183 anos da Sabinada: luta por uma República Bahiense livre e independente
Por Jamile Araújo
Da Página do MST
Nesta sexta-feira (6), trazemos à memória da luta popular os 183 anos da “Sabinada”, revolta iniciada em 1837, na então província da Bahia. Sabemos que a história do Brasil, e, especificamente, da Bahia, é marcada por inúmeros processos de revoltas desde o período colonial até a república. Trabalhadores escravizados e livres sempre se organizaram, de diversas maneiras, para defender projetos políticos, seja de fim da escravização, em defesa da liberdade, igualdade, fraternidade, ou pela independência.
Décadas antes, a Revolta dos Búzios, de 1798, a partir dos ‘boletins sediciosos’ afixados no centro de Salvador, conclamavam para o levante: “Animai-vos, ó povo bahiense. Está para chegar o tempo feliz da nossa liberdade. O tempo em que todos seremos irmãos. O tempo em que todos seremos iguais”. O dois de julho marca a luta pela Independência da Bahia e, sobretudo, a independência do Brasil na Bahia, em 1823, marcada pela derrota do exército português. Temos ainda a Revolta dos Malês, levante realizado em 1835, mas que faz parte de um processo sistemático de resistência e luta por liberdade na ‘cidade da Bahia’ no século 19.
Miléia Almeida, historiadora e professora da rede estadual da Bahia, explica que estas revoltas populares que eclodiram no Brasil na primeira metade do século 19, sobretudo após a abdicação de D. Pedro I, ficaram conhecidas como revoltas regenciais. “Porém, as especificidades regionais de cada levante, assim como suas semelhanças, não cabem nessa definição. O território para esse episódio da nossa História não poderia ser mais fértil em insubmissão e resistência: a província da Bahia, que já protagonizara a Revolta dos Búzios (Conjuração Baiana) em 1798, e a expulsão dos portugueses em 1823, e cuja população negra – cativa ou liberta – recordava constantemente ao governo imperial seus desejos de autonomia, por meio de revoltas em Salvador e no Recôncavo Baiano. Em 1835, o Levante dos Malês cumprira um importante papel de sacudir a capital da província e criar uma atmosfera ainda mais insurgente”, pontua.
Contexto para a insurgência e organização popular
Havia, segundo a professora, uma insatisfação baiana com a administração imperial, e a centralização política provocada pelo Ato Adicional de 1834, que alterava a constituição de 1824, e a renúncia do regente Feijó, aliados à crise da economia açucareira e ao sentimento anti-lusitano, uniu camadas médias e populares.
“Em 1837, militares que temiam o recrutamento obrigatório para combater os farroupilhas no sul do país, acompanhados de civis como o advogado João Carneiro da Silva e o médico e jornalista Francisco Sabino, um homem mulato e descendente de africanos, que emprestou o nome ao levante, saíram do Forte de São Pedro para controlar a cidade, a partir da Câmara Municipal de Salvador”, afirma a professora.
De acordo com Miléia, a Sabinada assumiu um caráter separatista, declarando a província da Bahia ‘desligada do governo denominando central do Rio de Janeiro’, tornando-se um estado independente, a República Bahiense. Porém, entre os revolucionários sabinos havia ideais diversos e por vezes, contraditórios. “Assim, diante da fuga de parte da população por receio da retaliação, eles precisaram rever suas táticas mais radicais, e ainda que proclamassem uma república antecipada, anunciavam fidelidade ao imperador D. Pedro II, ainda infante, após sua coroação”.
Para além da população letrada e com condições econômicas
A historiadora diz que na memória oficial da Sabinada, comumente registrada nos livros didáticos adotados na educação básica – quando a revolta é mencionada – existe uma caracterização das lideranças e da composição do movimento político enquanto apenas uma revolta de pessoas letradas, com alguma condição econômica, distanciada da população mais pobre, e pouco se refere ao seu caráter racial. “Entretanto, novas perspectivas historiográficas apontam que parte significativa da população pobre da cidade deu suporte aos rebeldes nos campos de luta e até mesmo tensões raciais entre livres e libertos abalaram sua condução”, argumenta.
“Por sua vez, sem possuir um caráter abolicionista expresso, o levante não conquistou a adesão da população escravizada, com exceção daqueles que caso se engajassem em suas fileiras de combate, poderiam ser premiados com a liberdade. De fato, ainda que alguns batalhões apresentassem uma solidariedade racial, o fim do edifício escravista não estava no horizonte dos sabinos”, relata Miléia.
