Para que(m) serve o Enem na pandemia?

Por que os apelos e movimentações dos estudantes, mobilizados pelo adiamento do Enem, foram ignorados?

Imagem da entrega de manifesto do Movimento dos Sem Terra (MST) contra o fechamento de escolas rurais, em 2014. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por Coletivo Nacional de Juventude
Da Página do MST

O próximo domingo (24) já está marcado no calendário de muitos brasileiros. É o segundo dia de provas da segunda maior avaliação de ingresso ao Ensino Superior no mundo, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que permite o ingresso à diversas universidades do país, públicas e privadas. Entretanto, diferentemente dos anos anteriores, o clima é de apreensão, ansiedade, insegurança e frustração diante da irresponsabilidade, falta de diálogo e irredutibilidade diante da aplicação da prova em um momento de alta dos casos do Covid-19.

Vimos essa expressão clara no número ausências de inscritos no Enem desse ano, demonstrado em diversos aspectos a fragilidade do EAD, que tem diversas lacunas na sua materialidade, como o descontentamento e desânimo da juventude brasileira com o desmonte da educação. Essa juventude que não teve acesso a uma boa preparação para o Enem na sua grande maioria pobres.

Ao mesmo tempo, os apelos e movimentações dos estudantes, mobilizados pelo adiamento do Enem, foram ignorados. Houve inclusive uma votação online pela escolha de uma nova data para a prova, que pelo resultado, deveria ter sido adiada para maio de 2021. O adiamento aconteceu por pressão dos estudantes, entretanto, na decisão, da nova data não foram consultados.

O Enem foi criado em 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, como parte de uma prática das políticas neoliberais sendo apenas uma avaliação da qualidade da educação em números. De instrumento avaliativo do Ensino Médio no final da década de 90, o Enem tornou-se um exame que possibilitou o ingresso no Ensino Superior, a partir da criação do Programa Universidade Para Todos (ProUni), em 2004, no governo Lula. Desde sua reformulação, a prova ficou cada vez mais popularizada entre estudantes e também interessados em entrar na universidade, chegando a mais de 9 milhões de candidatos e candidatas em 2014, um recorde.

Em diversos lares, o Enem foi a porta de entrada para o primeiro membro da família à entrar na universidade. Um pouco mais acessível do que os vestibulares tradicionais, caros e conteudistas, a prova, em sua segunda versão, adotou o modelo de Teoria de Resposta ao Item (TRI) para tornar menos desigual a disputa, que valoriza mais o domínio de conteúdos e a interpretação e deixa de lado a “decoreba” que trazem tanto pavor ao estudante das escolas públicas.

Isso não torna o exame e seus responsáveis isentos de críticas. Na sociedade pela qual lutamos, provas de admissão ao ensino superior não seriam necessárias, pois haveriam de ser acessíveis a todos e todas. Por outro lado, devemos reconhecer os esforços em diminuir os abismos que haviam entre uma elite, que formavam seus filhos e filhas nas instituições acadêmico-científicas para mandar nos filhos e filhas da classe trabalhadora, que pouco tinha acesso à essas oportunidades.

Outra consideração necessária é do quanto as universidades particulares foram fortalecidas com o ProUni e Fies (Financiamento Estudantil), sendo este último o causador de endividamento de diversos estudantes pobres, quando o Ministério da Educação poderia ter adotado uma política de mais orçamento, ampliação e criação de universidades federais. Com certeza essa seria uma diferença positiva hoje no atual estágio da pandemia, com mais instituições públicas contribuindo nas pesquisas de combate ao Sars-Cov-19.

Hoje, o cenário é bastante desolador: com a PEC do Teto de Gastos, que mantém o mesmo orçamento para os setores públicos durante 20 anos, sem aumentar nem corrigir de acordo com a inflação, a educação e a saúde ficaram extremamente prejudicadas.

Desmontar o Enem é parte da lógica de acabar com o sistema público brasileiro, precarizando a maior prova de admissão no ensino superior do país, bem como as instituições públicas como um todo. É o elitismo pensado para retirar cada vez mais trabalhadores e trabalhadoras da universidade.

Educação na Pandemia: A gente finge que ensina, vocês fingem que aprendem

Nem todos tiverem direito à quarentena. Na condição de jovens rurais, inclusive, essa realidade de isolamento muitas vezes já estava posta antes da pandemia, mas nas cidades, quase sinônimos de aglomeração, a decisão estava mesmo entre o vírus ou a fome. O número de desempregados e desalentados (que desistiram de procurar emprego) só aumenta diante de uma crise sem precedentes.

Pessoas próximas se foram, a comida começa a faltar, os casos de violência doméstica aumentam, assim como os conflitos, seja pelo convívio ou ainda pela falta dele. É irônico que o tema da redação tenha sido sobre estigmas sobre a saúde mental no momento em que a maior prova do país é aplicada no auge da segunda onda de Covid, enquanto durante o ano inteiro houveram aqueles que puderam se preparar no conforto de suas conexões, cursinhos virtuais e lares aconchegantes, e outros que não tinham um aparelho de celular próprio, internet ou cômodo para estudar. É uma ironia, porém sem graça nenhuma.

Não raro, professores de escolas públicas, em suas salas virtuais esvaziadas, com dificuldades diversas, desabafaram: a gente finge que ensina, vocês fingem que aprendem.

A realização do Enem no último domingo foi comemorada pelo governo federal não por desconhecimento ou escárnio: É de um projeto que estamos falando. Mesmo com todas as dificuldades listadas, os alertas sobre os riscos de contágio e a elevação de casos da segunda onda, o Ministério da Educação escolheu não ouvir ou dialogar com os estudantes, que haviam optado pela aplicação da prova em maio de 2021.

Temos no Governo Bolsonaro os mesmos ingredientes que orientaram a criação do Enem em 1998, do receituário neoliberal, com mais amargor e acidez para os sonhos da juventude da classe trabalhadora. Entretanto, assim como o Enem se modifica para buscar dar vazão à estes sonhos aprisionados, nós haveremos de transformá-lo novamente até que não seja mais necessário. Não permitiremos ele seja desmantelado e esvaziado até alcançarmos os propósitos que almejamos: a universidade pública, gratuita, acessível para todos e todas, e popular, comprometida com os interesses do povo trabalhador.

A China emitiu alertas sobre o novo coronavírus em dezembro de 2019. Em janeiro e fevereiro de 2020, muitos países começavam a fechar suas fronteiras e entrar em quarentena, enquanto outros já começavam a sentir os efeitos caóticos da pandemia. O Brasil só começou a pensar em um plano de ação, muito forçadamente, em finais de março, meados de abril e até hoje esse plano deve estar em pensamentos (se é que houve algum). A quarentena para a maioria dos brasileiros e brasileiras não foi uma opção, e ao mesmo tempo que se avançava as contaminações, o vírus da fake news também ganhou terreno. Portanto, reafirmamos: não é por despreparo, e sim premeditadamente que ocorre essa tragédia anunciada, na saúde e também na educação.

Está colocado o desafio para a juventude brasileira de defender a educação pública, gratuita e de qualidade. Lutar contra esse desgoverno que retira os direitos do povo brasileiro, inovar mas formas de luta, avança na resistência e organização da juventude brasileira!

*Editado por Fernanda Alcântara