A crise sanitária no Amazonas e sua evitabilidade

Artigo traz perspectiva sobre a situação alarmante da saúde pública no Amazonas e no país

Ala Indígena no Hospital Nilton Lins, em agosto de 2020, antes do segundo colapso na saúde do estado. Foto: Agência Brasil.

Por Giliad de Souza Silva
Da Página do MST

O hospital de referência de Manaus não tem mais profissionais de saúde suficiente para receber novos casos de internação por Covid-19. Esta realidade se replica em outros três hospitais de apoio, todos superlotados. As ambulâncias do SAMU, com pacientes de Covid-19, não conseguem encontrar vagas em hospitais, pois estão todos lotados. Os pacientes, gravemente adoentados, se aglomeram nos corredores, à espera de atendimento, pois não há leitos ou macas disponíveis.

Câmaras frigoríficas estão sendo instaladas em todos os hospitais públicos para armazenar corpos. O número de sepultamentos aumentou consideravelmente, o que levou à necessidade de enterros em valas coletivas e a construção de gavetas nos cemitérios, por falta de espaço no chão. A situação do sistema de saúde é de completo colapso.

Este é o quadro de Manaus em janeiro de 2021. Mas é provável que qualquer pessoa um pouco menos informada pensasse que este quadro refere-se a abril ou maio de 2020, até então o pior momento da pandemia. Para se ter noção da gravidade, os primeiros quatro dias de janeiro registraram uma quantidade maior de internações do que as que ocorreram em julho, agosto ou setembro de 2020.

Até janeiro de 2021, havia um crescimento do número de casos, mas estabilização da quantidade de óbitos por Covid-19. Porém esse quadro se reverteu rapidamente, a partir do final de dezembro de 2020, e a explicação para isto pode ser dada por duas óticas.

Responsabilidade

A primeira ótica diz respeito a questões conjunturais, e tem elemento basilar o total descumprimento a medidas de isolamento social. Em um contexto sem imunizante (vacina), esta é a única medida que pode conter o avanço da doença e reduzir a pressão sobre os hospitais. Manaus foi a primeira cidade brasileira que viu seu sistema de saúde colapsar em função da pandemia, entre maio e abril de 2020. Mesmo assim, em dezembro de 2020, a principal demanda da burguesia comercial local era a revogação do decreto emitido pelo governo do Amazonas, aplicando medidas restritivas.

O governador Wilson Lima (PSC), um político bolsonarista, cedeu às pressões e suspendeu o decreto de restrição, mesmo à revelia de todas as recomendações sanitárias. O resultado direto disto foi o aumento súbito do número de internações. O pico de internações em um único dia, até então, havia sido em abril, cujo recorde foi de 105 pessoas. Nas primeiras semanas de 2021, internaram-se quase 200 pessoas por dia. Os profissionais de saúde entraram em 2021 exauridos e sem as condições mínimas de trabalho, já que faltava EPIs (equipamentos de proteção individual) e testes.

Cabe destacar ainda que, após o pico de casos e óbitos em abril e maio, o governo estadual desmontou a maioria dos equipamentos provisório de saúde, passando a impressão de que “o pior já passou”. Com isso, outros setores da sociedade perderam totalmente a mobilização, relaxando as medidas preventivas e organizando diversos espaços com aglomeração de pessoas.

Se a primeira ótica tem uma dimensão conjuntural, a segunda tem contornos estruturais. Essa pandemia tornou ainda mais evidente as diversas desigualdades que sofre o Brasil. Uma delas é a desigualdade regional. O Brasil entrou em pandemia, segundo os dados oficiais (portal DataSus) com uma média de 17,5 leitos de UTI (somando adulto, pediátrica e neonatal, e tipo 1, 2 e 3) por 100 mil habitantes, ou seja, cada leito atendia, em média, a 5,7 mil pessoas.

A região Norte tinha uma média de 7,49 por 100 mil habitantes, no caso, 13,3 mil pessoas por leito, quase 2,5 vezes a mais do que a média nacional. A quantidade total de leitos da região Norte representava 3,8% dos leitos totais no Brasil, enquanto que sua população representa 8,8% de todos os brasileiros. A região Sudeste, por exemplo, possuía uma média de 21,7 por 100 mil habitantes, no caso, 4,6 mil pessoas por leito. Os leitos do Sudeste representavam 52% do total de leitos no Brasil, enquanto que sua população representa 42% dos brasileiros.

Os 6 piores estados em relação a esses equipamentos de saúde eram da região norte, sendo que o Amazonas estava como o terceiro pior. Em novembro, o Amazonas se torna o pior estado em infraestrutura hospitalar, tendo a pior relação de leitos por 100 mil habitantes do Brasil. Ainda tem o agravante de todos os leitos de UTI encontrarem-se em Manaus, capital do estado.

Além de saturar o uso dos equipamentos hospitalares mais elementares para enfrentar a Covid-19 (leitos de UTI e respiradores), Manaus passou a lidar com a falta abrupta de insumos, sendo oxigênio o mais destacado. Sobre isso, é importante salientar que essa escassez de oxigênio, não pegou o Ministério da Saúde de surpresa, posto que os registros feitos forças oficiais do SUS (grupo que existe desde 2011), uma semana antes do momento crítico. Nestes registros continham tanto as previsões para a situação crítica de oxigênio (e seu resultado, no caso, pessoas falecendo por asfixia), quanto a superlotação dos leitos de UTI. Ademais, o próprio ministro da saúde, que é de Manaus, disse em entrevista que ouviu de uma cunhada que os estoques de oxigênio estavam acabando.

Alinhamento político

Todos esses elementos revelam o profundo alinhamento entre a prefeitura de Manaus, o governo do estado e a presidência da República. Um alinhamento cuja trama se constitui tanto no nível ideológico quanto no nível técnico. Prefeitura, governo do Estado e presidência da República (através do Ministério da Saúde) atuavam conjuntamente na formulação e análise de dados sobre a condição do sistema de saúde de Manaus.

Logo, não é apressado afirmar que esses três níveis do estado federativo brasileiro atuando em Manaus tinham informação sobre o colapso antes do mesmo ocorrer. Sabiam que a falta de oxigênio estava em escala crescente, sabiam dos problemas logísticos (cabe a União garantir o transporte) e sabiam que o colapso chegaria nos termos que chegou (talvez não soubessem da velocidade). Sabiam, tinham todas as informações da calamidade que atingiria Manaus e escolheram não agir.

Além da própria dinâmica epidemiológica, que já garante a emergência de novas variantes, a população brasileira tem que lidar com inimigos bastante concretos, que é o bolsonarismo e os setores da burguesia que lhe dão sustento. Em Manaus e no estado do Amazonas, esses problemas são potencializados ao limite. Isto porque não enfrentam apenas um contexto altamente desfavorável, com a circulação de uma nova variante do coronavírus, com governos estadual e municipal comprometidos com o modo bolsonarista de fazer política (a política de “deixar morrer”) e com as pressões de setores da burguesia para flexibilizar na íntegra as medidas preventivas, mas também um quadro de desigualdade regional cruel.

Enfrentar essa realidade passa necessariamente tanto por derrotar o bolsonarismo e seu modo de fazer política quanto por dirimir os problemas infraestruturais manifestos pela desigualdade regional. Se o objetivo deste enfrentamento não for uma resolução paliativa, deve-se ter em mente que o problema de Manaus é também um problema da Amazônia. Logo, é um problema do Brasil.

*Giliad de Souza Silva é Professor de Economia e do Mestrado em Planejamento e Desenvolvimento Regional e Urbano na Amazônia na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)