Memória

2° Congresso Nacional do MST reafirmou capacidade de resistência nos territórios ocupados, com unidade nacional

Há 31 anos, o MST realizava o 2º Congresso Nacional com o lema “ocupar, resistir e produzir”; Assentados e dirigentes Sem Terra que participaram desse momento resgatam seu legado e ensinamentos
Foto: Arquivo MST

Por Solange Engelmann
Da Página do MST

Na época do 2° Congresso Nacional do MST, o Brasil se afastava, aos poucos, do período repressor e sangrento da ditadura civil-militar (1964-1985), repressão que ainda era mantida forte contra os movimentos populares do campo, como o MST, que com seis anos de existência resistia na luta por terra e pela Reforma Agrária. “Ocupar, resistir e produzir” foi o lema do 2° Congresso Nacional do MST, realizado de 8 a 10 de maio de 1990, na capital federal, Brasília, que hoje completa 31 anos.

Com a violência das polícias e de grupos armados, financiados pelos latifundiários, contra os/as trabalhadores/as Sem Terra e a falta de políticas de Reforma Agrária por parte do governo federal, no 2° Congresso Nacional o MST procurou reforçar sua linha política central de ação e pressão para implantação de um projeto de Reforma Agrária no país e a democratização da terra, ou seja, as ocupações de terras.

Quanto ao legado do 2° Congresso Nacional do MST na história do Movimento e na formação da identidade Sem Terra, nesse momento se reafirmou a capacidade dos/as trabalhadores/as Sem Terra em resistir na luta e nos territórios ocupados, mediante a organização coletiva e a nacionalização do MST no Brasil, relata o assentado e integrante da direção estadual do MST no Rio Grande do Sul, Isaias Vedovatto, que vive no assentamento 16 de Março, antiga fazenda Annoni, no município de Pontão, norte do RS. Ele iniciou sua participação no MST na fundação do Movimento em 1984, esteve presente na ocupação da fazenda Annoni e participou do 2º Congresso Nacional do MST.

“A gente vinha num processo de organização, de luta, de avançar numa conjuntura pós-ditadura. E quando saiu o 2º Congresso, ele tem essa necessidade de discutir outras coisas, de outro caráter da luta pela terra, que é a resistência. Ele deixa esse legado, que nós somos capazes, que a organização é capaz, desde que tenha unidade nacional, que tenha essa determinação do processo organizativo interno e o Congresso pra mim expressou isso”, pontua o assentado.  

Relembrar os Congressos do MST é uma forma de resgatar as memórias histórica da luta pela terra no país e a trajetória de luta dos Sem Terra na formação do Movimento. A capixaba Fátima Ribeiro, que faz parte do Setor de Educação do MST e é assentada no assentamento Sezínio Fernandes de Jesus, em Linhares, no Espírito Santo, ingressou no Movimento Sem Terra em 1985 e esteve presente no 2° Congresso Nacional do MST. Ela chama atenção para alguns significados e ensinamentos desse congresso, como o trabalho de base junto às famílias Sem Terra e as decisões coletivas.

“No debate de base e preparação aos Congressos, havia um direcionamento político junto à militância, o envolvimento e a participação junto às famílias, debates das cartilhas e orientações. Tudo isso era feito com muito carinho e dedicação pela militância. As famílias se sentiam parte do trabalho construído. Tudo era partilhado: ideias, canções, poesias e alimentos. Decisões coletivas, esse era um princípio que não se abria mão”, resgata Fátima. Ela afirma ainda que essa forma de organização e valores foi fundamental no enraizamento do MST em todo país, “se iniciando em uma região do país e se alastrando como fogo, com esse fervor de conquistar sonhos, resgatar esperanças adormecidas e se colocar em caminhada por dias melhores.”

Fátima analisa que no período do 2º Congresso Nacional do MST os Sem Terra enfrentavam vários desafios, quanto à violência contra os/as trabalhadores/as do campo, as dificuldades de diálogo com os governos e a falta de políticas agrárias.

“As dificuldades eram imensas, pois a violência do latifúndio estava nas esquinas, as dificuldades nas negociações, pois o governo truculento, autoritário, não abria mão para legalizar os acampamentos ou nas políticas públicas; dificuldades de chegar nas comunidades, pois não tínhamos condições de mobilidade. Mas nada disso se tornou empecilho para avançarmos na luta, pois havia determinação, objetivos claros, animação, alegrias, e um prazer enorme em fazer o trabalho de base avançar e sobretudo confiança na organização”, relembra.

Ao mesmo tempo, os Sem Terra denunciavam a miséria do campo, deixada pelo pacote da chamada “Revolução Verde”, que com a invasão de venenos, adubos químicos e da tecnologia de máquinas agrícolas de grande porte para o campo, ampliou a concentração das terras, a monocultura e a violência do latifúndio contra os/as camponeses/as e agricultores familiares, promovendo o êxodo rural, dos famintos do campo para a cidade, muitos expulsos de suas terras ou de áreas de posses.

Resistência para permanecer na terra

Nesse sentido, o 2° Congresso Nacional do MST também reafirmou a necessidade dos Sem Terra resistirem nos latifúndios ocupados e permanecer nessas terras, produzindo a subsistência das famílias e a garantindo a existência de novas comunidades rurais.

