Solidariedade

Campo e cidade juntam-se no combate à fome na periferia de Curitiba

Ao doar comida, gás de cozinha e plantar hortas agroecológicas em comunidades da periferia de Curitiba, “União Solidária” convida militantes a se engajarem em ações em favor das famílias que enfrentam a fome e o desemprego nesta pandemia
Foto 1 – No sábado passado (12/06), integrantes da União Solidária entregaram cestas de alimentos a 500 famílias de duas localidades do Alto Boqueirão, na periferia de Curitiba (PR). Fotos: Nélson Orlando de Andrade e Wellington Lenon /MST/PR e Edson Félix

Por Thea Tavares, especial para o Viomundo

Foi lembrando as palavras do educador Paulo Freire, neste ano em que se comemora o seu centenário, que o coordenador estadual e nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Roberto Baggio, destacou a importância da ação militante e solidária nesta pandemia, durante o mutirão de plantio e instalação de uma horta comunitária na periferia de Curitiba, no último sábado, dia 12 de junho.

“É tempo de esperançar, de agir e de tomar atitudes. Não se fechar em casa para lamentar ou reclamar apenas, mas de sair, com todos os cuidados, máscara facial, luvas, com a devida responsabilidade e com disciplina, para se misturar com a população e perceber também as dores e as necessidades do irmão que sofre com a fome, com o desemprego e com a chaga de uma desigualdade social que a doença veio acentuar”, disse Baggio.

A ideia de cultivar hortas agroecológicas nas comunidades atendidas pela ação da “União Solidária”, que reúne 11 entidades parceiras na distribuição de cestas de alimentos e de cargas de gás de cozinha para famílias em situação de vulnerabilidade social, é deixar sempre uma semente de esperança de um novo tempo plantada nessas localidades.

A horta agroecológica na comunidade da Chacrinha, no bairro do Alto Boqueirão, além de produzir verduras, legumes e frutas para complementar a alimentação das 60 famílias locais, irá fomentar lições de educação ambiental e fortalecer a integração dos moradores da comunidade com a natureza para o cultivo de uma vida mais saudável.

Na abertura do mutirão, o coordenador do MST lembrou que a atividade simboliza o espírito da solidariedade, que frutificará na transformação de uma realidade adversa pela soma de esforços:

“Do campo, vêm o alimento, os trabalhadores rurais e as máquinas agrícolas. Da cidade, outros trabalhadores, militantes de causas sociais, da organização popular, religiosa, da juventude, do segmento da cultura, de partidos políticos e de entidades de classe, que se juntam aqui a uma comunidade que também os acolhe e é dessa ‘união solidária’ que frutifica o espírito associativo, organizativo, que resultará em grandes conquistas”.

Comparando ainda iniciativas como essa com a preparação de um pão, alimento que guarda também um significado de partilha, Baggio ressaltou que a ação militante, quando se mistura às comunidades da periferia, é como um fermento em uma massa, um ingrediente a mais, que a ajuda a crescer.

“É o alimento dessa caminhada transformadora. Associamos ao significado do ‘esperançar’ de Paulo Freire, uma palavra do cotidiano camponês, que é o ‘fazimento’ e temos o ‘esperançar com fazimento e vice-versa’. Duas palavras que nos movem a nos desafiarmos nessas iniciativas neste momento histórico”, completou o coordenador do MST.

O mutirão da horta, a presença e o apoio das entidades e profissionais que militam nessas instituições à organização comunitária ficam como um legado à luta popular.

A comida chega como uma ajuda, mas junto com ela vêm também iniciativas e conhecimentos que vão fortalecer a luta da comunidade pela regularização dos terrenos, pela estruturação do bairro, instalação de energia elétrica, abastecimento de água e rede de esgoto e acesso a serviços públicos, entre outros avanços.

A solidariedade vence a fome

Parte dos alimentos entregues, cerca de três toneladas, foi produzida em assentamentos e acampamentos de reforma agrária popular nos municípios de Castro, Lapa e Teixeira Soares, que são regiões mais próximas de Curitiba.

Desde abril de 2020, a União Solidária já distribuiu mais de 700 toneladas de alimentos em todas as regiões do Estado do Paraná.

