Como foi a experiência do programa de alfabetização ‘Sim, eu Posso’ na Bahia
Por Jamile Araújo
Da Página do MST
Com uma população estimada em mais de 14,9 milhões de pessoas, o estado da Bahia teve uma taxa de analfabetismo de 12,9% em 2019, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), divulgada em julho deste ano pelo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). São cerca de 1,5 milhão de baianos e baianas, de 15 anos ou mais, sem saber ler e escrever um bilhete simples.
A taxa geral nos últimos anos foi de: 13% em 2016; 12,7% em 2017; 12,7% em 2018. A estagnação em 2017 e em 2018, e aumento da taxa no estado em 2019, vai na contramão da meta de erradicação do analfabetismo, estabelecida pelo Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2014, para reduzir a zero o índice de analfabetismo absoluto até 2024 no Brasil.
O índice tem relação direta com a redução dos investimentos na educação e com a Emenda Constitucional 95/16. Em contraponto, os movimentos sociais vêm construindo alternativas populares de alfabetização no campo e na cidade, aliadas às lutas pela democratização do acesso à educação básica e superior.
O método de alfabetização cubano “Sim, eu posso”, responsável pela erradicação do analfabetismo em Cuba, já foi utilizado em mais de 30 países. Utilizando vídeo-aulas, turmas de até 15 pessoas e um educador ou educadora, o método é aplicado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) desde 2007, e já alfabetizou milhares de pessoas.
“Sim, eu posso” alfabetizou 300 pessoas na Bahia
Thaise da Rocha, do coletivo de educação do MST na regional Extremo Sul, na Bahia, conta que as experiências com o ‘Sim, eu Posso’ foram positivas na região, pois a implementação do método além de alfabetizar, também ajudou na organicidade das áreas. “Além do conhecimento gerado pelo estudo, que tirou mais de 300 estudantes da linha do completo analfabetismo, as comunidades se fortaleceram com a unidade desenvolvida nas turmas. Companheiros que quase não se falavam passaram a dividir dificuldades e superá-las em conjunto. O ‘Sim, eu Posso’ reavivou a esperança e a solidariedade nos corações dos companheiros”, relata.
A mobilização das turmas se deu nas áreas de acampamentos e assentamentos do MST. “O objetivo era erradicar o analfabetismo em nossas áreas e potencializar a agroecologia. Visto que não pode existir agroecologia numa área de exclusão, em qualquer nível que seja”, descreve Thaise.
Dos limites encontrados, a militante conta que, na região mais próxima à Costa do Descobrimento, foi o período em que as aulas aconteceram. “O período de aulas culminou com a colheita do café, que é culturalmente forte na região. Muitos estudantes precisavam ir para outros lugares trabalhar e isso prejudicava a sequência do trabalho. Então, tivemos que nos reinventar e acompanhar a realidade de nossos educandos, criando junto com eles, mecanismos que nos possibilitasse seguir os estudos sem deixar ninguém para trás”.
Outro fator importante foi um surto de Chikungunya na região, que demandou replanejamento dos tempos de aula em algumas áreas.
Thaise coordenou as experiências de alfabetização nas Brigadas Elias Gonçalves de Meura e Ernesto Che Guevara, que têm acampamentos e assentamentos pertencentes às cidades de Eunápolis, Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália, Itabela e Guaratinga. O programa “Sim, eu Posso”, no extremo sul da Bahia, formou um total de 29 turmas.
Aprender ensinando: a experiência das educadoras
Um das educadoras, a Sem Terra Leildes Alves de Almeida, foi convidada em 2016, junto com outras companheiras e companheiros, para contribuir na alfabetização na Brigada Elias Gonçalves de Meira.