Assentado Isaías Vedovatto no ato de 40 anos da retomada das fazendas Macali e Brilhante, em setembro de 2019, no RS. Foto: Lucas Mansur

“A gente estava num período dos acampamentos, lutas, debates, dificuldades de conquistas, e no debate interno era muito forte a ideia da resistência, de avançar para ocupar mais terra, mesmo com muita dificuldade, de como a gente organizar a resistência de massa. Esse era um debate que estava generalizado nos acampamentos. E no Rio Grande do Sul com debate muito forte, inclusive com algumas situações, com o conflito da fazenda Santa Elmira, com enfrentamento com a Brigada Militar [do RS] e com muitos enfrentamentos”, conta o assentado Vedovatto.

A resistência dos/as trabalhadores/as do MST nesse período também já havia resultado na conquista de alguns assentamentos, que se tornavam territórios libertos do latifúndio e passavam a abrigar a diversidade a e riqueza de cultivos, culturas e saberes – o desafio nesses espaços era produzir e gerar renda para a permanência das famílias, já que os governos federais se recusavam a criar políticas públicas voltadas à Reforma Agrária.

Isaias considera que esse Congresso sintetizou, a partir do seu lema, o que a base do Movimento Sem Terra estava passando naquele período. “O debate era como resistir, além disso nós tínhamos o processo já de assentamento, de terras conquistadas. Então, por isso essa palavra de ordem. Foi o Congresso, que pra mim refletiu o que de fato estava acontecendo na vida real dos acampamentos”, explica.

Impactos nas lutas seguintes

O lema/palavra de ordem do 2° Congresso Nacional do MST, “Ocupar, Resistir, Produzir” norteou as ações e estratégias de lutas posteriores dos/as trabalhadores/as Sem Terra na conquista e resistência dos territórios ocupados e, a partir do enfrentamento ao latifúndio desvelou as injustiças da concentração da terra, da miséria no campo e chamou atenção da sociedade para a necessidade da Reforma Agrária.

“Com a decisão no 2º Congresso, que a terra teria que ser conquistada a partir da resistência organizada e produzir na terra ocupada, causou um estranhamento na sociedade brasileira que não estava acostumada com o termo “resistir”. Foram muito os enfrentamentos com o latifúndio em todas partes desse Brasil, mas essa força chamou atenção para a necessidade da realização da Reforma Agrária, muita gente Sem Terra e muita terra para especulação”, explica Fátima.

Porém, a assentada e dirigente do MST no ES, também denuncia que essa mudança na sociedade em relação à luta pela Reforma Agrária também é resultado do enfrentamento à violência, com muitas mortes e massacres de lutadores/as Sem Terra. Desafios que resultaram na criação de outras estratégias e alternativas de luta para chamar atenção da população.

“A força da opressão se juntou às milícias e à polícia e ao Poder Judiciário e ocorreram muitas ações de despejos violentos, massacres, a ordem era para aniquilar os Sem Terras. Mas sabiamente, o MST sempre encontra alternativas para sair do isolamento, dos cercos que eram montados pelos latifundiários e a elite do atraso no Brasil. Aí foram criadas as caminhadas da luta pela terra em direção às capitais, em que cada município onde a caminhada pela Reforma Agrária passava eram feitos muitos debates formativos junto à população. Se fazia um trabalho de conscientização da necessidade da Reforma Agrária”, afirma Fátima.

Mas, no 2º Congresso Nacional do MST ainda haviam poucas mulheres participando das direções do Movimento. Segundo Fátima Ribeiro, isso foi mudando nos anos seguintes com a participação e atuação ativa das trabalhadoras Sem Terra nos vários espaços de direção, nas ações do 8 de março e nas demais lutas do MST, contra as violências e opressões, a concentração do latifúndio, as empresas transnacionais e os agrotóxicos.

“As mulheres no MST crescem a cada momento, politicamente, organicamente e em consciência de gênero, classe, étnica e racial. Ocupam praticamente todos os espaços na organização com qualidade, determinação e muito afetos. As mulheres vão adquirindo o poder da fala, com sua oratória que encanta e contagia. Vão iluminando caminhos para as mulheres da base, colaborando com o internacionalismo e num trabalho solidário imenso e intenso. E tem se juntado a outras organizações para o combate intransigente contra a violência e a opressão.”

Por isso, Fátima ressalta que sua participação no 2º Congresso Nacional teve um “significado muito especial, importante, histórico e radical para aquele período.” Após o fim de 21 anos de ditadura no país as exceptivas de mudanças sociais eram grandes. “Foi de uma emoção muito grande, rodeada de muitas expectativas e cheia de esperanças. Nós tínhamos muitos sonhos: alcançar a libertação e transformação da sociedade e, ao mesmo tempo, em alcançar a Reforma Agrária no país, avançando na conquista da terra”, completa.

Já para Vedovatto, as lembranças e aprendizados do Congresso Nacional do MST, em 1990 marcaram sua trajetória de vida e valores, como ser humano. “Fui deslocado do acampamento pra ajudar a organizar o 2º Congresso, na parte de logística/infraestrutura. Nesse processo acabei ficando dois anos e meio morando em São Paulo. Na época do Congresso fiquei dois meses morando em Brasília, em vista desse processo de organização, além da participação política como dirigente, que já participava dos debates desde o 1º Congresso. Essa é uma marca muito importante pra mim, porque faz parte da minha vida, do que sou, de ter morado em outro estado, de ter oportunidade de viajar, de estar nesse processo de articulação”, conclui.

*Editado por Fernanda Alcântara