Além de mais de 60 mil marmitas da terra para a população em situação de rua no centro de Curitiba e outras comunidades da periferia, que concentram famílias desempregadas e que estão passando fome.

Em várias dessas localidades, muitos moradores são migrantes, que sofrem, além da pobreza, com as barreiras culturais, dificuldades de idioma e com o preconceito.

Em todo o país, desde o início da pandemia da Covid-19, o MST e um conjunto de outras organizações populares já partilharam com a população vulnerável mais de quatro mil toneladas de alimentos, frutos da reforma agrária popular.

Mutirão de plantio da horta comunitária agroecológica na Vila da Chacrinha, no Alto Boqueirão, em Curitiba. Os canteiros receberam 150 mudas de árvores nativas e frutíferas e 35 de verduras e legumes. Fotos: Nélson Orlando de Andrade e Wellington Lenon /MST/PR

No Paraná, integram a União Solidária – Campo e Cidade no Combate à Fome na Pandemia:

— Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST-PR)

— Sindicato dos Petroleiros Paraná e Santa Catarina (Sindipetro PR/SC)

— Rede Produtos da Terra

— Coletivo Marmitas da Terra

— Diretório Estadual do Partido dos Trabalhadores (PT-PR)

— Sindicato dos Professores da Universidade Federal do Paraná (APUFPR)

— APP-Sindicato, de abrangência estadual, os núcleos sindicais da APP Curitiba Norte e Curitiba Sul

— Comissão da Dimensão Social da Arquidiocese de Curitiba da igreja católica

— Cecopam – Centro Comunitário Padre Miguel

Para o secretário-executivo da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no Paraná, padre Valdecir Badzinski, “a solidariedade vence a fome e esta ação popular evidencia isso. Atitudes solidárias são sempre inspiradoras”.

Para ele, esse esperançar, que não tem a ver com espera passiva, mas com a luta pelos direitos, partilhando alimentos e semeando hortas comunitárias, é o que apontará para uma vida mais saudável na comunidade e segue os preceitos do Cristianismo.

Depois de ajudar a preparar os terrenos para o plantio das mudas de árvores frutíferas e de legumes e verduras na horta, o padre, de origem rural também, festejou a iniciativa: “a natureza é parte do ser humano e o ser humano é parte da natureza. Quando essa consciência se materializa em ação, é perspectiva de vida saudável”.

“Contem com a gente, vamos correr atrás também de defender os direitos da comunidade, vencer a fome e o desemprego. O vírus é potente, mas pequeno diante da solidariedade e da grandeza do espírito humano”, disse o secretário-executivo da CNBB no Paraná.

Adriano dos Santos, mestre em Agroecossistemas e integrante da Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA), situada no assentamento Contestado, na Lapa, que orientou toda a preparação da horta comunitária agroecológica da Chacrinha, também agradeceu o trabalho coletivo e se disse feliz por poder presenciar a agroecologia sendo um vetor da garantia de organização da comunidade, da solidariedade entre trabalhadores do campo e da cidade e da semeadura de soberania alimentar.

“Uma comunidade com capacidade de organizar as famílias, ocupar um terreno para morar, lutar pelos seus direitos, tem capacidade de tocar uma horta agroecológica por um bom tempo”, disse.

Andressa da Cruz e Cícero de Almeida são dois moradores da Chacrinha que vão continuar os trabalhos na horta agroecológica.

“A agroecologia hoje, aqui, deixa um legado de garantia desse elo de fortalecimento da organização comunitária, de solidariedade e da soberania alimentar do nosso povo”, completou Adriano ao se dirigir às famílias da comunidade.

Ele lembrou que na área de aproximadamente 1.700 metros quadrados, que provavelmente abrigaria um aterro ou serviria de depósito de dejetos, resíduos sólidos, contaminando a natureza e prejudicando a saúde das famílias no entorno, serão cultivados, a partir de agora, alimentos e educação socioambiental.

Comida no prato e vacina no braço!

Solidariedade às famílias que enfrentam a fome e o desemprego na pandemia. Fotos: Nélson Orlando de Andrade e Wellington Lenon /MST/PR

Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a PNAD Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o primeiro trimestre de 2021, há 14,8 milhões de desempregados no Brasil, o que corresponde a uma taxa de 14,7% de desocupação entre a população economicamente ativa do país (acima de 14 anos).

