Centenário Paulo Freire

Companheirar-se, a marcha do educador até a práxis junto às classes populares

Neste domingo (2/5), completou-se 24 anos da morte do patrono da educação brasileira. Saiba mais sobre quem foi Paulo Freire
Paulo Freire, patrono da educação brasileira. Foto: Arquivo
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Por Geanini Hackbardt
Da Página do MST

“Ninguém educa ninguém.
Ninguém educa a si mesmo.
As pessoas se educam entre si,
mediatizadas pelo mundo”
Paulo Freire

Paulo aprendeu a ler com seus pais debaixo da sombra de uma mangueira. Era uma pessoa de presença com inteireza. Bondoso e duro quando era necessário. “Se alguém quiser me insultar que me chame de santinho”, dizia. Ele levava em si a generosidade de menino e a coletividade do adulto. No dia 2 de maio de 1997, aos 75 anos, o grande educador brasileiro partiu, deixando a viva memória da crítica à educação brasileira, de caráter “bancário”, algo que perseguiu durante toda a trajetória de vida.

Paulo Reglus Neves Freire nasceu no Recife, em 19 de setembro de 1921, no bairro Casa Amarela. Mudou-se para Jaboatão, litoral de Pernambuco, ainda criança. Seu pai, Joaquim Temístocles Freire, era do Rio Grande do Norte, sargento do Exército, e a mãe, Edeltrudes Neves Freire, era dona de casa, bordadeira e pernambucana. A família, que tinha condições de vida relativamente boas, viu aos poucos chegar a pobreza, especialmente a partir da crise de 1929. E o menino que aprendia a ler o mundo, percebeu desde cedo as dificuldades de sobrevivência das classes oprimidas.

A alfabetização de Paulo foi feita a partir das palavras da infância, da vivência cotidiana, o que anos depois certamente influenciou seu trabalho de alfabetizador. Quando o menino chegou à escola, sua primeira professora o encontrou fazendo cópias e “lendo direitinho”. Ele entrou no ginásio aos 16 anos, através de uma bolsa de estudos e desde os 17 já dava aulas de Português e estudava, por conta própria, as questões da linguagem.

Aos 20 anos, Paulo conseguiu uma vaga na Faculdade de Direito do Recife e conheceu Elza Maia Costa de Oliveira. Casou-se com a professora primária e alfabetizadora em 1944, tiveram 5 filhos. Elza estimulou Paulo a dedicar-se sistematicamente aos estudos e colaborou na elaboração do método que o tornou conhecido.

Paulo Freire trabalhou no Serviço Social da Indústria (SESI), coordenando professores no trabalho com as crianças e promovendo as relações entre a escola e as famílias. Ali compreendeu que o discurso abstrato não era suficiente para convencer os pais, por exemplo, a deixarem de bater nos seus filhos. Era preciso discutir a situação de miséria destas pessoas, que as levavam as atitudes violentas. O engajamento no Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP) também foi fundamental para sua elaboração pedagógica e os estudos da linguagem do povo, na busca por um jeito de conversar com as famílias de modo que elas o compreendessem.

O diálogo e a coerência acompanharam os questionamentos que o educador fazia. “A opção política é fundamental para compreender a prática do educador. É a opção dele ou dela e depois a coerência com essa opção explicitada na sua prática. Como é que eu sou coerente no momento em que opto pelas classes populares e marcho até lá? Como é que eu busco ser coerente já no ato de marchar até lá. Como é que a marcha até lá tem que ser uma marcha, não de quem invade, mas de quem pretende companheirar-se, de quem pretende virar companheiro”, afirmou certa vez em entrevista à TV.

Através dos trabalhos no Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, do qual foi fundador e primeiro diretor, ele elaborou os primeiros estudos de um novo Método de Alfabetização de Adultos. No sertão do Rio Grande do Norte, na cidadezinha de Angicos, em 1962, Paulo Freire encontrou homens e mulheres que tinham fome de cabeça, fome de pensar. Um jipe com alto falante anunciou as aulas e convocou toda população. Mas a folha do caderno era insuficiente para as primeiras palavras. O lápis furava e rasgava as folhas. Assim, os círculos de cultura substituíram as classes de alfabetização, para promover a revolução da educação. Ele materializou o novo método alfabetizando 300 trabalhadores e trabalhadoras em 40 horas aula. Para isso, os educadores entraram nas casas, conversaram com o povo e conseguiram sistematizar cerca de 410 palavras comuns do vocabulário local.