“Fizemos uma capacitação na Escola Egídio Brunetto, para entender como funcionaria o método. Era em vídeo-aulas, onde tinha ali uma educadora e alguns educandos. Tinha todo um processo, o primeiro momento era de acolhimento, onde eu era a monitora. Assistíamos a aula sem interrupção, para que os educandos entendessem o conteúdo, ali eu já construía em cima de cada aula algo a mais para passar para eles”, explica Leildes.
A educadora diz não saber descrever em palavras como foi ver pessoas de idade ter a oportunidade de, depois de tantos anos, começar a aprender ler e escrever. “Muitos não sabiam fazer o seu próprio nome, não sabiam segurar o lápis, e, ao fim do tempo que leva o ensino, todos já sabiam ler e escrever”.
E completa: “ter tido a oportunidade de contribuir com esse método foi de uma grandeza inexplicável. É muito gratificante poder ajudar a tantos, que quando jovens não puderam, por vários motivos, ir à escola”.
De acordo com Leildes, foi um grande desafio contribuir com o método, porque era simples e, ao mesmo tempo, complexo. “Estávamos lidando com pessoas mais velhas, já com certa idade que ‘voltaram a ser criança’. Para mim foi um desafio, achei que eu não teria capacidade, mas consegui chegar até o fim, e sair mais rica em conhecimento. É lindo e gratificante”.
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Soletrando a liberdade e transformando vidas
“Para um cidadão comum e letrado, a leitura de uma palavra é um ação simples de pequena apreciação, ‘não importante’. No entanto, essa ação, quando parte de um sujeito não letrado e não alfabetizado, torna-se uma ação de afirmação e transformação”, afirma Flávio da Silva Santos.
Flávio Pernambucano, como é conhecido, contribuiu com a experiência de alfabetização no Extremo Sul da Bahia, integrando a Brigada Nacional Santa Bárbara. Santos diz que reconhecer e decodificar as palavras é um ato revolucionário. “É abrir um horizonte que estava encoberto por vários motivos. É ter a chance de ter um olhar diferente. ‘Soletrar a liberdade’”.
Ele ressalta a importância do educador enquanto sujeito partilhador do processo: “o educador consegue sentir essas transformações de muito perto, o soletrar das palavras, as junções das sílabas. Cada palavra lida é como um reconhecimento da evolução do trabalho”, pontua.
Outro elemento que Flávio comenta, é o do resgate da autoestima dos educandos e dos educadores. “É notório como os alunos elevam a autoestima no decorrer da alfabetização, e os educadores passam pelo mesmo processo, em especial os que não tem formação acadêmica, meu caso. O empoderamento do educador, a alegria em mudar o registro geral (RG), em tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), não ter mais que sujar os dedos de tinta para assinatura”, lista.
O militante acredita que ser educador no ‘Sim, eu posso’ é compartilhar saberes comunitários, viver os princípios da solidariedade. “Eu particularmente, em minha primeira experiência com o método, convivi por quatro meses em um acampamento. Fui acolhido pela comunidade, em especial pela família acolhedora, e que não só me considerou, como ainda me considera até hoje como um filho. Lá eu plantei, lavei, colhi e pratiquei diversas atividades de envolvimento com a comunidade, até em decisões importantes”.
Ao finalizar o processo de alfabetização, o que fica de legado são aprendizados, autoestima elevada, vínculos afetivos e saudade. “Nesse período, fomos ouvintes na maioria das vezes, choramos, sorrimos, comemoramos e festejamos juntos. E de repente você é de outro estado e a afetividade, o vínculo criado, tudo acaba se tornando saudades. Foi um aprendizado enorme em sala de aula. Eles, os educandos, têm muito a nos ensinar”, diz.
Flávio, comenta ainda, que para ele, “o método ‘Sim, eu posso’ é muito pedagógico, em especial para os educadores. O trabalho de base, as mobilizações das comunidades, construções e parcerias. Enfim, um ato revolucionário”. E finaliza com uma palavra de ordem: “Sim, eu posso! Ler e escrever, essa é uma conquista do MST”.
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*Editado por Ludmilla Balduino