveira, travesti e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e de Bruna Benevides, diretora da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), e primeira mulher trans na ativa da marinha brasileira.

Megg denuncia que a categoria de travesti é marcada por estereótipos, construídos socialmente ao longo do processo histórico e por um epistemicídio trans, que tem provocado um apagamento da história dos travestis e trans, que na verdade possuem uma participação positiva na construção da sociedade de uma forma geral.

“Quando a gente fala ‘travesti’, a pessoa escuta ‘puta, vagabunda, piranha, perigosa’, e outras imagens depreciativas a nosso respeito”. A professora aponta que isto ocorreu por conta de que “em todos os estudos, sejam das relações étnicos-raciais, de gênero, a presença de travestis e de pessoas transexuais é apresentada de uma forma muito naturalizada. Como se nós fossemos fruto da sociedade contemporânea, o que não é verdade”. afirma.

Nessa linha, a diretora a da ANTRA e ABGLT, a trans Bruna, evidencia que o termo travesti foi criado pela sociedade, em um processo histórico brasileiro com várias estratégias e estímulos aos comportamentos violentos que procuram negar e eliminar a existência dessas pessoas.

“A sociedade sabe quem é essa travesti e sabe como assassinar essa travesti, ela sabe qual é o corpo que vai negar, por exemplo, o acesso ao banheiro. Existe um lugar social, um destino social que foi colocado para a travesti, que é esse não-lugar, que é todo esse processo de vulnerabilização e precarização”, pontua.

Megg explica que isso compromete a leitura histórica acerca da existência das pessoas trans e travestis na sociedade brasileira e reivindica a inserção desse público na historiografia de uma forma geral, principalmente, nos estudos de raça e gênero.

Diante disso, Bruna considera que as travestis, que estão entrando na universidade e atuam nos movimentos populares, além de aliados de luta pelos direitos dessas populações têm grandes responsabilidades em revisitar essas narrativas. E “responsabilidades em criar uma narrativa que enfrente tudo aquilo que foi construído de uma forma enviesada, que não nos representa e, que até hoje cria essa ideia equivocada do que é ser travesti”, argumenta ela.

Contexto histórico: a mudança do olhar da academia sobre transexualidade

Conforme a professora Megg, os primeiros estudos produzidos pela academia que se interessam pelas vivências das travestis surgem na década de 1990, ainda com uma naturalização de alguns estereótipos, sendo conduzidos majoritariamente por homens brancos de gêneros heterossexuais e alguns homossexuais. São estudos que apresentam relações com a epidemia de HIV.

“As palavras que vão aparecer com muita frequência são, justamente, saúde, prevenção, HIV, Aids, prostituição, pobreza, violência, perigo e, assim por diante. Esses estudos, na maioria das vezes, não estão pautados no interesse de proteger a vida das travestis, mas em proteger a sociedade do contato conosco”, ensina ela.

Essa situação somente se modifica recentemente, em 2012, segundo Megg, com a defesa de doutorado de Luma Andrade, a primeira pesquisa consistente realizada no país por uma travesti, que problematiza a questão da cisgeneridade, ou seja, da condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Luma chama atenção para o fato de que a existência da travesti é múltipla e diversa.

Porém, a professora indica ainda que esses questionamentos acadêmicos passam a obter maior espaço na sociedade, na medida em que outras pessoas trans e travestis começam a ocupar esse espaço.

“É à medida em que o movimento de travesti e transexuais começa a bater na porta do Ministério da Educação, na porta das escolas, das universidades, reivindicando mudanças na configuração desses espaços, começa haver também um enfrentamento”, informa.

A construção dos estereótipos na sociedade atual acerca desse público também tem sofrido algumas mudanças a partir do surgimento da Teoria Queer, na visão de Megg, ao questionar os binarismos e a naturalização em relação a concepção de que macho é igual a homem, e fêmea equivalente à mulher, como a única construção social possível às pessoas.

“Essas construções binárias estão sendo criticadas e contestadas. Ou seja, existem outras possibilidades de ser homem e outras possibilidades de ser mulher, que fogem a essa normatização de cisgeneridade hegemônica”, indica ela.

A importância da unidade nas lutas coletivas LGBT

A travesti Bruna, discorda de Megg em relação a alguns aspectos da Teoria Queer, que considera armadilhas na luta por direitos e políticas públicas, mas aponta que o central neste momento é construir unidade entre os movimentos travestis e trans, para enfrentar a pauta conservadora e fascista que tem gerado o crescimento de grupos “anti-gêneros” e, consequentemente, de assassinatos de travestis e transexuais.

A Reforma Agrária Popular também é LGBT (foto: Coletivo de Comunicação da Bahia)

“É importante sabermos que nós hoje temos um compromisso enquanto movimento, enquanto sociedade, enquanto coletivo, enquanto grupo que se reconhece deste lugar, de coletividade, construção de diversas formas de se enxergar, mas também de enxergar o outro, com as travestis, com o resgate de uma cidadania que nos foi roubada”, argumenta Bruna.

Na concepção de Megg, não é papel da academia criar categorias para esse público, mas função dos movimentos populares entender os entraves ou armadilhas para assim construir processos de luta em torno das categorias que representam esse público.

“Se me tratarem como uma categoria que me nega uma identidade feminina, eu vou me posicionar, porque isso é apagamento, desrespeito com a minha luta, com a minha identidade e com o meu direito de me constituir do gênero feminino”, reivindica ela.

Contudo, as travestis convidadas apontam que as reivindicações dos movimentos populares atuais se concentra, principalmente, no combate à violência de gênero e à negação da identidade de gênero, que impede o acesso a direitos garantidos por lei a essas populações.

“Um dos primeiros e mais urgentes pontos é conseguirmos garantir que pessoas trans tenham reconhecida a sua identidade de gênero. Negar a identidade de gênero, a possibilidade dessa expressão livre de opressão é, antes de mais nada, uma prática extremamente violenta e colonial. Enquanto não vencermos isso vamos continuar travestis sendo violadas e violentadas”, constata Bruna.

Ela finaliza chamando atenção para outras pautas que também considera fundamentais, como o rompimento com o processo de genitalização das pessoas trans e travestis, em que a genital é utilizada como referência pelas pessoas para negarem a identidade de gênero.

Além da marginalização, criminalização, perseguição, demonizações e a patologização desse público. Porém, para Bruna, nesse momento histórico, com a política do governo Bolsonaro de ataque a esses grupos, a comunidade LGBTI brasileira enfrenta todas essas violências, que se somam, ao mesmo tempo.

Assista agora:

*Edição: Ludmilla Balduino