Paulo Freire em São Paulo, com a coordenação do I Congresso de Alfabetizando do MOVA-SP. Crédito foto: arquivo Paulo Freire 1990

No ano seguinte, Freire foi convidado pelo presidente João Goulart e pelo ministro Paulo de Tarso, para repensar a alfabetização de adultos em âmbito nacional. Em 1964 estava prevista a instalação de 20 mil Círculos de Cultura para cinco milhões de analfabetos. O golpe militar interrompeu os trabalhos e reprimiu toda a mobilização popular já conquistada. “Diziam que ele era comunista, era num sei o que. E faziam medo na gente. Eu, por exemplo, ele me deu caderno e deu livro, umas revistinhas, umas coisas e eu não guardei nada. A gente com medo, e nervosa, demo fim a tudo”, lembra Maria da Pureza, uma das estudantes alfabetizada pelo educador.

Se Freire propunha uma pedagogia libertadora, a ditadura militar instaurou a pedagogia do medo. Ele foi detido por 70 dias e ficou exilado por 16 anos, obrigado a viver fora do Brasil. No Chile, ele foi consultor da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) durante cinco anos, no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária, em 1969 trabalhou no Centro para Estudos de Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Harvard. Já na Suíça, em 1970, foi consultor do Conselho Mundial de Igrejas, onde desenvolveu programas de alfabetização para a Tanzânia e Guiné-Bissau, contribuiu em campanhas no Peru e Nicarágua. Em 1971 criou o Instituto de Ação Cultural, em Genebra. Em 1973, se deparou mais uma vez com a ditadura, desta vez no Chile, onde o general Pinochet o acusou de subversivo. Em 1980, finalmente chega a anistia e Paulo Freire se torna professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de Campinas.

Neste período, são publicados alguns dos livros mais importantes, nos quais ele sistematizou sua práxis, como “Pedagogia do Oprimido”, “Ação Cultural para a Liberdade”, “Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo” e “Extensão ou Comunicação?”.

“Estamos convencidos de que o diálogo com as massas populares é uma exigência radical de toda revolução autêntica. Ela é revolução por isto. Distingue-se do golpe militar por isto. Dos golpes, seria uma ingenuidade esperar que estabelecessem diálogo com as massas oprimidas. Deles, o que se pode esperar é o engodo para legitimar-se, ou a força que reprime. A verdadeira revolução, cedo ou tarde, tem de inaugurar o diálogo corajoso com as massas. Sua legitimidade está no diálogo com elas, não no engodo, na mentira. Não pode temer as massas, a sua expressividade, a sua participação efetiva no poder. Não pode negá-las. Não pode deixar de prestar-lhes conta. De falar de seus acertos, de seus erros, de seus equívocos, de suas dificuldades. A nossa convicção é a de que, quanto mais cedo comece o diálogo, mais revolução será”, aponta no livro Pedagogia do Oprimido (p.149).

Em 1989, Paulo Freire assumiu a secretaria de Educação de São Paulo. Seu mandato teve como marca a recuperação salarial dos professores, a revisão curricular e, é claro, a implantação de programas de alfabetização de jovens e adultos. Ele recebeu vários prêmios, em todo o mundo, como reconhecimento da relevância de seus trabalhos na área da educação. Em abril de 1997, lançou seu último livro, “Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa”, falecendo pouco tempo depois, vítima de um infarto do miocárdio.

Na construção dos pilares da pedagogia freireana destacam-se as características do ser: ser curioso, ser inacabado, o ser que precisa do outro e a certeza de que o mundo e o ser humano estão constantemente em transformação. Para ele, era necessário fazer a leitura do mundo, a tematização (de tudo que gera os calos nas mãos do trabalho), e a problematização. É necessário aprender a aprender, aprender a conviver, aprender a fazer, aprender a ser e, sobretudo, saber o aprender porquê.

A pujança libertadora e revolucionária da obra de Paulo Freire não passaria desapercebida das classes opressoras. Tanto que até hoje incomoda a direita brasileira e os espíritos mais conservadores. “O legado de Paulo é o legado da justiça, da honradez, é o legado da dignificação das pessoas, é o legado do bem estar, é o legado do amor”, ressalta Nita Freire, viúva do segundo casamento do educador, ao falar para a página do MST sobre a tentativa bolsonarista de difamar sua obra.

Declarado em 2012 o patrono da educação brasileira, devido à importância nacional e internacional de suas ideias e práticas educativas, Paulo Freire, mostrou para o mundo que é possível construir uma educação humanizadora, transformadora e emancipadora. Por isso, é escandaloso que o Brasil ainda tenha 11 milhões de analfabetos, conforme dados da Agência Brasil de 2020.

Referências:

Instituto Paulo Freire. Disponível AQUI

Cartilha do MST, Paulo Freire vive, 2005.

Documentário Paulo Freire – Contemporâneo. Disponível AQUI

Alfabetizacão em Angicos – A Pedagogia de Paulo Freire – Sala de Notícias Canal Futura. Disponível AQUI

Analfabetismo cai, mas Brasil ainda tem 11 milhões sem ler e escrever. Disponível AQUI

*Editado por Solange Engelmann