Repressão ao movimento de proclamação da República Bahiense
A repressão ao movimento da Sabinada se organizou a partir dos grandes proprietários escravistas e senhores de engenho que se refugiaram no Recôncavo Baiano, para onde foram realocadas as instituições básicas do governo, o que assinala a não-adesão das elites ao projeto separatista.
“A cidade de Salvador foi sitiada com bloqueio marítimo e terrestre e a comida logo se tornou escassa. Por fim, os ataques feitos pela Guarda Nacional aos sabinos resultaram em sua rendição, após quatro meses. Segundo dados oficiais, morreram em combate 1.257 rebeldes e 594 soldados, prenderam-se 2.989 rebeldes e foram deportados 1.520 homens para o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, além de africanos livres degredados para África”, complementa.
No que diz respeito ao caráter racial da repressão, Miléia traz uma afirmação da pesquisadora Juliana Lopes, no texto ‘As cores da revolução: discutindo as identidades raciais na Sabinada (1837-1838)’ , que diz: “a elevada proporção de homens de cor entre os rebeldes presos pode expressar não apenas uma grande adesão negra à causa revolucionária como também, e talvez sobretudo, a preferência dada pelo governo restaurador à prisão e condenação de suspeitos negros em relação aos brancos”.
Como punição, os líderes da Sabinada foram condenados à prisão perpétua, mas se beneficiaram da anistia imperial. Francisco Sabino se refugiou na província do Mato Grosso até sua morte em 1846. “Entre a Revolta dos Búzios e a Sabinada foram ‘quarenta anos de revoltas, motins, levantes escravos, saques e quebra-quebras’ (como diz Lilia Schwarcz e Heloisa Mugerl Starling em ‘Brasil: uma biografia’), que simbolizam a insubmissão de um povo oprimido e explorado pelas classes dominantes, mas historicamente rebelde. Ainda que o projeto central das lideranças sabinas não almejasse a liberdade para a população escrava, a presença de uma solidariedade racial e de classe numa província marcada pela intensa miscigenação e racialização das relações sociais impede que consideremos essa revolta apenas como um levante das camadas médias, isolado de todo o contexto de luta do povo brasileiro”, conclui Miléia.
Legado: o que a sabinada e as revoltas populares tem a nos ensinar
Djacira Maria, educadora e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST-BA), afirma que esse contexto de crise e revoltas regionais refletiam as transformações políticas e econômicas na transição do Brasil imperial para a república. “Essas lutas e conflitos também nos revelam a histórica subordinação externa econômica e política que conformou a república federativa brasileira, a qual se fez também mantendo profundas desigualdades regionais, que marcam o modo de expansão econômica desde o período colonial até os dias de hoje. E também determina a falta de investimentos financeiros, econômicos e culturais para algumas regiões do país. Até hoje algumas regiões, como é caso do Norte, Nordeste e Centro Oeste, estiveram ausentes das políticas de investimentos da grande maioria dos governos”, ressalta Djacira.
Djacira acredita que essas revoltas tiveram grande importância no sentido de questionar a ausência de políticas de Estado em diferentes regiões do país, apontando as desigualdades e revelando o papel político das elites emergentes da alta classe média, a qual se colocava como força política em luta ao nível provincial defendendo a necessidade de maior autonomia dos governos provinciais. “Todavia o que marca a Sabinada, assim como as demais revoltas do período, é que do ponto de vista político, elas ao ocorrerem ao nível localizado, ficaram com grande limitação para enfrentar a forte repressão realizada pela monarquia portuguesa e do seu governo central”.
Outro aspecto considerado pela educadora, é o fato de que o movimento não conseguiu incorporar nas suas fileiras as camadas populares (os negros, os povos originários, os trabalhadores e trabalhadoras do campo) como agentes políticos e de direitos, pois as classes médias e as oligarquias baianas não viam essa parcela da população como sujeitos políticos.
“Desse modo, apesar desses segmentos buscarem uma maior autonomia para as províncias, as perspectivas políticas não ultrapassaram a crítica ao poder do governo central, com isso não foram capaz de gestar um movimento de libertação nacional. Apesar das inúmeras revoltas em nosso território, sem negar a importância e as contribuições históricas destas lutas na formação social brasileira, contudo, até hoje permanece inconclusa a libertação do nosso país da subordinação e da dependência externa bem como a necessidade de consolidação de um regime democrático, onde verdadeiramente o povo brasileiro seja os construtores da pátria soberana e democrática”, finaliza Djacira.
*Editado por Fernanda Alcântara