Os números também apontam para uma massa de mais de seis milhões de desalentados, ou seja, de trabalhadores que pararam de procurar emprego.

Soma-se a esse triste quadro também o drama retratado nas análises divulgadas pelo estudo “Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, da Rede Penssan – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional -, que aponta que, nos últimos meses de 2020, 19 milhões de brasileiros passavam fome e que 116,8 milhões de pessoas (mais da metade da população) enfrentavam algum grau de insegurança alimentar.

Não bastasse isso, em uma das comunidades atendidas com a doação de comida no último sábado, a Vila Pantanal, a unidade básica de saúde local encontra-se fechada há vários meses, o que dificulta ainda mais o acesso dos moradores de lá ao atendimento tão necessário em meio a uma grave crise sanitária.

Voz jovem da periferia, o vereador do PT de Curitiba, Renato Freitas, vem acompanhando essas atividades mensais da União Solidária, que tem no Diretório Estadual do seu partido uma das instituições parceiras na promoção das ações.

Fazendo um contraponto à política de morte do governo genocida de Jair Bolsonaro, Freitas destacou a importância da solidariedade nesse contexto e disse que, assim como se conhece a árvore pelos frutos, a humanidade pelas crianças, as organizações também se mostram por suas ações e pelos trabalhos que realiza, as causas que abraça.

“Quando a gente olha nos olhos das pessoas que estão aqui, encontra humanidade e se identifica com esse vínculo de amor. É o que nos dá forças para perseverar e para seguir lutando, enfrentando as perseguições e as arbitrariedades”, disse.

O vereador, que por representar a população da periferia, jovens negros na mira das intolerâncias, incomoda bastante as acomodações de poder, tanto que vem sofrendo, nesses poucos meses de atuação parlamentar, um processo que objetiva a cassação do seu mandato.

Ele não se intimida diante das ameaças, segue lutando e defendendo suas bandeiras: “Somos um grãozinho e, por isso, temos a necessidade da união na superação dos obstáculos e na conquista de uma nova realidade”.

A União Solidária também aproveita o momento para denunciar e cobrar o direito à vacinação imediata para toda a população, a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e o pagamento de auxílio emergencial de 600 reais para cada trabalhador e cada trabalhadora.

Na tarde de sexta-feira (11), durante a cerimônia para abençoar os alimentos que foram entregues nas vilas Pantanal e Chacrinha no sábado (12), o arcebispo de Curitiba e Região Metropolitana, Dom José Antônio Peruzzo, ressaltou a importância do compromisso fraterno das igrejas, das paróquias, da comunidade como um todo e dos fieis nesse momento, em especial.

“Se eu estou com fome, meu problema é físico. Mas se meu irmão está com fome, meu problema é espiritual”, disse o arcebispo de Curitiba. “Enquanto eu ignorava a dor do outro, meu problema não foi resolvido e a dor não é apenas de um estômago vazio, mas de uma vida sem sentido”, concluiu.

Dom Peruzzo, que também tem origem rural, abençoou não só a comida que foi doada para aplacar um pouco a fome das famílias em situação de vulnerabilidade, mas também o trabalho das pessoas que lá nas comunidades de reforma agrária cultivaram aqueles alimentos, partilharam parte de sua produção, e àquelas pessoas, militantes das organizações populares, que se dedicam a fazer chegar às famílias as cestas de produtos da terra e as cargas de gás de cozinha.

Muitas das famílias produtoras enfrentam, elas próprias, a luta contra a arbitrariedade das ações de despejo em suas comunidades.

A suspensão desses despejos na pandemia dá um fôlego temporário a essas milhares de famílias que, na falta de uma política de estado garantidora de direitos e de socorro emergencial adequado à população, fazem da solidariedade o antídoto à mão no combate aos efeitos mais perversos da desigualdade social, das intolerâncias e do desrespeito, antes e durante a pandemia da Covid-19.

As palavras do Papa Francisco são mais do que emblemáticas do sentido das iniciativas da “União Solidária” no Paraná:

“Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”.

Essa frase está impressa na animação desses trabalhadores do campo e da cidade por uma sociedade mais justa e também retrata o “esperançar” dessa gente que luta por dias melhores que os atuais. No que depender de sua força de trabalho e da união de tantos corações solidários, com certeza esses dias virão.