Luta por Reforma Agrária transforma “casa grande” em Centro Cultural, no Paraná

O espaço hoje é um anfiteatro onde há diversas apresentações culturais, cursos e oficinas

Centro Cultural Casarão abriga o centro comunitário do Assentamento Contestado, na Lapa (PR). Foto: Wellington Lenon

Por Lucas Souza
Da Página do MST

No centro comunitário do Assentamento Contestado, localizado no município da Lapa, no Paraná, há uma construção muito antiga: O Centro Cultural Casarão. O espaço recebe espetáculos de teatro, dança, música, cursos e oficinas. No assentamento vivem 160 famílias, sendo 108 assentadas e outras 52 que compartilham o espaço, entre filhos e parentes dos assentados. 

Palco de importantes acontecimentos da comunidade e da região, o Casarão foi personagem de grandes mudanças no território em que está compreendido. Sua história, de um espaço privado até sua utilização para o uso coletivo, já foi inclusive objeto de estudo de Dalvan Joel Petry Mallmann e Tania Marcia Bagnara, camponeses que se formaram historiadores ao longo dos anos que vivem no assentamento e realizaram a pesquisa: “A Casa Grande do Assentamento Contestado: A trajetória de um espaço privado e coletivo”.

O nome do assentamento faz referência ao conflito armado que envolveu posseiros e pequenos proprietários de terras, o governo federal e estadual de Santa Catarina e Paraná. Ao todo, estima-se que 10 mil pessoas perderam suas vidas na Guerra do Contestado, entre 1912 e 1916.

O território que compreende o Assentamento Contestado tem área total de 3.228 hectares, dos quais 1.240 são de proteção ambiental. Seu nome mudou algumas vezes durante os anos, foi Fazenda do Registro Velho, Fazenda Bom Jardim e Fazenda Santa Amélia. Como todo o Brasil, foi originalmente roubada pela coroa portuguesa e doada para famílias poderosas no ano de 1740. 

Casarão da Lapa (PR) é a representação da libertação da terra e de quem trabalha nela. Confira!

A área tornou-se muito relevante com o destaque que os Campos Gerais e a cidade da Lapa tiveram durante o período do tropeirismo. As tropas de muares vindas do Rio Grande do Sul pela Estrada de Viamão, aberta em 1731 e com destino a Sorocaba, faziam uma importante parada nos Campos Gerais, no segundo planalto do estado do Paraná, para a invernagem dos animais.

Foi no auge deste ciclo econômico que o empresário de tropas e escravocrata David dos Santos Pacheco construiu a “casa grande” de sua Fazenda, chamada na época de Fazenda Registro Velho. O Casarão do Assentamento foi construído com mão de obra escravizada no ano de 1835, no estilo colonial e utilizando a técnica de taipa francesa. 

Segundo a pesquisa realizada por Dalvan e Tania, em 1827 havia escravos na Fazenda. Décadas mais tarde, houve um grande aumento no número de escravos nas propriedades de David dos Santos Pacheco, chegando a 34 no ano de 1873, conforme a pesquisa de Cláudia Bibas do Nascimento, intitulada Múltiplos Olhares Sobre a Presença Negra na Lapa. Essas pessoas realizavam as mais diversas atividades, de trabalhos domésticos a serviços de sapataria, marcenaria e agricultura de subsistência. 

Como importante figura política, o Barão dos Campos Gerais participou ativamente dos acontecimentos relevantes do século XVIII. Dentre estes, as alforrias realizadas no estado do Paraná durante as décadas que antecederam a Lei Áurea, de 1888.

Alguns escravos foram libertos e  permaneceram trabalhando nas fazendas, em áreas que hoje são comunidades quilombolas. Durante a visita do imperador D. Pedro II ao Paraná em 1880, David dos Santos Pacheco realizou a alforria de todos os seus cativos em fazendas no Paraná e Rio Grande do Sul, um ato que concedeu prestígio ao Barão.

As comunidades quilombolas do Feixo e Restinga,  áreas que escravos alforriados receberam para viver e continuar trabalhando nas mesmas terras. A Vila Esperança  foi construída ao longo dos anos, com o aumento do número de pessoas nos quilombos do Feixo e Restinga.

Nelson e Roseli Santana, assentados no Contestado há cerca de 19 anos, são originários do Quilombo do Feixo. Também nascido no mesmo Quilombo, o pai de Roseli trabalhou ainda na década de 1950 na fazenda Santa Amélia. A filha relembra com pesar as dificuldades que o pai, a mãe e a irmã viveram enquanto moravam no território em que hoje vivem produzindo alimentos.

Nelson conta que quando era criança e vivia no Quilombo, tinha que por vezes “tiguerar” para conseguir alimento. “A minha mãe dizia: filho, hoje não temos comida, vamos ter que ‘tiguerar’”, conta Nelson. O senhor explica que buscava nas roçadas, onde a colheita já havia sido feita, a tiguera, por comida que pudesse ter sobrado nesses locais.

Estrutura antiga do Casarão abandonada quando a fazenda foi ocupada pelo MST em 1999. Foto: João Urban

Com o fim do ciclo do tropeirismo e a falta de interesse dos proprietários, a área passou a dar prejuízo, como é relatado em trocas de cartas do responsável pela fazenda com o dono, correspondências recuperadas por Dalvan Petry. Em 1986, os descendentes do Barão vendem a fazenda para uma empresa de cerâmicas, a Incepa.

Durante as décadas de 70 e 80 o Casarão ficou em ruínas, passando por uma reforma apenas em 1986 e tornando-se museu em 1992. “O casarão é a única construção naquele espaço que resistiu ao passar dos tempos”, coloca Dalvan. 

Em 1999, sabendo das diversas dívidas públicas da Fazenda, famílias do MST ocupam o território, em que hoje, além do centro cultural, há escolas de todos os níveis de ensino da rede estadual, a Escola Latino Americana de Agroecologia, com cursos de graduação, posto de saúde onde se cultiva medicina natural, uma cooperativa 100% agroecológica e uma grande produção de alimentos.

Visão interna do Casarão, após a reforma. Foto: Wellington Lenon

Em 2018 concluiu-se outra reforma do Casarão, que manteve a sua estrutura principal, mas recebeu melhorias de hidráulica, elétrica, de mobilidade e técnicas. O espaço hoje é um anfiteatro onde há diversas apresentações culturais, cursos e oficinas.

Foto: Wellington Lenon

O Assentamento Contestado é um exemplo de libertação da terra, dentro daquele território havia trabalho escravo. A Reforma Agrária veio, mesmo que tarde, para  libertar aquele espaço e utilizá-lo de uma forma que beneficia todas as  famílias que vivem no seu território. 

*Editado por Solange Engelmann