Proclamação da República Brasileira: um golpe sobre o golpe

Entenda o real sentido da Proclamação da República no Brasil para também compreender a relação desse momento histórico com o mais recente golpe político nacional
A proclamação da República: um golpe disfarçado de civilidade (Imagem: reprodução/óleo sobre tela/Benedito Calixto/1893)

Por Setor de Formação do MST
Da Página do MST

Para compreender a ruptura entre o governo monárquico e a implantação da novo governo republicano no Brasil, através do ato de Proclamação da República, antes de mais nada, é preciso compreender o contexto do país no período, bem como o caráter desse evento, que para Florestan Fernandes, marca o início dos eventos de uma Revolução Burguesa no Brasil.

A Proclamação da República, ocorrida no dia 15 de novembro de 1889, foi um acontecimento de grande envergadura na história no Brasil, em que através de um Golpe civil-militar chefiado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, (chefe do Exército brasileiro à época), destituiu Dom Pedro II do governo monárquico Constitucional Parlamentarista e instituiu o governo provisório da Republica presidencialista, do qual Marechal foi destacado como presidente, ordenando ao imperador que se retirasse do Brasil.

Importante analisar não só o evento que pôs fim ao regime político monárquico, mas sobretudo, o contexto político, econômico, de administração do sistema colonial, que deram origem ao golpe e aos seus desdobramentos posteriores. Desde 1860 havia a ocorrência de uma crise do poder monárquico que vinha se agravando, cujas características eram relacionadas à administração, crise econômica (dívidas a países credores), incidentes diplomáticos com a Inglaterra, etc. Havia a insatisfação com o governo imperial por parte de uma elite latifundiária escravista açucareira e junto à esta se somava a nascente burguesia cafeicultora, que pretendia conduzir a hegemonia do desenvolvimento da agricultura e indústria emergente, e para tanto, pretendia que a expansão dos seus negócios na Europa fosse dirigido por ela e não pelo governo imperial.

A crise também era de legitimidade do governo, uma vez que a Guerra do Paraguai (1864-1870), causou enormes desgastes para o governo: os soldados brasileiros recrutados para a guerra foram na maioria escravos (em torno de dez mil escravos participaram das campanhas da guerra que destruiu o país vizinho e aqueles que retornaram não receberam alforria como havia sido prometido). Ao mesmo tempo, começava a ser questionado pelo Exército brasileiro a posição subordinada do Brasil à Inglaterra e à Portugal. Tudo isso, somado à pressão para que Dom Pedro II renunciasse a função de imperador do Brasil. 

Por outro lado, havia grande efervescência política no país, onde os movimentos abolicionistas que já eram fortes, pressionavam as elites latifundiárias para o fim do tráfico e do trabalho escravo, assim como as massas se sentiam inflamadas por esse anseio. Os escravos aumentavam as revoltas liderando dezenas de fugas e formando os quilombos. Havia uma situação de limite para a continuidade do trabalho escravo em que os latifundiários não podiam mais controlar devido a pressão no meio político e social. Até mesmo o exército se recusava a capturar escravos fugitivos. E ainda, a pressão da Inglaterra, baseada em interesses comerciais para que o Brasil cessasse o trabalho escravo, a fim de que a produção açucareira do país não ameaçasse seus negócios nas Antilhas.

 Diante deste contexto, os interesses da elite latifundiária junto ao descontentamento do Exército forjaram a unidade necessária para o golpe que se deu pelo alto, pela direção da elite latifundiária, da burguesia industrial emergente e do Exército sem a participação do povo. A proclamação da República, portanto, é um golpe sobre outro golpe.  A primeira república cria a partir daí as condições para o desenvolvimento do capitalismo e da burguesia brasileira, não mais pela direção imperial, mas de caráter nacional, e ela começa a desenvolver um projeto de nação segundo seus interesses, na construção de uma estratégia consorciada com a burguesia internacional, especialmente as ligadas ao comércio do açúcar e do café.

A bandeira brasileira do período monárquico foi reformulada e a nova bandeira nacional foi inspirada nas ideias do filosofo francês Auguste Comte, o qual defendia que Ordem e Progresso, são os pilares, as “condições fundamentais da civilização moderna”. Através da articulação de Benjamin Constant (militar e professor na Escola Militar e na Escola Superior de Guerra, da Praia Vermelha no Rio de Janeiro), admirador de Comte, transforma o discurso positivista “Ordem e Progresso” em lema na bandeira nacional, e assim, ela se torna a expressão da autocracia burguesa e sua filosofia de poder.

Em síntese, essa é a tônica da Proclamação à República. Com o desgaste e deslegitimidade política do governo imperial, a elite latifundiária recorre ao golpe para a tomada do poder segundo seus interesses e para evitar uma revolução social por parte dos escravos que estava em eminência. E por isso, as mudanças foram operadas pelo alto sem a participação do povo. O comportamento da classe dominante, conforme analisa Florestan Fernandes, foi sempre o de manter o povo afastado do cenário político. O alerta eminente ante um Estado de revolta das massas faz com que a burguesia esteja sempre de prontidão para garantir que o Estado seja hábil para agir diante de uma ameaça popular. Importante frisar que a transição da independência política do poder imperial para a república foi feita sem questionar a exploração e a dominação decorrentes de nossa posição subalterna na divisão internacional do trabalho que se organizou em torno dos interesses do império britânico.

A abolição dos escravos foi feita sem superar a segregação social e ela foi operada a partir de uma elite branca para os brancos. Mais tarde, a industrialização sob o comando da elite latifundiária ficou a reboque do capital internacional e da elite latifundiária, com base nas relações de monocultura, trabalho escravo ou semi, comprometendo definitivamente a construção de um projeto de nação. Assim como a própria revolução burguesa terminou, em 1964, segundo Florestan, como uma nova contrarrevolução preventiva ao ascenso das massas e consolidou o capitalismo brasileiro como um capitalismo dependente autocrático. A classe dominante definiu o inimigo comum: no passado o escravo; no presente, o proletariado do campo e da cidade.

A Republica proclamada em 15 de novembro de 1889 e a nova constituinte não enfrentaram as principais mazelas do nosso país e não resolveram as graves desigualdades sociais do período, principalmente a do escravo que enfrenta a carga histórica do preconceito pela cor da pele através dos diversos tipos de açoites nos dias atuais. 

Com o Golpe de Estado de 2016, vivemos os retrocessos no âmbito das principais conquistas constitucionais de 1988, e através disso, a crise terminal da Nova República do século XX, dados os graves problemas estruturais do nosso país. Enquanto isso, a burguesia, (seja ela agrária, industrial ou financeira rentista), não aceita que seja colocado em risco seus interesses e seus privilégios seculares. Ela tem sempre uma resposta autoritária ainda que disfarçada de liberal/neoliberal. Não é à toa que a história brasileira produz processos semelhantes porque a dominação burguesa tem essa natureza e essa característica. Não significa mera repetição na história, mas, faz parte da lógica da burguesia brasileira usar a sua forma específica, autocrática, de dominação de classe para a manutenção do seu poder burguês. Não é de se admirar que seja aceito, atualmente, com certa naturalidade, um governo golpista, miliciano/fascista como o Bolsonaro, ligado aos aparelhos de repressão da ditadura e da ala obscura das forças armadas para governar o país.  O fascismo foi o desfecho deste novo golpe que se repetiu na história do Brasil como uma verdadeira tragédia sobre as classes populares.